Há 21 anos, desde que assumiu pela primeira vez a Presidência, Lula da Silva tenta acabar com as agências reguladoras. Sempre travestidas de aperfeiçoamento da lei, as investidas para mudar o aparato regulatório acabaram por esbarrar no Congresso. Agora, aproveitando-se da comoção causada pelo apagão da Enel em São Paulo – pelo qual o governo, sem pestanejar, crucificou a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) –, Lula arquiteta um novo projeto para, em teoria, avaliar o desempenho das agências e, na prática, demitir e nomear diretores a seu bel-prazer.
A essência intervencionista da campanha do governo é cristalina. Mas, para que não restasse a menor dúvida, o chefe da Casa Civil, Rui Costa, em recente encontro com empresários em São Paulo, revelou a razão central da ofensiva: “Todo mundo que está nas agências hoje foi indicado pelo governo anterior”. Como noticiou a Coluna do Estadão, Costa declarou aos presentes que o Planalto e os ministros envolvidos na proposta estão de pleno acordo sobre a necessidade de acabar com a estabilidade e a assincronia dos mandatos, prerrogativas que garantem a autonomia dos reguladores.
O viés antirrepublicano patente na reação do governo parte do inconformismo lulopetista em conviver com organizações de Estado que não estejam submetidas às ordens de seu governo. Ocorre que a independência é o ponto central de atuação das agências, criadas a partir de 1997 para regular, fiscalizar e garantir a qualidade de serviços públicos em setores que deixaram de ser monopólio estatal.
O fato de os mandatos dos diretores de agências não serem coincidentes com o do presidente da República é fundamental para assegurar tratamento técnico às decisões, sem quaisquer suspeitas de pressão política. Ao buscar enfraquecer a autonomia dos reguladores, Lula da Silva se arrisca a intensificar a crise de confiança que sua gestão já enfrenta, por atos e ideias que pesam mais do que os indicadores econômicos, como o antagonismo ao Banco Central e à política monetária, o desprezo à escalada da dívida pública e o apreço à gastança – como se fosse um endividado que incorpora ao orçamento os limites de seu cheque especial.
Para acentuar a insegurança de investidores, concessionários e usuários de serviços públicos, o governo estuda reativar um mecanismo que permitirá aos Ministérios avaliarem o desempenho das agências a eles vinculadas. Caso o Congresso aprove o contrato de gestão que Lula quer impor às agências, dará apenas o revestimento legal que o governo precisa para enquadrar a atuação das agências a seus interesses.
Ao Estadão, o senador Confúcio Moura (MDB-RO), que preside a Comissão de Infraestrutura do Senado, se disse “radicalmente contra” a cláusula de desempenho do contrato de gestão, por ser de difícil avaliação, em especial na atividade de regulação. “Não existe fórmula, é muito subjetivo”, comentou o parlamentar, que se identifica como membro da base de apoio do governo.
A medida daria aos ministros – e ao presidente Lula da Silva – poder incontestável sobre os reguladores. Antes mesmo do blecaute em São Paulo, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, já ameaçava a Aneel de intervenção e os diretores da agência de demissão, mesmo não tendo essa atribuição legal. Reclamava da “inércia” da Aneel para avaliar propostas do governo, entre elas a regulamentação dos termos da medida provisória que beneficiou a Âmbar, do Grupo J&F, pertencente aos irmãos Wesley e Joesley Batista. Imagine-se o que faria se tivesse mais poder.
Na contramão do governo federal, o Estado de São Paulo acaba de sancionar uma lei que dá a três agências reguladoras estaduais (de transportes, de serviços públicos e de águas) mais autonomia administrativa, orçamentária e de planejamento. Diretores serão indicados seguindo regras de governança das próprias autarquias, que terão independência inclusive para realizar concursos públicos. Essa legislação poderia servir de base para Lula da Silva, caso o real interesse de seu governo fosse o de aperfeiçoar a regulação das agências.