Fatos são incontornáveis, apesar de diferentes narrativas procurarem contorná-los, deformá-los ou, mesmo, os falsificarem. Resistem, por isso mesmo, a abordagens ideológicas que obedecem a propósitos meramente políticos, cujos objetivos consistem em impor uma mera versão carente de verdade.
Se não houve golpe no Brasil, é porque os militares não quiseram embarcar numa aventura inconstitucional. Golpes são atos de violência que requerem o uso da força, sem a qual suas chances de sucesso, se existentes, são mínimas. Chávez, na Venezuela, só consumou sua dominação despótica após ter cooptado as Forças Armadas, corrompendo-as. Por via de consequência, se o Brasil não sucumbiu à tentação autoritária de Bolsonaro e seus êmulos, isso se deve a que os militares optaram por seguir a Constituição. Divergências internas entre militares golpistas e democráticos foram resolvidas com a vitória destes últimos e do Brasil.
Narrativas atuais procurando responsabilizar os militares por delírios bolsonaristas não resistem aos fatos. Se fossem verdadeiras, o golpe teria se consumado. Houve, sim, grupos militares que procuraram se afastar da Constituição, mas foram barrados por generais do alto comando que se formaram no respeito à democracia. Foram nos currículos das escolas militares educados e formados. Não lhes foi inculcado o desrespeito às normas constitucionais. A tentativa atual de certos grupos ideologizados de aproveitarem as circunstâncias do 8 de janeiro para alterarem a formação militar deveria precisamente suscitar a seguinte pergunta: o que neles há de certo que os militares neles formados aprenderam a respeitar a democracia? Se tivessem sido formados na preparação do golpe, a situação do País seria totalmente diferente.
Golpe, enquanto ato de violência, não precisa recorrer a nenhum artigo constitucional – na ocorrência, o 142. Prescindem, por definição, de um tal recurso. Se alguns a ele recorreram foi com o intuito de subverter o arcabouço constitucional. No entanto, como essa discussão entrou em pauta, a partir de projetos para alterá-lo, cabem algumas observações.
Primeiro, golpes não necessitam de nenhum parecer para serem executados. Seria nada mais do que um artifício retórico. Imaginem uma intervenção militar amparada em um parecer, como se esse tivesse força de lei ou, mais do que isso, estivesse situado acima da Constituição e do Supremo Tribunal Federal. Seria, pura e simplesmente, um disparate. Um advogado determinado seria ungido à posição de árbitro constitucional, ao qual ministros deveriam obediência.
Segundo, o artigo 142 não contempla nenhum poder moderador a ser atribuído às Forças Armadas. Trata-se de uma mera ficção. Tampouco nele consta que as Forças Armadas possam se autoposicionar como fiéis depositárias das “garantias constitucionais”. Ou seja, elas não podem se autoconvocar, por estarem, precisamente, subordinadas ao poder civil. Sua convocação depende de atos dos presidentes de alguns dos Poderes, a saber, Executivo, Judiciário e Legislativo. Cabe, portanto, ao poder civil, neste caso do presidente da República, a convocação dos militares para ações determinadas como a GLO, a missão de Garantia da Lei e da Ordem.
Terceiro, a GLO só pode ser acionada com propósito preciso, com funções determinadas, num local restrito e com duração definida, além da escolha do comandante desta operação específica. Foram acionadas dezenas de vezes por vários governantes após a Constituição de 1988, e nenhuma delas ensejou um golpe qualquer. O maior beneficiário foi sempre o País. Não há convocação possível da GLO para dar um golpe, algo totalmente implausível. Isso só ocorre no devaneio do desconhecimento e, talvez, da tentativa de tumultuar a estabilidade institucional.
Quanto à participação dos militares em funções civis – recurso usado abusivamente pelo presidente Bolsonaro –, a solução é simples e carece de qualquer Proposta de Emenda à Constituição (PEC). Trata-se de um assunto infraconstitucional, podendo ser resolvido em sua particular esfera legal. Por exemplo, um militar convocado para ocupar um cargo civil deveria passar imediatamente à reserva, cabendo-lhe a decisão de querer ou não se manter na instituição militar. O que não pode é usufruir de uma, servindo à outra.
É mais do que urgente pacificar o País e fortalecer a instituição militar em seu compromisso democrático, demonstrado no estertor do governo Bolsonaro. Recorrer, agora, a uma PEC para alterar esse artigo só produzirá novos conflitos e polarizações. Toda vez que ele foi empregado, seus efeitos foram benéficos, não se tendo prestado a nenhuma tentativa golpista. Na situação atual, mais vale apaziguar os ânimos e não embarcar em controvérsias cujo desfecho é imprevisível. Quando se entra numa discussão deste tipo, necessariamente controversa e polarizada, não se pode prever o seu resultado. O Brasil tem temas mais relevantes a tratar e deveria olhar para o futuro, não se atendo a radicalizações passadas.
*
PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR