Um extraterrestre, tendo visitado o Brasil apenas alguns anos atrás, teria ficado surpreso, senão maravilhado, com o que presenciou. Um país que tinha a corrupção, por assim dizer, naturalizada, caracterizado pelo mais escancarado patrimonialismo, imperando o “é dando que se recebe” em seu sentido mais comezinho, e não religioso, de repente acorda para os imperativos da moralidade, da vida justa. Poderosos de então, mormente nos governos petistas, foram julgados e condenados, alguns presos, com as provas abundando. O Judiciário, unido, deu curso aos processos, das instâncias mais inferiores às mais superiores, aí incluindo o Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o próprio Supremo Tribunal Federal (STF).
Os grandes escândalos do mensalão e do petrolão vieram à tona, políticos foram julgados, dirigentes de empresas privadas e estatais não escaparam à Justiça. Alguns grandes empresários, com destaque para os da J&F e da Odebrecht, fizeram voluntariamente delações premiadas para escaparem da prisão, em confissões explícitas de culpa. O País pareceu, naquele momento, estar em vias de uma espécie de regeneração moral, com alguns juízes e promotores vindo, mesmo, a ocupar um lugar messiânico. Havia um não à corrupção pairando no ar, algo que parecia inexorável, leia-se irreversível. O antigo lema petista de oposição, da “ética na política”, estaria se realizando por intermédio de juízes e promotores que trouxeram ao banco dos réus os que se tinham colocado como os alicerces da moralidade pública. O extraterrestre chegou a ficar aturdido.
Anos depois, incumbido de melhor entender não apenas o planeta, mas uma das maiores áreas deste, o Brasil, desta vez ficou literalmente perplexo. Num primeiro momento, consultando o seu avançado sistema de GPS interespacial, chegou a se perguntar se estava no lugar correto. Nada batia. O país que tinha acordado para a corrupção estava, agora, entorpecido, com uma confusão generalizada entre crime e castigo, algoz e vítima, culpado e inocente. É como se as palavras tivessem perdido sentido, significando algo totalmente outro. O PT tinha conseguido eleger o seu presidente, com Lula despontando apesar de todo o histórico de corrupção partidária. O STF tornou-se um revisor de todas as operações da Lava Jato, como se a corrupção não tivesse jamais existido. Seria uma espécie de fake news inventada “pela direita” ou “extrema direita”.
Um ministro do Supremo, Dias Toffoli, atribui-se a tarefa do revisionismo histórico, como se fosse missão sua revisar segundo o seu arbítrio decisões tomadas numa cadeia hierárquica formada por promotores e procuradores, juízes, desembargadores e ministros. Uma decisão monocrática sua – e agora já são várias – varre para debaixo do tapete, como se fossem inúteis, sentenças e decisões cuidadosamente elaboradas e verificadas. O desrespeito para com esses colegas é flagrante, algo indigno em relação a eles. E, pasmem, até agora, com o olhar complacente dos demais ministros, como se com ele concordassem. Já passou, inclusive, da hora de o Legislativo vir a regulamentar decisões monocráticas que, na verdade, atentam contra o ordenamento jurídico e institucional. Se o STF não consegue coibir os abusos de seus membros, outra instância republicana haverá de fazê-lo.
O extraterrestre está estupefato. Não consegue entender mais nada. Seus pontos de referência voaram pelos ares. Chegou, inclusive, a pensar em abandonar a sua missão. Os novos fatos estão para além de sua compreensão. Um promotor, Deltan Dallagnol, figura importante da Lava Jato, perdeu seu mandato de deputado. O senador Sergio Moro está ameaçado de perder o seu. Os que capitanearam a luta contra a corrupção se tornaram os novos vilões, enquanto muitos dos comprometidos com a mesma corrupção agora se arvoram em defensores da moralidade pública. Eventuais erros processuais, tão alegados atualmente, são utilizados e manipulados para apagar os fatos. O Supremo compactua, agora, com o que antes condenava. Discorda dele mesmo, produzindo insegurança jurídica, até institucional. O País está totalmente do avesso.
O PT, no governo, está literalmente empenhado, junto com ministros do Supremo, num temerário – para não dizer imoral – projeto de revisionismo histórico. São novos escribas a oferecerem uma nova narrativa, como se fatos (notórios) não existissem. Tudo se torna narrativa, outra versão, como se a realidade fosse constituída de uma sucessão de versões, avessas aos fatos, que são, assim, escamoteados, como se fatos não fossem fatos, mas meras narrativas. De moralidade pública não há mais nenhuma palavra, tudo sendo reduzido a declarações alheias ao mundo ao redor. É como se o mundo real fosse somente constituído das falas de dirigentes que procuram de todos os modos ocultar os fatos passados.
Pergunta-se o extraterrestre: será que a corrupção nunca existiu? E as provas, foram colocadas no lixo, onde ninguém pode encontrá-las? Um país carente de bússola moral e de segurança jurídica pode almejar um futuro?
*
PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR