Opinião|A entropia da Medicina


‘Mais Médicos’ vende a ideia de que é melhor ter um profissional que nem sequer sabemos se é médico do que investir, de fato, em reestruturação da rede de atendimento

Por Eduardo Neubarth Trindade

A física termodinâmica tem o conceito de entropia, que é a medida do grau de desordem de um sistema físico. Esse conceito está intimamente ligado à ideia de deterioração: gelo derretendo, flores murchando e vidro quebrando são exemplos de entropia.

De forma metafórica, podemos dizer que a Medicina brasileira também está em franco processo de entropia. E, diferentemente dos processos naturais, esse efeito não é espontâneo – vem sendo forçado há anos e encontra-se em ponto crítico.

Testemunhamos um forte retorno à mercantilização da formação médica, com a abertura indiscriminada de faculdades de Medicina sem condições de funcionamento. As universidades garantem que a abertura de vagas tem a finalidade de suprir uma suposta demanda por médicos, principalmente no interior, e de cumprir um objetivo social. No entanto, fica escancarado o único propósito de gerar receita e salvar financeiramente essas instituições, uma vez que oferecem formação de baixa qualidade, em massa, a um custo elevado para quem paga.

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Na verdade, temos de fechar os cursos sem qualidade. O Brasil tem mais escolas do que a média mundial, e a maioria delas nem sequer tem os critérios mínimos exigidos pelo Ministério da Educação, que são: número de leitos do Sistema Único de Saúde (SUS) por aluno; existência de leitos de urgência e emergência ou pronto-socorro; grau de comprometimento dos leitos do SUS para utilização acadêmica; existência de programas de residência médica nas especialidades prioritárias; hospital de ensino ou unidade hospitalar com potencial para ser certificado como hospital de ensino; entre outros.

Políticos, tanto de esquerda quanto de direita, têm interesse nessa demanda, porque cedem à pressão do lobby econômico dos grupos educacionais ou porque querem a oferta em massa de médicos.

Antes que surjam acusações, não é uma questão de reserva de mercado. Trata-se de uma exigência por qualidade na formação. A maioria dessas faculdades promove vestibulares duvidosos, permite o ingresso de candidatos por meio de uma redação e até com nota do Enem zerada e, mais adiante, aprova 100% dos alunos que pagaram a mensalidade e cumpriram os seis anos de formação. Os professores não têm exigência de qualificação. Que médico está recebendo o diploma? Que tipo de ensino prático ele recebeu? Você encaminharia seu filho para tratamento ou procedimento com um profissional com essa formação?

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Se continuarmos dessa forma, vão acabar existindo duas Medicinas: uma, de primeira linha, com médicos bem preparados; e outra para pacientes que dependem do SUS. E, como o atendimento primário será de baixa qualidade, as emergências permanecerão lotadas com casos cada vez mais graves, vítimas de diagnóstico tardio ou de complicações.

Um posto de saúde numa cidade remota não pode ser a porta de entrada para o profissional recém-formado, mas uma escolha profissional para quem já tem idealmente especialidade na área – a Medicina de Família e Comunidade. Esse médico especializado consegue resolver 80% dos problemas em seu município, visto que a saúde básica apresenta uma série de desafios próprios. Mas, para a população em geral, a qualidade nem sempre consegue ser identificada de pronto. O que interessa é ter atendimento, as consequências são enfrentadas depois. Políticos e gestores públicos apenas refletem essa cultura quando se preocupam somente com a quantidade de atendimentos, e não com sua resolutividade.

A hipocrisia de secretários de Saúde que afirmam que médico com CRM não atua em cidades pequenas é chocante. Não adianta oferecer salários altos se, com a mudança de gestão, os profissionais forem demitidos. Não adianta encher de médicos postos e hospitais em condições precárias quando se leva meses para conseguir um exame simples. Medicina é feita com médico, profissionais de saúde, capacitação, infraestrutura e logística para que a população seja bem assistida. Um profissional sem formação adequada e sem infraestrutura suficiente não gera saúde nem prevenção.

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O programa Mais Médicos só reforça isso: não há melhora na estrutura da saúde, mas aumenta a oferta de atendimentos de baixa qualidade. Vende a ideia de que é melhor ter um profissional que nem sequer sabemos se é médico, pois nem revalidação do diploma tem, do que investir, de fato, em reestruturação da rede de atendimento.

A suposta falta de médicos no interior decorre da ausência de políticas públicas para que eles possam se fixar com segurança. Não são mercenários que só pensam em altos salários. Trata-se de garantias de que o profissional possa construir uma vida com sua família e uma relação com a comunidade sem depender da boa vontade dos políticos de plantão, que acabaram deturpando o conceito de municipalização da saúde e usam a assistência como curral eleitoral.

A destruição e a construção, ambas, demandam energia. A questão é saber em qual delas queremos investir.

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DOUTOR EM MEDICINA, PROFESSOR UNIVERSITÁRIO, FOI PRESIDENTE DO CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (CREMERS)

A física termodinâmica tem o conceito de entropia, que é a medida do grau de desordem de um sistema físico. Esse conceito está intimamente ligado à ideia de deterioração: gelo derretendo, flores murchando e vidro quebrando são exemplos de entropia.

De forma metafórica, podemos dizer que a Medicina brasileira também está em franco processo de entropia. E, diferentemente dos processos naturais, esse efeito não é espontâneo – vem sendo forçado há anos e encontra-se em ponto crítico.

Testemunhamos um forte retorno à mercantilização da formação médica, com a abertura indiscriminada de faculdades de Medicina sem condições de funcionamento. As universidades garantem que a abertura de vagas tem a finalidade de suprir uma suposta demanda por médicos, principalmente no interior, e de cumprir um objetivo social. No entanto, fica escancarado o único propósito de gerar receita e salvar financeiramente essas instituições, uma vez que oferecem formação de baixa qualidade, em massa, a um custo elevado para quem paga.

Na verdade, temos de fechar os cursos sem qualidade. O Brasil tem mais escolas do que a média mundial, e a maioria delas nem sequer tem os critérios mínimos exigidos pelo Ministério da Educação, que são: número de leitos do Sistema Único de Saúde (SUS) por aluno; existência de leitos de urgência e emergência ou pronto-socorro; grau de comprometimento dos leitos do SUS para utilização acadêmica; existência de programas de residência médica nas especialidades prioritárias; hospital de ensino ou unidade hospitalar com potencial para ser certificado como hospital de ensino; entre outros.

Políticos, tanto de esquerda quanto de direita, têm interesse nessa demanda, porque cedem à pressão do lobby econômico dos grupos educacionais ou porque querem a oferta em massa de médicos.

Antes que surjam acusações, não é uma questão de reserva de mercado. Trata-se de uma exigência por qualidade na formação. A maioria dessas faculdades promove vestibulares duvidosos, permite o ingresso de candidatos por meio de uma redação e até com nota do Enem zerada e, mais adiante, aprova 100% dos alunos que pagaram a mensalidade e cumpriram os seis anos de formação. Os professores não têm exigência de qualificação. Que médico está recebendo o diploma? Que tipo de ensino prático ele recebeu? Você encaminharia seu filho para tratamento ou procedimento com um profissional com essa formação?

Se continuarmos dessa forma, vão acabar existindo duas Medicinas: uma, de primeira linha, com médicos bem preparados; e outra para pacientes que dependem do SUS. E, como o atendimento primário será de baixa qualidade, as emergências permanecerão lotadas com casos cada vez mais graves, vítimas de diagnóstico tardio ou de complicações.

Um posto de saúde numa cidade remota não pode ser a porta de entrada para o profissional recém-formado, mas uma escolha profissional para quem já tem idealmente especialidade na área – a Medicina de Família e Comunidade. Esse médico especializado consegue resolver 80% dos problemas em seu município, visto que a saúde básica apresenta uma série de desafios próprios. Mas, para a população em geral, a qualidade nem sempre consegue ser identificada de pronto. O que interessa é ter atendimento, as consequências são enfrentadas depois. Políticos e gestores públicos apenas refletem essa cultura quando se preocupam somente com a quantidade de atendimentos, e não com sua resolutividade.

