Opinião|1984, o ano que mal começou


A vontade de ofender pode ser moralmente repulsiva, mas criminalizá-la desencadeará mais conflitos, violência e opressão

Por Marcelo Consentino

Em 1.º de abril – o “Dia dos Tolos” anglo-saxão – entrou em vigor na Escócia a Lei de Crime de Ódio. Falas que podem “excitar” o ódio, até em canais privados ou em casa, são puníveis, mesmo sem dolo ou dano, com sete anos de cadeia. Para “características protegidas”, como raça, nacionalidade, orientação sexual ou identidade transgênero, até manifestações de “antipatia, aversão, ridículo ou insulto” são crimes. Os escoceses devem vigiar e punir as emoções dos outros com o aparato persecutório do Estado, e internalizá-lo para policiar seus pensamentos e manifestações.

No mesmo dia, a britânica mais bem-sucedida em manifestar emoções, a criadora de Harry Potter, J. K. Rowling, postou histórias de homens que mesmo sem mudança de sexo se autodeclaram mulheres, incluindo estupradores e pedófilos. “São todos homens”, disse. “Quando eu retornar ao berço do iluminismo escocês, aguardo ansiosamente para ser presa.” A menos que as autoridades quisessem desnudar o absurdo da lei, não seria, como não foi. Alguém sugeriu que não intimidariam ricos e famosos, mas pessoas comuns não teriam a mesma sorte, e Rowling publicou: “Se forem atrás de qualquer mulher por simplesmente chamar um homem de homem, eu repetirei as palavras dessa mulher e eles podem processar a nós duas”. Alusões à distopia de George Orwell são batidas, mas é difícil pensar em uma mais adequada: “O Partido disse para você rejeitar a evidência de seus olhos e ouvidos. Era o seu último e mais essencial comando”.

A nossa deveria ser uma era de ouro da liberdade de expressão. No pós-guerra, a concepção maximalista dos EUA, onde partidos nazistas e comunistas podem se manifestar e se eleger, prevaleceu na Declaração dos Direitos Humanos da ONU e influenciou a onda democratizante que varreu a Cortina de Ferro. Os criadores da internet vislumbravam um espaço descentralizado inatingível pela censura de sistemas hierárquicos de classificação.

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Mas a blague de Bill Clinton sobre as tentativas da China de controlar a internet (“como pregar gelatina na parede”) envelheceu mal. Regimes totalitários têm nas redes uma máquina de manipulação e repressão inimaginável nos sonhos mais selvagens de Hitler ou Stalin. O excepcionalismo americano perdeu apelo. Vanguardas progressistas nos palácios do poder, universidades, redações veem as massas saturadas de preconceitos e “fobias”, e a si mesmas como “engenheiros de almas”, na expressão de Stalin. É preciso “desconstruir” o sujeito comum, conformar sua mente às verdades chanceladas e erradicar “antipatias” e “aversões” de seu coração com táticas dos antigos Estados confessionais: inquisições ortodoxas, proselitismo, perseguição a hereges, rituais de autoflagelação.

A vida em liberdade exige estômago para opiniões e até mentiras ofensivas e asquerosas. Mas “a luz do Sol é o melhor desinfetante; a iluminação pública é a melhor polícia”. Como disse Jacob Mchangama, autor de História da Liberdade de Expressão, “combater ideias iliberais com leis iliberais não só perpetua o iliberalismo, como remove a ‘válvula de escape’ que permite que ideias nocivas se diluam na sociedade ao invés de intensificar a pressão até explodirem”.

Pessoas em pânico com extremismos imaginam que se houvesse leis reprimindo o ódio a catástrofe nazista não teria acontecido. Mas havia muitas dessas leis na República de Weimar e foram duramente aplicadas aos nazistas. Eles se martirizaram, se radicalizaram, e quando tomaram o poder empregaram as mesmas leis para destruir os dissidentes.

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Deve haver limites indestrutíveis à liberdade de expressão, como violação da privacidade, pornografia infantil, fraude, calúnia, incitação direta à violência. Mas tal como o direito à vida é o pai de todos os direitos, a liberdade de expressão é a mãe de todas as liberdades. Restringi-la além do mínimo necessário é tomar dos oprimidos sua mais poderosa arma e entregá-la aos opressores. Os soviéticos fabricaram várias leis para punir preconceitos e lutaram para que as Nações Unidas tivessem não só o direito, mas também o dever de criminalizá-los. Hoje há mais dessas leis na Europa do que há 30 anos. A Venezuela está editando a legislação mais ampla das Américas.

Toda grande inovação científica, artística, espiritual foi inicialmente percebida pelas maiorias como subversiva ou repulsiva. Toda grande distribuição igualitária de poder sofreu resistência das elites. Foi por “desinformação”, “discursos de ódio” ou “ataques às instituições” que ativistas como Alexei Navalny, o “rebelde desconhecido” da Praça da Paz Celestial, Martin Luther King Jr. ou Gandhi foram punidos. Foram os Estados Democráticos de Direito de então, com suas cortes, ritos e assembleias populares, que executaram Sócrates e Jesus Cristo.

Dê aos poderosos o poder de punir discursos de ódio e eles punirão todo discurso que odeiam. Como Mchangama conclui no fim de seu périplo, “um olhar cuidadoso à História sugere que a liberdade de expressão faz o mundo mais tolerante, democrático, livre, inovador e, sim, até mais divertido”. Sobretudo mais divertido. 1984 precisa acabar.

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DOUTOR EM FILOSOFIA DA RELIGIÃO PELA PUC-SP, É APRESENTADOR DO PODCAST ‘O ESTADO DA ARTE’

Em 1.º de abril – o “Dia dos Tolos” anglo-saxão – entrou em vigor na Escócia a Lei de Crime de Ódio. Falas que podem “excitar” o ódio, até em canais privados ou em casa, são puníveis, mesmo sem dolo ou dano, com sete anos de cadeia. Para “características protegidas”, como raça, nacionalidade, orientação sexual ou identidade transgênero, até manifestações de “antipatia, aversão, ridículo ou insulto” são crimes. Os escoceses devem vigiar e punir as emoções dos outros com o aparato persecutório do Estado, e internalizá-lo para policiar seus pensamentos e manifestações.

No mesmo dia, a britânica mais bem-sucedida em manifestar emoções, a criadora de Harry Potter, J. K. Rowling, postou histórias de homens que mesmo sem mudança de sexo se autodeclaram mulheres, incluindo estupradores e pedófilos. “São todos homens”, disse. “Quando eu retornar ao berço do iluminismo escocês, aguardo ansiosamente para ser presa.” A menos que as autoridades quisessem desnudar o absurdo da lei, não seria, como não foi. Alguém sugeriu que não intimidariam ricos e famosos, mas pessoas comuns não teriam a mesma sorte, e Rowling publicou: “Se forem atrás de qualquer mulher por simplesmente chamar um homem de homem, eu repetirei as palavras dessa mulher e eles podem processar a nós duas”. Alusões à distopia de George Orwell são batidas, mas é difícil pensar em uma mais adequada: “O Partido disse para você rejeitar a evidência de seus olhos e ouvidos. Era o seu último e mais essencial comando”.

A nossa deveria ser uma era de ouro da liberdade de expressão. No pós-guerra, a concepção maximalista dos EUA, onde partidos nazistas e comunistas podem se manifestar e se eleger, prevaleceu na Declaração dos Direitos Humanos da ONU e influenciou a onda democratizante que varreu a Cortina de Ferro. Os criadores da internet vislumbravam um espaço descentralizado inatingível pela censura de sistemas hierárquicos de classificação.

Mas a blague de Bill Clinton sobre as tentativas da China de controlar a internet (“como pregar gelatina na parede”) envelheceu mal. Regimes totalitários têm nas redes uma máquina de manipulação e repressão inimaginável nos sonhos mais selvagens de Hitler ou Stalin. O excepcionalismo americano perdeu apelo. Vanguardas progressistas nos palácios do poder, universidades, redações veem as massas saturadas de preconceitos e “fobias”, e a si mesmas como “engenheiros de almas”, na expressão de Stalin. É preciso “desconstruir” o sujeito comum, conformar sua mente às verdades chanceladas e erradicar “antipatias” e “aversões” de seu coração com táticas dos antigos Estados confessionais: inquisições ortodoxas, proselitismo, perseguição a hereges, rituais de autoflagelação.

A vida em liberdade exige estômago para opiniões e até mentiras ofensivas e asquerosas. Mas “a luz do Sol é o melhor desinfetante; a iluminação pública é a melhor polícia”. Como disse Jacob Mchangama, autor de História da Liberdade de Expressão, “combater ideias iliberais com leis iliberais não só perpetua o iliberalismo, como remove a ‘válvula de escape’ que permite que ideias nocivas se diluam na sociedade ao invés de intensificar a pressão até explodirem”.

Pessoas em pânico com extremismos imaginam que se houvesse leis reprimindo o ódio a catástrofe nazista não teria acontecido. Mas havia muitas dessas leis na República de Weimar e foram duramente aplicadas aos nazistas. Eles se martirizaram, se radicalizaram, e quando tomaram o poder empregaram as mesmas leis para destruir os dissidentes.

Deve haver limites indestrutíveis à liberdade de expressão, como violação da privacidade, pornografia infantil, fraude, calúnia, incitação direta à violência. Mas tal como o direito à vida é o pai de todos os direitos, a liberdade de expressão é a mãe de todas as liberdades. Restringi-la além do mínimo necessário é tomar dos oprimidos sua mais poderosa arma e entregá-la aos opressores. Os soviéticos fabricaram várias leis para punir preconceitos e lutaram para que as Nações Unidas tivessem não só o direito, mas também o dever de criminalizá-los. Hoje há mais dessas leis na Europa do que há 30 anos. A Venezuela está editando a legislação mais ampla das Américas.

Toda grande inovação científica, artística, espiritual foi inicialmente percebida pelas maiorias como subversiva ou repulsiva. Toda grande distribuição igualitária de poder sofreu resistência das elites. Foi por “desinformação”, “discursos de ódio” ou “ataques às instituições” que ativistas como Alexei Navalny, o “rebelde desconhecido” da Praça da Paz Celestial, Martin Luther King Jr. ou Gandhi foram punidos. Foram os Estados Democráticos de Direito de então, com suas cortes, ritos e assembleias populares, que executaram Sócrates e Jesus Cristo.

Dê aos poderosos o poder de punir discursos de ódio e eles punirão todo discurso que odeiam. Como Mchangama conclui no fim de seu périplo, “um olhar cuidadoso à História sugere que a liberdade de expressão faz o mundo mais tolerante, democrático, livre, inovador e, sim, até mais divertido”. Sobretudo mais divertido. 1984 precisa acabar.

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DOUTOR EM FILOSOFIA DA RELIGIÃO PELA PUC-SP, É APRESENTADOR DO PODCAST ‘O ESTADO DA ARTE’

Em 1.º de abril – o “Dia dos Tolos” anglo-saxão – entrou em vigor na Escócia a Lei de Crime de Ódio. Falas que podem “excitar” o ódio, até em canais privados ou em casa, são puníveis, mesmo sem dolo ou dano, com sete anos de cadeia. Para “características protegidas”, como raça, nacionalidade, orientação sexual ou identidade transgênero, até manifestações de “antipatia, aversão, ridículo ou insulto” são crimes. Os escoceses devem vigiar e punir as emoções dos outros com o aparato persecutório do Estado, e internalizá-lo para policiar seus pensamentos e manifestações.

No mesmo dia, a britânica mais bem-sucedida em manifestar emoções, a criadora de Harry Potter, J. K. Rowling, postou histórias de homens que mesmo sem mudança de sexo se autodeclaram mulheres, incluindo estupradores e pedófilos. “São todos homens”, disse. “Quando eu retornar ao berço do iluminismo escocês, aguardo ansiosamente para ser presa.” A menos que as autoridades quisessem desnudar o absurdo da lei, não seria, como não foi. Alguém sugeriu que não intimidariam ricos e famosos, mas pessoas comuns não teriam a mesma sorte, e Rowling publicou: “Se forem atrás de qualquer mulher por simplesmente chamar um homem de homem, eu repetirei as palavras dessa mulher e eles podem processar a nós duas”. Alusões à distopia de George Orwell são batidas, mas é difícil pensar em uma mais adequada: “O Partido disse para você rejeitar a evidência de seus olhos e ouvidos. Era o seu último e mais essencial comando”.

A nossa deveria ser uma era de ouro da liberdade de expressão. No pós-guerra, a concepção maximalista dos EUA, onde partidos nazistas e comunistas podem se manifestar e se eleger, prevaleceu na Declaração dos Direitos Humanos da ONU e influenciou a onda democratizante que varreu a Cortina de Ferro. Os criadores da internet vislumbravam um espaço descentralizado inatingível pela censura de sistemas hierárquicos de classificação.

