Um médico precisa saber interpretar um hemograma. Um advogado precisa saber fazer uma petição. Um engenheiro tem que saber estimar a carga em uma viga. Tais conhecimentos são amostras de sua formação profissional.
Mas isso é pouco. Profissionais devem também fazer julgamentos e tomar decisões que os manuais da profissão não ensinam: para calibrar o que dirá ao paciente, é preciso auscultar a sua alma. Há que antecipar os humores da corte de Justiça. E também o engenheiro avalia se deve colaborar em uma construção irregular. “Homens são homens antes de serem advogados, médicos, comerciantes ou fabricantes: e se os tornardes homens capazes e sensíveis, eles mesmos se transformarão em advogados ou médicos sensíveis. (...) (É preciso) trazer a luz da cultura geral para iluminar as ‘tecnicalidades’ da área de especialização” (Stuart Mill).
Na profissão, na vida privada e na cidadania, há que lidar com o caráter dos que nos cercam, com nossos planos, com o sonho e com o idealismo. Com o cinismo, com a maldade, com a inveja, com o ódio e com a avareza. Ciúmes e tramas aparecem. E, com certeza, nossa competência em tais julgamentos pode ser tão relevante quanto o conhecimento profissional. Sendo assim, como não preparar os profissionais para lidar com isso tudo?
Como disse A. Whitehead, “o profissionalismo prepara para alguma coisa. A educação ajuda a compreender a importância dessa coisa. É preciso encontrar o bom equilíbrio entre profissionalismo e uma educação para toda a vida”.
Ora, mas como e onde adquirir tais conhecimentos? Pode não ser fácil calcular a carga da viga. Mas está nos bons manuais de engenharia. Em contraste, são elusivas e controvertidas as instruções de como adquirir, por exemplo, lucidez nos julgamentos.
Reli uma antiga coleção de artigos sobre o assunto. Ninguém concorda com ninguém, exceto na relevância desse aprendizado. Palavras como humanidades, cultura e educação têm a ver com esses temas, mas parecem confundi-lo ainda mais. É verdade que estão na filosofia, história e literatura (também nas artes e ciências sociais?), mas tampouco isso esclarece muito. Ainda assim, certos rumos emergem da cacofonia.
Alguns livros se recusam a morrer, mesmo após 2 mil anos. Por que será? Muita gente inteligente e criativa pensou em assuntos importantes e suas ideias se plasmaram neles. “São uma janela para que se contemple um pouco o inexplicável processo criativo humano” (Stephen Koch). Bons livros nos levam a, pelo menos, saber que não sabemos e a apreciar o tamanho da nossa ignorância.
“A História é o drama humano e o conhecimento do passado enriquece e explica a vida. (...) Um poeta dramático, simplesmente, é um historiador” (Fritz Stern).
Salman Rushdie insiste: “A literatura é o lugar onde podem surgir novas ideias”. De fato, escritores de ficção têm como se fosse um sexto sentido para discernir ondas subterrâneas e iluminar verdades que passam despercebidas. Na mesma linha, para L. Perrone-Moisés, “ao longo da História, as grandes obras literárias revelam muito melhor a realidade social do que as análises propriamente históricas ou sociológicas”.
Por décadas, Mortimer Adler bateu na tecla de que “a filosofia deve ser assunto de todo mundo. (...) As pessoas têm cabeças e, com elas, gostam de pensar”. Grandes questões que encontramos ao longo da vida são a matéria-prima da boa filosofia: a justiça, a tolerância, a democracia, o bem e o mal.
Também já se disse que a educação, concebida de forma ampla, é a capacidade de separar o que faz sentido do que não faz. Permite a descoberta por nós mesmos dos prazeres de pensar por conta própria, através de leituras e conversas. Ademais, “quem não raciocina é um fanático, quem não sabe raciocinar é um imbecil e quem não ousa raciocinar é um escravo” (W. Brumon). Em suma, a educação é a bússola para a viagem da vida.
“Uma educação liberal ensina às pessoas a escrever e a pensar, tornando-as muito mais valiosas no mercado de trabalho. (...) Também promove o desenvolvimento de um compasso moral e certa compreensão de como a sociedade e a democracia funcionam” (James Freedman).
Diante de tais argumentos, nos Estados Unidos e na Europa, os currículos dos primeiros dois ou três anos de graduação voltam-se para essa missão de nos ajudar a navegar o mundo. E isso não é por nostalgia de educadores. As empresas declaram valorizar a capacidade de julgamento, apurada por tais estudos.
Em contraste, no Brasil, os cursos superiores são quase totalmente profissionalizantes. As faculdades são estritamente voltadas para a profissão. Há nada ou quase nada dessa bagagem cultural chamada de humanidades. Será que apenas o Brasil faz certo?
O que mais chama a atenção é que essa angustiante lacuna nem sequer é discutida nos nossos meios educacionais. E como disse Jacques Barzun, “o perito-especialista toma um pequeno objeto como sua província e permanece provinciano por toda a sua vida”. De fato, continuamos formando profissionais incultos.
*
PH.D., CONSULTOR INDEPENDENTE, É PESQUISADOR EM EDUCAÇÃO