A hipocrisia de secretários de Saúde que afirmam que médico com CRM não atua em cidades pequenas é chocante. Não adianta oferecer salários altos se, com a mudança de gestão, os profissionais forem demitidos. Não adianta encher de médicos postos e hospitais em condições precárias quando se leva meses para conseguir um exame simples. Medicina é feita com médico, profissionais de saúde, capacitação, infraestrutura e logística para que a população seja bem assistida. Um profissional sem formação adequada e sem infraestrutura suficiente não gera saúde nem prevenção.

O programa Mais Médicos só reforça isso: não há melhora na estrutura da saúde, mas aumenta a oferta de atendimentos de baixa qualidade. Vende a ideia de que é melhor ter um profissional que nem sequer sabemos se é médico, pois nem revalidação do diploma tem, do que investir, de fato, em reestruturação da rede de atendimento.

A suposta falta de médicos no interior decorre da ausência de políticas públicas para que eles possam se fixar com segurança. Não são mercenários que só pensam em altos salários. Trata-se de garantias de que o profissional possa construir uma vida com sua família e uma relação com a comunidade sem depender da boa vontade dos políticos de plantão, que acabaram deturpando o conceito de municipalização da saúde e usam a assistência como curral eleitoral.

A destruição e a construção, ambas, demandam energia. A questão é saber em qual delas queremos investir.

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DOUTOR EM MEDICINA, PROFESSOR UNIVERSITÁRIO, FOI PRESIDENTE DO CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (CREMERS)

A física termodinâmica tem o conceito de entropia, que é a medida do grau de desordem de um sistema físico. Esse conceito está intimamente ligado à ideia de deterioração: gelo derretendo, flores murchando e vidro quebrando são exemplos de entropia.

De forma metafórica, podemos dizer que a Medicina brasileira também está em franco processo de entropia. E, diferentemente dos processos naturais, esse efeito não é espontâneo – vem sendo forçado há anos e encontra-se em ponto crítico.

Testemunhamos um forte retorno à mercantilização da formação médica, com a abertura indiscriminada de faculdades de Medicina sem condições de funcionamento. As universidades garantem que a abertura de vagas tem a finalidade de suprir uma suposta demanda por médicos, principalmente no interior, e de cumprir um objetivo social. No entanto, fica escancarado o único propósito de gerar receita e salvar financeiramente essas instituições, uma vez que oferecem formação de baixa qualidade, em massa, a um custo elevado para quem paga.

Na verdade, temos de fechar os cursos sem qualidade. O Brasil tem mais escolas do que a média mundial, e a maioria delas nem sequer tem os critérios mínimos exigidos pelo Ministério da Educação, que são: número de leitos do Sistema Único de Saúde (SUS) por aluno; existência de leitos de urgência e emergência ou pronto-socorro; grau de comprometimento dos leitos do SUS para utilização acadêmica; existência de programas de residência médica nas especialidades prioritárias; hospital de ensino ou unidade hospitalar com potencial para ser certificado como hospital de ensino; entre outros.

Políticos, tanto de esquerda quanto de direita, têm interesse nessa demanda, porque cedem à pressão do lobby econômico dos grupos educacionais ou porque querem a oferta em massa de médicos.

Antes que surjam acusações, não é uma questão de reserva de mercado. Trata-se de uma exigência por qualidade na formação. A maioria dessas faculdades promove vestibulares duvidosos, permite o ingresso de candidatos por meio de uma redação e até com nota do Enem zerada e, mais adiante, aprova 100% dos alunos que pagaram a mensalidade e cumpriram os seis anos de formação. Os professores não têm exigência de qualificação. Que médico está recebendo o diploma? Que tipo de ensino prático ele recebeu? Você encaminharia seu filho para tratamento ou procedimento com um profissional com essa formação?

Se continuarmos dessa forma, vão acabar existindo duas Medicinas: uma, de primeira linha, com médicos bem preparados; e outra para pacientes que dependem do SUS. E, como o atendimento primário será de baixa qualidade, as emergências permanecerão lotadas com casos cada vez mais graves, vítimas de diagnóstico tardio ou de complicações.

Um posto de saúde numa cidade remota não pode ser a porta de entrada para o profissional recém-formado, mas uma escolha profissional para quem já tem idealmente especialidade na área – a Medicina de Família e Comunidade. Esse médico especializado consegue resolver 80% dos problemas em seu município, visto que a saúde básica apresenta uma série de desafios próprios. Mas, para a população em geral, a qualidade nem sempre consegue ser identificada de pronto. O que interessa é ter atendimento, as consequências são enfrentadas depois. Políticos e gestores públicos apenas refletem essa cultura quando se preocupam somente com a quantidade de atendimentos, e não com sua resolutividade.

A hipocrisia de secretários de Saúde que afirmam que médico com CRM não atua em cidades pequenas é chocante. Não adianta oferecer salários altos se, com a mudança de gestão, os profissionais forem demitidos. Não adianta encher de médicos postos e hospitais em condições precárias quando se leva meses para conseguir um exame simples. Medicina é feita com médico, profissionais de saúde, capacitação, infraestrutura e logística para que a população seja bem assistida. Um profissional sem formação adequada e sem infraestrutura suficiente não gera saúde nem prevenção.

O programa Mais Médicos só reforça isso: não há melhora na estrutura da saúde, mas aumenta a oferta de atendimentos de baixa qualidade. Vende a ideia de que é melhor ter um profissional que nem sequer sabemos se é médico, pois nem revalidação do diploma tem, do que investir, de fato, em reestruturação da rede de atendimento.

A suposta falta de médicos no interior decorre da ausência de políticas públicas para que eles possam se fixar com segurança. Não são mercenários que só pensam em altos salários. Trata-se de garantias de que o profissional possa construir uma vida com sua família e uma relação com a comunidade sem depender da boa vontade dos políticos de plantão, que acabaram deturpando o conceito de municipalização da saúde e usam a assistência como curral eleitoral.

A destruição e a construção, ambas, demandam energia. A questão é saber em qual delas queremos investir.

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DOUTOR EM MEDICINA, PROFESSOR UNIVERSITÁRIO, FOI PRESIDENTE DO CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (CREMERS)

A física termodinâmica tem o conceito de entropia, que é a medida do grau de desordem de um sistema físico. Esse conceito está intimamente ligado à ideia de deterioração: gelo derretendo, flores murchando e vidro quebrando são exemplos de entropia.

De forma metafórica, podemos dizer que a Medicina brasileira também está em franco processo de entropia. E, diferentemente dos processos naturais, esse efeito não é espontâneo – vem sendo forçado há anos e encontra-se em ponto crítico.

Testemunhamos um forte retorno à mercantilização da formação médica, com a abertura indiscriminada de faculdades de Medicina sem condições de funcionamento. As universidades garantem que a abertura de vagas tem a finalidade de suprir uma suposta demanda por médicos, principalmente no interior, e de cumprir um objetivo social. No entanto, fica escancarado o único propósito de gerar receita e salvar financeiramente essas instituições, uma vez que oferecem formação de baixa qualidade, em massa, a um custo elevado para quem paga.

Na verdade, temos de fechar os cursos sem qualidade. O Brasil tem mais escolas do que a média mundial, e a maioria delas nem sequer tem os critérios mínimos exigidos pelo Ministério da Educação, que são: número de leitos do Sistema Único de Saúde (SUS) por aluno; existência de leitos de urgência e emergência ou pronto-socorro; grau de comprometimento dos leitos do SUS para utilização acadêmica; existência de programas de residência médica nas especialidades prioritárias; hospital de ensino ou unidade hospitalar com potencial para ser certificado como hospital de ensino; entre outros.

Políticos, tanto de esquerda quanto de direita, têm interesse nessa demanda, porque cedem à pressão do lobby econômico dos grupos educacionais ou porque querem a oferta em massa de médicos.

Antes que surjam acusações, não é uma questão de reserva de mercado. Trata-se de uma exigência por qualidade na formação. A maioria dessas faculdades promove vestibulares duvidosos, permite o ingresso de candidatos por meio de uma redação e até com nota do Enem zerada e, mais adiante, aprova 100% dos alunos que pagaram a mensalidade e cumpriram os seis anos de formação. Os professores não têm exigência de qualificação. Que médico está recebendo o diploma? Que tipo de ensino prático ele recebeu? Você encaminharia seu filho para tratamento ou procedimento com um profissional com essa formação?

Se continuarmos dessa forma, vão acabar existindo duas Medicinas: uma, de primeira linha, com médicos bem preparados; e outra para pacientes que dependem do SUS. E, como o atendimento primário será de baixa qualidade, as emergências permanecerão lotadas com casos cada vez mais graves, vítimas de diagnóstico tardio ou de complicações.

Um posto de saúde numa cidade remota não pode ser a porta de entrada para o profissional recém-formado, mas uma escolha profissional para quem já tem idealmente especialidade na área – a Medicina de Família e Comunidade. Esse médico especializado consegue resolver 80% dos problemas em seu município, visto que a saúde básica apresenta uma série de desafios próprios. Mas, para a população em geral, a qualidade nem sempre consegue ser identificada de pronto. O que interessa é ter atendimento, as consequências são enfrentadas depois. Políticos e gestores públicos apenas refletem essa cultura quando se preocupam somente com a quantidade de atendimentos, e não com sua resolutividade.

A hipocrisia de secretários de Saúde que afirmam que médico com CRM não atua em cidades pequenas é chocante. Não adianta oferecer salários altos se, com a mudança de gestão, os profissionais forem demitidos. Não adianta encher de médicos postos e hospitais em condições precárias quando se leva meses para conseguir um exame simples. Medicina é feita com médico, profissionais de saúde, capacitação, infraestrutura e logística para que a população seja bem assistida. Um profissional sem formação adequada e sem infraestrutura suficiente não gera saúde nem prevenção.

O programa Mais Médicos só reforça isso: não há melhora na estrutura da saúde, mas aumenta a oferta de atendimentos de baixa qualidade. Vende a ideia de que é melhor ter um profissional que nem sequer sabemos se é médico, pois nem revalidação do diploma tem, do que investir, de fato, em reestruturação da rede de atendimento.

A suposta falta de médicos no interior decorre da ausência de políticas públicas para que eles possam se fixar com segurança. Não são mercenários que só pensam em altos salários. Trata-se de garantias de que o profissional possa construir uma vida com sua família e uma relação com a comunidade sem depender da boa vontade dos políticos de plantão, que acabaram deturpando o conceito de municipalização da saúde e usam a assistência como curral eleitoral.

A destruição e a construção, ambas, demandam energia. A questão é saber em qual delas queremos investir.

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DOUTOR EM MEDICINA, PROFESSOR UNIVERSITÁRIO, FOI PRESIDENTE DO CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (CREMERS)

A física termodinâmica tem o conceito de entropia, que é a medida do grau de desordem de um sistema físico. Esse conceito está intimamente ligado à ideia de deterioração: gelo derretendo, flores murchando e vidro quebrando são exemplos de entropia.

De forma metafórica, podemos dizer que a Medicina brasileira também está em franco processo de entropia. E, diferentemente dos processos naturais, esse efeito não é espontâneo – vem sendo forçado há anos e encontra-se em ponto crítico.