Mas a blague de Bill Clinton sobre as tentativas da China de controlar a internet (“como pregar gelatina na parede”) envelheceu mal. Regimes totalitários têm nas redes uma máquina de manipulação e repressão inimaginável nos sonhos mais selvagens de Hitler ou Stalin. O excepcionalismo americano perdeu apelo. Vanguardas progressistas nos palácios do poder, universidades, redações veem as massas saturadas de preconceitos e “fobias”, e a si mesmas como “engenheiros de almas”, na expressão de Stalin. É preciso “desconstruir” o sujeito comum, conformar sua mente às verdades chanceladas e erradicar “antipatias” e “aversões” de seu coração com táticas dos antigos Estados confessionais: inquisições ortodoxas, proselitismo, perseguição a hereges, rituais de autoflagelação.

A vida em liberdade exige estômago para opiniões e até mentiras ofensivas e asquerosas. Mas “a luz do Sol é o melhor desinfetante; a iluminação pública é a melhor polícia”. Como disse Jacob Mchangama, autor de História da Liberdade de Expressão, “combater ideias iliberais com leis iliberais não só perpetua o iliberalismo, como remove a ‘válvula de escape’ que permite que ideias nocivas se diluam na sociedade ao invés de intensificar a pressão até explodirem”.

Pessoas em pânico com extremismos imaginam que se houvesse leis reprimindo o ódio a catástrofe nazista não teria acontecido. Mas havia muitas dessas leis na República de Weimar e foram duramente aplicadas aos nazistas. Eles se martirizaram, se radicalizaram, e quando tomaram o poder empregaram as mesmas leis para destruir os dissidentes.

Deve haver limites indestrutíveis à liberdade de expressão, como violação da privacidade, pornografia infantil, fraude, calúnia, incitação direta à violência. Mas tal como o direito à vida é o pai de todos os direitos, a liberdade de expressão é a mãe de todas as liberdades. Restringi-la além do mínimo necessário é tomar dos oprimidos sua mais poderosa arma e entregá-la aos opressores. Os soviéticos fabricaram várias leis para punir preconceitos e lutaram para que as Nações Unidas tivessem não só o direito, mas também o dever de criminalizá-los. Hoje há mais dessas leis na Europa do que há 30 anos. A Venezuela está editando a legislação mais ampla das Américas.

Toda grande inovação científica, artística, espiritual foi inicialmente percebida pelas maiorias como subversiva ou repulsiva. Toda grande distribuição igualitária de poder sofreu resistência das elites. Foi por “desinformação”, “discursos de ódio” ou “ataques às instituições” que ativistas como Alexei Navalny, o “rebelde desconhecido” da Praça da Paz Celestial, Martin Luther King Jr. ou Gandhi foram punidos. Foram os Estados Democráticos de Direito de então, com suas cortes, ritos e assembleias populares, que executaram Sócrates e Jesus Cristo.

Dê aos poderosos o poder de punir discursos de ódio e eles punirão todo discurso que odeiam. Como Mchangama conclui no fim de seu périplo, “um olhar cuidadoso à História sugere que a liberdade de expressão faz o mundo mais tolerante, democrático, livre, inovador e, sim, até mais divertido”. Sobretudo mais divertido. 1984 precisa acabar.

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DOUTOR EM FILOSOFIA DA RELIGIÃO PELA PUC-SP, É APRESENTADOR DO PODCAST ‘O ESTADO DA ARTE’

Em 1.º de abril – o “Dia dos Tolos” anglo-saxão – entrou em vigor na Escócia a Lei de Crime de Ódio. Falas que podem “excitar” o ódio, até em canais privados ou em casa, são puníveis, mesmo sem dolo ou dano, com sete anos de cadeia. Para “características protegidas”, como raça, nacionalidade, orientação sexual ou identidade transgênero, até manifestações de “antipatia, aversão, ridículo ou insulto” são crimes. Os escoceses devem vigiar e punir as emoções dos outros com o aparato persecutório do Estado, e internalizá-lo para policiar seus pensamentos e manifestações.

No mesmo dia, a britânica mais bem-sucedida em manifestar emoções, a criadora de Harry Potter, J. K. Rowling, postou histórias de homens que mesmo sem mudança de sexo se autodeclaram mulheres, incluindo estupradores e pedófilos. “São todos homens”, disse. “Quando eu retornar ao berço do iluminismo escocês, aguardo ansiosamente para ser presa.” A menos que as autoridades quisessem desnudar o absurdo da lei, não seria, como não foi. Alguém sugeriu que não intimidariam ricos e famosos, mas pessoas comuns não teriam a mesma sorte, e Rowling publicou: “Se forem atrás de qualquer mulher por simplesmente chamar um homem de homem, eu repetirei as palavras dessa mulher e eles podem processar a nós duas”. Alusões à distopia de George Orwell são batidas, mas é difícil pensar em uma mais adequada: “O Partido disse para você rejeitar a evidência de seus olhos e ouvidos. Era o seu último e mais essencial comando”.

A nossa deveria ser uma era de ouro da liberdade de expressão. No pós-guerra, a concepção maximalista dos EUA, onde partidos nazistas e comunistas podem se manifestar e se eleger, prevaleceu na Declaração dos Direitos Humanos da ONU e influenciou a onda democratizante que varreu a Cortina de Ferro. Os criadores da internet vislumbravam um espaço descentralizado inatingível pela censura de sistemas hierárquicos de classificação.

Mas a blague de Bill Clinton sobre as tentativas da China de controlar a internet (“como pregar gelatina na parede”) envelheceu mal. Regimes totalitários têm nas redes uma máquina de manipulação e repressão inimaginável nos sonhos mais selvagens de Hitler ou Stalin. O excepcionalismo americano perdeu apelo. Vanguardas progressistas nos palácios do poder, universidades, redações veem as massas saturadas de preconceitos e “fobias”, e a si mesmas como “engenheiros de almas”, na expressão de Stalin. É preciso “desconstruir” o sujeito comum, conformar sua mente às verdades chanceladas e erradicar “antipatias” e “aversões” de seu coração com táticas dos antigos Estados confessionais: inquisições ortodoxas, proselitismo, perseguição a hereges, rituais de autoflagelação.

A vida em liberdade exige estômago para opiniões e até mentiras ofensivas e asquerosas. Mas “a luz do Sol é o melhor desinfetante; a iluminação pública é a melhor polícia”. Como disse Jacob Mchangama, autor de História da Liberdade de Expressão, “combater ideias iliberais com leis iliberais não só perpetua o iliberalismo, como remove a ‘válvula de escape’ que permite que ideias nocivas se diluam na sociedade ao invés de intensificar a pressão até explodirem”.

Pessoas em pânico com extremismos imaginam que se houvesse leis reprimindo o ódio a catástrofe nazista não teria acontecido. Mas havia muitas dessas leis na República de Weimar e foram duramente aplicadas aos nazistas. Eles se martirizaram, se radicalizaram, e quando tomaram o poder empregaram as mesmas leis para destruir os dissidentes.

Deve haver limites indestrutíveis à liberdade de expressão, como violação da privacidade, pornografia infantil, fraude, calúnia, incitação direta à violência. Mas tal como o direito à vida é o pai de todos os direitos, a liberdade de expressão é a mãe de todas as liberdades. Restringi-la além do mínimo necessário é tomar dos oprimidos sua mais poderosa arma e entregá-la aos opressores. Os soviéticos fabricaram várias leis para punir preconceitos e lutaram para que as Nações Unidas tivessem não só o direito, mas também o dever de criminalizá-los. Hoje há mais dessas leis na Europa do que há 30 anos. A Venezuela está editando a legislação mais ampla das Américas.

Toda grande inovação científica, artística, espiritual foi inicialmente percebida pelas maiorias como subversiva ou repulsiva. Toda grande distribuição igualitária de poder sofreu resistência das elites. Foi por “desinformação”, “discursos de ódio” ou “ataques às instituições” que ativistas como Alexei Navalny, o “rebelde desconhecido” da Praça da Paz Celestial, Martin Luther King Jr. ou Gandhi foram punidos. Foram os Estados Democráticos de Direito de então, com suas cortes, ritos e assembleias populares, que executaram Sócrates e Jesus Cristo.

Dê aos poderosos o poder de punir discursos de ódio e eles punirão todo discurso que odeiam. Como Mchangama conclui no fim de seu périplo, “um olhar cuidadoso à História sugere que a liberdade de expressão faz o mundo mais tolerante, democrático, livre, inovador e, sim, até mais divertido”. Sobretudo mais divertido. 1984 precisa acabar.

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DOUTOR EM FILOSOFIA DA RELIGIÃO PELA PUC-SP, É APRESENTADOR DO PODCAST ‘O ESTADO DA ARTE’

Opinião por Marcelo Consentino

Doutor em Filosofia da Religião pela PUC-SP, é apresentador do podcast ‘O Estado da Arte’

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