Desde o término das eleições, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro vêm questionando a prestação de continência pelos militares ao presidente Lula da Silva. Projetando sobre os militares da ativa as severas restrições que possuem em relação ao novo presidente, eles escolheram a continência para simbolizar submissão e comunhão de ideias entre aqueles que a prestam e seu destinatário. Entretanto, esse uso metafórico da continência é equivocado, pois ela não convém ao propósito visado. De qualquer modo, o tema é instigante e merece ser explorado.
A continência é um gesto singelo. Trata-se, segundo o regulamento militar, de um ato pelo qual os membros das Forças Armadas manifestam respeito por seus superiores, dignitários e símbolos nacionais. Define ainda o regulamento que a continência é um procedimento impessoal, ou seja, destinado à autoridade, e não à pessoa dela investida. Assim, o verdadeiro objeto do questionamento dos partidários do ex-presidente não deveria ser a continência em si, mas o que passa pela cabeça de quem a realiza. Essa abordagem procede, pois a História é cheia de exemplos de militares que prestavam garbosas continências ao mesmo tempo que conspiravam contra o chefe do Estado.
Com relação a esse assunto, os preceitos da disciplina e da ética militar são claros. Os militares se obrigam a respeitar os superiores como autoridades legalmente constituídas. Na presença do presidente da República, que é o comandante supremo das Forças Armadas, eles devem guiar-se pelo respeito funcional devido e considerá-lo pela “autoridade” que representa, mesmo que, como cidadãos, tenham restrições a sua pessoa ou atuação política. É como se o militar possuísse dois “papéis” – um profissional e outro igual ao de qualquer cidadão civil – e tivesse que representar cada um de acordo com o momento.
Lidar com essa situação é algo difícil, que requer formação apurada e entendimento claro. Mas é também uma exigência crucial. No momento em que estão exercendo suas atribuições, soldados, marinheiros e aviadores são “profissionais militares” e devem abdicar de opiniões políticas. Do mesmo modo, na presença de uma autoridade política ou tratando com ela assuntos de sua profissão, eles precisam ser apolíticos.
Várias instituições militares se esmeram em educar seus integrantes para cumprir bem a servidão de alternância de papéis. Dentre elas, eu destacaria as Forças Armadas da República Federal da Alemanha.
As Forças Armadas alemãs foram criadas em 1955, alicerçadas em dois conceitos filosóficos que visavam a moldá-las a um Estado Democrático de Direito: o militar como “cidadão em uniforme” e a “liderança interior”, ou Innere Führung. Os militares alemães se consideram cidadãos fardados, ou seja, são, antes de tudo, cidadãos. Além disso, eles têm a obrigação adicional de defender os valores e normas da Constituição de seu país. Para tanto, eles são educados, orientam-se e comportam-se segundo as premissas da Innere Führung. Os militares são estimulados a pensar criticamente; a identificar os critérios éticos, morais e legais que legitimam suas atribuições; e a tomar decisões de consciência, inclusive a decisão de obedecer. O próprio soldado, com seus pensamentos e consciência moral, torna-se assim a derradeira instância a determinar seus comportamentos e ações. Por conta disso, os cidadãos alemães reconhecem os militares como pares envergando uniformes e, sabendo-os preparados para ter entendimentos baseados nos valores e leis da Alemanha, confiam neles e os apoiam. O exemplo da Alemanha é ainda mais interessante porque, além de abranger a questão dos dois papéis, coloca em evidência o ente superior que os concilia: a Constituição alemã. A Lei Maior constitui um imperativo para o cidadão fardado, seja como militar, seja como cidadão. Desse modo, a sistemática alemã de estruturação militar e de relações civis-militares é moderna e eficiente. A despeito da história e cultura peculiares daquele país, ela deve merecer a atenção de outras Forças Armadas.
Enfim, a competência funcional do militar e sua mentalidade profissional, a qual inclui a neutralidade política no exercício de suas atribuições, são de fundamental importância para uma sólida identidade profissional e a vida normal da sociedade. O envolvimento indiscriminado e sem critério de oficiais e praças com a política tem sérias consequências, como turvar seu julgamento técnico-profissional, comprometer as relações civis-militares e, talvez o mais grave de todos, prejudicar o necessário apoio da sociedade em caso de crise ou guerra. Portanto, tal disfunção deve ser evitada a todo custo.
Em O Soldado e o Estado, Samuel Huntington sugere que o senso profissional militar tem fundamento no exercício de uma vocação elevada, a de servir à sociedade. Nesse sentido, felizes são os militares das democracias. A esses é dado saber a que seus concidadãos, em sua maioria, aspiram.
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GENERAL DE DIVISÃO NA RESERVA, É DOUTOR EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS PELA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA