Há cerca de um ano o governo inundou o Congresso com um pacotaço de medidas – o chamado “Plano mais Brasil” – para, segundo o ministro da Economia, Paulo Guedes, implementar “um novo regime de responsabilidade fiscal”. No papel, o programa era ambicioso, incluindo três propostas de emenda constitucional (PECs): a “emergencial”, para frear a escalada dos gastos obrigatórios; a do Pacto Federativo, para modernizar e aprimorar a distribuição dos recursos aos Estados; e a da extinção dos fundos públicos, para gerar caixa. Além disso, previa-se uma ampla reforma administrativa – que, bem tímida, chegou só há poucos meses – e um projeto de ajuda aos Estados à beira do colapso fiscal.
A pandemia tornou a adoção dessas medidas ainda mais premente do que antes, mas o governo deixou-se tomar por uma espécie de letargia. A cadeia de produção travou, o desemprego aumentou, a arrecadação caiu e os gastos cresceram. Tanto pior quando a temível “segunda onda” parece se avolumar no horizonte antes que a primeira tenha passado.
E nada saiu do papel. Com as eleições, a agenda do Congresso foi praticamente suspensa. O Ministério da Economia segue agitando a bandeira da responsabilidade fiscal, mas sem nenhuma estratégia, enquanto outros ministros pressionam pelo rompimento do teto de gastos. Em “esplêndido isolamento”, o presidente da República se entregou às negociações fisiológicas para se garantir no cargo, defender a sua prole e promover sua campanha à reeleição.
Mas a matemática é implacável: o País chegará ao fim deste ano com uma dívida pública próxima a 100% do PIB – bem maior do que entre seus pares no bloco dos países em desenvolvimento. O endividamento em si não é o problema. Os gastos emergenciais o tornaram indispensável, e um novo choque do vírus poderá pressioná-lo ainda mais. Mas ele só é sustentável se combinado com esforços para consertar os fundamentos da economia. Isso implica desengessar o Orçamento, proporcionar eficiência ao governo e tornar a tributação mais progressiva e mais favorável à alocação racional de recursos.
Mas não há qualquer programa de ação do governo para viabilizar estas reformas e, assim, as condições de empréstimo se deterioram a cada dia. Com as incertezas sobre a ancoragem fiscal, o câmbio não parou de se depreciar desde o começo do ano, os sinais de inflação despontam (sobretudo para os mais pobres) e cresce o risco de o Banco Central ter de subir os juros.
A flexibilização do teto de gastos para atender a demandas emergenciais seria, em tese, possível. Mas isso precisaria vir acompanhado de um compromisso firme com reformas estruturais. Na prática, o Planalto e seus apaniguados no chamado Centrão buscam flexibilizar o teto apenas para continuar gastando.
“Quando há um governo de má qualidade”, precisou o ex-presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore ao Estado, “é preciso impor a esse governo a restrição fiscal de fora para dentro.” Sem nenhuma confiança em quem está com as mãos no timão, o País não pode se dar ao luxo de abandonar a sua âncora, a saber: o teto de gastos previsto constitucionalmente. “Com a dívida pública ascendendo a 100% do PIB”, alertou recentemente um parecer técnico do FMI, “preservar o teto constitucional de gastos como âncora fiscal é fundamental para apoiar a confiança no mercado e manter contido o prêmio de risco soberano”, ou seja, o risco associado à dívida pública.
A ousadia nos gastos é possível num ambiente de confiança. Mas, realisticamente, nada no Planalto sugere essa confiança. A curto prazo, a única saída para evitar a espiral de depreciação do câmbio, aumento dos juros e o risco de inflação é pressionar o Poder Público para colocar os projetos de reformas na linha de produção, além de cortar gastos.
Como as reformas patinam no Congresso, seja por conveniências corporativas, seja pela desarticulação do governo, a PEC Emergencial torna-se mais emergencial do que nunca: ela garantirá os gatilhos para impedir reajustes salariais, contratações e ações dos Três Poderes que impliquem aumento de despesas acima da inflação. Esses gatilhos darão fôlego de um a dois anos para que se possa discutir uma reforma fiscal consistente.