Em 2013, simbolicamente acompanhado pelo patriarca Kirill, da Igreja Ortodoxa Russa, até hoje um dos seus mais firmes apoiadores, Vladimir Putin não mediu palavras ao apresentar sua própria concepção nacionalista – diríamos imperial – ao dizer que a nação russa se estenderia para além de suas fronteiras políticas, abarcando russófonos por onde estivessem. Algo, aliás, não muito diferente do que Hitler fez ao justificar sua invasão dos Sudetos, destruindo a Checoslováquia. Significativamente, proferiu sua palestra em Kiev, que viria a ser a expressão de seu projeto anexionista. Anos depois, essa cidade seria objeto de bombardeios impiedosos e de uma tentativa de ocupação, onde o sangue desses eslavos seria derramado em nome de uma Grande Nação Russa que estaria, assim, plenamente justificada em sua crueldade. Ninguém seria depois poupado, seja em assassinatos, estupros, sequestro de crianças, destruição de hospitais e orfanatos.
Putin sustentava uma retomada dos ideólogos eslavistas do século 19, segundo os quais haveria uma só nação russa, algo que Alexander Dugin viria a caracterizar como uma “civilização russa”, abarcando a Rússia propriamente dita, a Ucrânia e Belarus. Para esses ideólogos imperiais, sustentáculos do imperialismo/nacionalismo putiniano, a primeira era denominada de Grande Rússia; a segunda, de Pequena Rússia; e a terceira, de Rússia Branca. Configurariam um só povo, compartilhando dos mesmos valores espirituais. Sob essa ótica, uma guerra de conquista, chamada por Putin e seus ideólogos de “operação especial”, encaixa-se numa concepção do mundo e da cultura em que ganha realce o termo “reunificação”. A guerra de conquista tem de “especial” o fato de ser legítima, por ser nada mais do que uma retomada do que foi perdido, separado.
A Igreja Ortodoxa Ucraniana, historicamente seguidora do Patriarcado de Moscou, reagiu com veemência e, diria, doutrinariamente, colocou os pontos nos is. Um dos seus dignatários não hesitou em afirmar, dirigindo-se a Putin, que esta guerra é “fratricida” e, portanto, deveria ser parada imediatamente. Russos falantes ucranianos estariam sendo mortos por russos que dizem compartilhar os mesmos valores. Ucranianos russófonos estariam sendo eliminados, ao som das bombas e mísseis, em nome de sua própria “liberação”. Um outro dignatário ucraniano, dirigindo-se ao patriarca Kirill, agradeceu-lhe ironicamente pelo derramamento de sangue de seus irmãos, pela destruição de monastérios, pela morte de monges e padres. Agradeceu-lhe, ainda, pela “bênção” deste grande derramamento de sangue.
Os valores espirituais seriam o pan-eslavismo, o nacionalismo, a religião ortodoxa e a autocracia. Seriam valores russos anteriores à revolução bolchevique, embora esta também assumisse com aquela o mesmo desprezo pelas instituições democráticas e, no período stalinista, tenha sido recuperada a ideia nacionalista, a de “socialismo em um só país”, tão ao gosto de Putin atualmente, quando presta homenagem ao ditador russo. Estamos diante de uma ideologia antiocidental, avessa à democracia, às liberdades e aos direitos humanos, como se fossem apenas valores particulares, de nenhuma validade universal.
Seu contraponto seria a vanguarda eslava, apesar de Alexander Dugin procurar envernizar sua ideologia com a defesa de um mundo multipolar. Paradoxalmente, no entanto, a invasão russa produziu como efeito colateral a união do Ocidente, inaudita no mundo contemporâneo, reproduzindo e ampliando a coligação que levou à derrota dos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Países até então neutros, como Suécia e Finlândia, além dos países bálticos e eslavos, como a Polônia, sentiram-se igualmente ameaçados e reafirmaram suas posições ocidentais, civilizatórias.
E, num efeito não menos paradoxal, observamos hoje que o mundo está se tornando menos multipolar, com uma nova fronteira se desenhando entre ocidentais e antiocidentais.
A Rússia expõe o seu declínio militar e geopolítico, apresentando graves problemas em seu crescimento econômico e na produção de alta tecnologia. A invasão estilhaçou a sua bonita vidraça. Opositores russos estão sendo eliminados, a exemplo de Prigozhin, cujo avião caiu misteriosamente, à luz do dia, demonstrando quem manda no país. E está, cada vez mais, ingressando na órbita da China, que, após expor os dentes em seus exercícios militares no território de Taiwan, opta agora por colher benefícios mais lentos e indiretos, como a ampliação do Brics, que se poderia tornar um polo oposto aos americanos e europeus. Acentua-se, com os novos membros, um perfil antiocidental.
Cabe, ainda, uma última pergunta: de onde provém esta admiração da esquerda mundial e, em particular, latino-americana e brasileira pela Rússia, por Putin, a ponto de tergiversar acerca da invasão russa ou, mesmo, de a justificar? Herança do comunismo? Será por compartilharem do mesmo antiocidentalismo com seus valores liberais e democráticos?
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PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR