Espalhou-se um estranho – para não dizer bizarro – consenso na sociedade brasileira segundo o qual a verdadeira cidadania só se exerceria com a obrigatoriedade do voto. Impõe-se arbitrariamente um determinado comportamento político, como se esse padrão devesse por todos ser seguido como algo “natural”. Alguns vão mais além, chegando a afirmar que a verdadeira liberdade assim se realizaria, quando, na verdade, o que acontece é a sua restrição.
Benjamin Constant, já no século 19, estabeleceu uma importante distinção entre a vida pública e a privada, mostrando que uma das grandes conquistas da modernidade consistia na liberdade de escolha de participar ou não da vida política. É perfeitamente legítimo que uma pessoa decida dedicar-se a seus afazeres privados, sem que o Estado tenha nada que ver com isso. Defende, apenas, que ele não intervenha neste âmbito, assegurando o exercício da liberdade em suas múltiplas acepções. Ou seja, decide dedicar-se aos seus prazeres e aos seus bens, não cabendo ao Estado lhe impingir qualquer tipo de obrigatoriedade como a de votar. Em vez de politizar-se como se fosse uma obrigação, por que não dedicar-se ao seu trabalho, a melhorar a vida dos seus, a namorar, beber, comer, fumar, ver filmes ou algo mais que lhe apeteça? No dia das eleições, tem uma miríade de opções à sua volta!
No exercício de suas liberdades, os cidadãos escolhem fazer determinadas coisas, e não outras, segundo as regras de não atentar à vida e aos bens físicos dos outros, conforme os seus desejos e interesses. A esfera política é apenas um âmbito dessas atividades, e não certamente o central. O voto, resultado deste exercício, é uma opção à disposição das pessoas para decidirem por um ou outro dos contendores numa disputa eleitoral, sem que seja obrigado a escolher necessariamente um desses candidatos. Sua decisão pode simplesmente ser não aceitar nenhum destes contendores, sem que isso signifique que seja mais ou menos consciente, mais ou menos responsável. A sua decisão, válida por si mesma, pode ser não comparecer às eleições ou, em caso de obrigatoriedade, votar nulo ou em branco. Está, isso sim, exercendo a sua cidadania!
Que uma pessoa goste ou não de Bolsonaro, daí não se segue que esteja obrigada a votar em Lula. Que uma pessoa goste ou não de Lula, daí não se segue que seja obrigada a votar em Bolsonaro. Num cenário de obrigatoriedade de votar, pode, em primeiro turno, escolher Simone Tebet, Ciro Gomes, Luiz Felipe D’Ávila ou outro candidato. Num segundo turno, é igualmente legítimo não comparecer à votação, votar nulo ou em branco. Estará dizendo um sonoro não aos dois candidatos polarizados, sem que a democracia seja minimamente desvalorizada. Diria que ela sairia engrandecida.
Lula e Bolsonaro, ambos, não têm muitas credenciais democráticas. Aparentam jogar o jogo, quando pretendem subverter as suas regras. A homenagem à democracia é frequentemente de fachada.
Lula comprazia-se em defender ditadores de esquerda, seja na África, seja na América Latina. A Venezuela destruída pelo chavismo foi dita exemplo de democracia. Os opositores da ditadura cubana são sistematicamente presos, com o candidato ficando mudo. A pior opressão latino-americana é objeto de defesa. Ditadores africanos tiveram suas dívidas para com o Brasil canceladas pelo então presidente, com os recursos desses países sendo desviados para a França e a Inglaterra, quando não para a compra de armamentos a serem utilizados em guerras tribais. No exercício de sua presidência, foram inúmeras as tentativas de censura da imprensa e dos meios televisivos, tudo com o bonito nome, ainda utilizado, de “controle social da mídia”. O MST, com armas de fogo e brancas, infernizava o campo brasileiro, não respeitando a propriedade, e tudo isso com o beneplácito governamental. Será que o agora candidato mudou?
Bolsonaro, um dia sim, outro também, não cessa de ameaçar as instituições democráticas. Atiça as Forças Armadas a lhe seguirem, como se um golpe fosse possível ou iminente. As regras eleitorais, com destaque para as urnas eletrônicas, nunca fraudadas, são incessantemente contestadas. Se as eleições foram fraudadas, como explicar a sua eleição, a dos seus filhos e a de todos os parlamentares que vieram a constituir a base do bolsonarismo? Para serem coerentes, deveriam renunciar aos seus mandatos. Várias vezes, afirmou que, se suas decisões não fossem acatadas, não respeitaria o resultado das eleições. Para ele, o seu sucesso significa que a democracia foi seguida; a sua derrota, que a democracia estaria em risco. Melhor argumento autoritário não há.
Se você não está satisfeito com os candidatos que lhe são apresentados, fique em casa ou, se decidir ir às seções eleitorais, vote nulo ou em branco. Eis a sua liberdade, inclusive em sua acepção política. Você está no direito de dizer não aos candidatos, recusando qualquer radicalização! Certamente, você sairá maior, e não menor, desta sua opção.
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PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR