Há 60 anos, os brasileiros são convocados a trafegar entre dois caminhos igualmente desconfortáveis em relação ao golpe militar de 1964. De um lado, a apologia inconveniente de quem celebra o “movimento revolucionário”, tentando preservar a visão do golpe como uma vitória da vontade geral do povo, das Forças Armadas e da liberdade contra o radicalismo. De outro lado, a defesa da reparação pelas atrocidades promovidas por agentes da repressão naqueles anos. No primeiro grupo, persiste o medo de se verem vítimas de revanchismos, algo que seria contrário, segundo militares, à conciliação prevista na Lei da Anistia de 1979 – mantida desde então e sacramentada, em 2010, pelo Supremo Tribunal Federal. No outro, o temor de que o passado fique no passado e de que o País permaneça sob uma suposta tutela militar. Entre ambos, uma desconfiança mútua que só atrapalha a esperança de que possamos seguir adiante. Sem traumas, medos ou dívidas do passado.
Já passou da hora de um melhor ajuste com a história, necessidade ampliada com as sequelas deixadas pelo 8 de Janeiro. As investigações já demonstraram a inegável conivência e até mesmo entusiasmo de alguns militares com o golpismo bolsonarista. Se é verdade que não se pode julgar as Forças Armadas pelo comportamento de alguns poucos, estimulados nos últimos anos por Jair Bolsonaro – um mau militar, como qualificou o general Ernesto Geisel –, também é verdade que o bolsonarismo intoxicou os quartéis com a fumaça do golpismo. Em meio às tensões que persistem desde a transição para o mandato do presidente Lula da Silva, parece haver hoje uma evidente disposição do atual comando militar com a democracia e a pacificação, retribuída por Lula ao evitar transformar a data de aniversário do golpe em ato de governo. A palavra de ordem mútua é um providencial silêncio.
É preciso, porém, mais do que silêncio e moderação. Cabe ao comando militar o urgentíssimo trabalho de despolitização das Forças Armadas – parte delas dragada pelo espírito extremista e golpista de Bolsonaro, uma liderança vocacionada a fazer o que foi impedido ao ser defenestrado do Exército em 1988: insuflar a baderna, tratar adversários com truculência e demonstrar seu desapreço pela Constituição. O descumprimento de seu papel constitucional dentro do regime democrático é péssimo negócio tanto para as instituições militares quanto para o País. Contra isso, revoguem-se as interpretações excêntricas sobre o artigo 142 da Constituição – as Forças Armadas não são um poder moderador da República, como defendeu o breviário golpista da extrema direita. Convém ainda frear qualquer ímpeto de militares que desejam misturar a vida nos quartéis com a política e aceitar a ideia de que o Brasil não cicatrizará as feridas deixadas pelo regime militar sem confrontar-se com o passado.
Eis por que é imperativo que o presidente Lula reabra a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, importantíssima para levar o Estado brasileiro a ser responsabilizado pela contumaz violação de direitos humanos por seus agentes durante a ditadura militar. Criada em 1995 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, a comissão se destina a reconhecer oficialmente pessoas que morreram ou desapareceram por sua atuação política durante a ditadura militar, permitindo, por exemplo, a emissão de atestados de óbito, a localização de corpos e a reparação por meio de indenizações. A comissão foi extinta por Bolsonaro nos estertores de seu mandato, mas Lula tem a oportunidade de reparar tal erro.
Assim como conciliação e anistia não significam esquecimento, memória e justiça não levam à revanche. Esse reconhecimento duplo de qualquer democrata, seja civil ou militar, é fundamental para que o País possa se debruçar com maturidade sobre um momento crucial de sua história. É, esse sim, o caminho adequado para a exata compreensão da responsabilidade do Estado pela morte presumida de cidadãos que estavam sob sua custódia e para pôr fim à longa noite que ainda assombra e divide o País.