Testemunhamos um forte retorno à mercantilização da formação médica, com a abertura indiscriminada de faculdades de Medicina sem condições de funcionamento. As universidades garantem que a abertura de vagas tem a finalidade de suprir uma suposta demanda por médicos, principalmente no interior, e de cumprir um objetivo social. No entanto, fica escancarado o único propósito de gerar receita e salvar financeiramente essas instituições, uma vez que oferecem formação de baixa qualidade, em massa, a um custo elevado para quem paga.

Na verdade, temos de fechar os cursos sem qualidade. O Brasil tem mais escolas do que a média mundial, e a maioria delas nem sequer tem os critérios mínimos exigidos pelo Ministério da Educação, que são: número de leitos do Sistema Único de Saúde (SUS) por aluno; existência de leitos de urgência e emergência ou pronto-socorro; grau de comprometimento dos leitos do SUS para utilização acadêmica; existência de programas de residência médica nas especialidades prioritárias; hospital de ensino ou unidade hospitalar com potencial para ser certificado como hospital de ensino; entre outros.

Políticos, tanto de esquerda quanto de direita, têm interesse nessa demanda, porque cedem à pressão do lobby econômico dos grupos educacionais ou porque querem a oferta em massa de médicos.

Antes que surjam acusações, não é uma questão de reserva de mercado. Trata-se de uma exigência por qualidade na formação. A maioria dessas faculdades promove vestibulares duvidosos, permite o ingresso de candidatos por meio de uma redação e até com nota do Enem zerada e, mais adiante, aprova 100% dos alunos que pagaram a mensalidade e cumpriram os seis anos de formação. Os professores não têm exigência de qualificação. Que médico está recebendo o diploma? Que tipo de ensino prático ele recebeu? Você encaminharia seu filho para tratamento ou procedimento com um profissional com essa formação?

Se continuarmos dessa forma, vão acabar existindo duas Medicinas: uma, de primeira linha, com médicos bem preparados; e outra para pacientes que dependem do SUS. E, como o atendimento primário será de baixa qualidade, as emergências permanecerão lotadas com casos cada vez mais graves, vítimas de diagnóstico tardio ou de complicações.

Um posto de saúde numa cidade remota não pode ser a porta de entrada para o profissional recém-formado, mas uma escolha profissional para quem já tem idealmente especialidade na área – a Medicina de Família e Comunidade. Esse médico especializado consegue resolver 80% dos problemas em seu município, visto que a saúde básica apresenta uma série de desafios próprios. Mas, para a população em geral, a qualidade nem sempre consegue ser identificada de pronto. O que interessa é ter atendimento, as consequências são enfrentadas depois. Políticos e gestores públicos apenas refletem essa cultura quando se preocupam somente com a quantidade de atendimentos, e não com sua resolutividade.

A hipocrisia de secretários de Saúde que afirmam que médico com CRM não atua em cidades pequenas é chocante. Não adianta oferecer salários altos se, com a mudança de gestão, os profissionais forem demitidos. Não adianta encher de médicos postos e hospitais em condições precárias quando se leva meses para conseguir um exame simples. Medicina é feita com médico, profissionais de saúde, capacitação, infraestrutura e logística para que a população seja bem assistida. Um profissional sem formação adequada e sem infraestrutura suficiente não gera saúde nem prevenção.

O programa Mais Médicos só reforça isso: não há melhora na estrutura da saúde, mas aumenta a oferta de atendimentos de baixa qualidade. Vende a ideia de que é melhor ter um profissional que nem sequer sabemos se é médico, pois nem revalidação do diploma tem, do que investir, de fato, em reestruturação da rede de atendimento.

A suposta falta de médicos no interior decorre da ausência de políticas públicas para que eles possam se fixar com segurança. Não são mercenários que só pensam em altos salários. Trata-se de garantias de que o profissional possa construir uma vida com sua família e uma relação com a comunidade sem depender da boa vontade dos políticos de plantão, que acabaram deturpando o conceito de municipalização da saúde e usam a assistência como curral eleitoral.

A destruição e a construção, ambas, demandam energia. A questão é saber em qual delas queremos investir.

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