Opinião|A literatura ensina?


O elogio de Francisco à literatura esconde certo mal-estar da religião católica. Em nossa época, a ideia de catolicidade diluiu-se no paradigma culturalista

Por Marcos Lopes

A Carta sobre o papel da literatura na educação (2024), do papa Francisco, exorta sacerdotes e leigos à leitura literária. Não é um gesto pastoral inusitado, pois, no século 4 a.C., São Basílio de Cesareia, em sua Carta aos jovens sobre a utilidade da literatura pagã, recomendava os seus benefícios para a edificação cristã. O saber poético seria um ornamento útil para realçar a beleza da alma, do mesmo modo que o elogio da virtude e a condenação do vício, presentes em obras profanas, seriam bons exercícios espirituais para os jovens.

Segundo Basílio, a literatura profana nos ajudaria “a traçar o primeiro esboço da virtude”. E concluiria afirmando que tudo “o que se pode reunir a partir de todos os lados e parecer útil pode ser comparado a córregos que, com seus cursos de águas, enchem um rio”. Se os vários córregos formam um grande rio, analogamente as diversas letras auxiliam na vivência das escrituras sagradas, desde que regradas pela virtude. A hierarquia entre os dois tipos textuais é incisiva, pois o vínculo deles se faz na orientação moral em face da fruição poética, o que será duradouro na pedagogia ocidental.

No século 4, assiste-se à liberdade de culto aos cristãos (313) e à institucionalização do cristianismo como religião oficial do Império Romano (390). Ordenado bispo em 370, entende-se, em parte, o contexto da carta pastoral de Basílio: é o início da formação da cristandade. Em situação oposta encontra-se Francisco no século 21. A Igreja de Roma não tem mais as prerrogativas teológicas políticas e a ideia de “cristandade” é uma excrescência.

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O que motivou, então, o pontífice a cuidar das letras profanas? Quais valores crê existir nelas? Por que sua carta é uma “canonização” da literatura?

A leitura literária contribui para o amadurecimento pessoal do indivíduo, afasta-o de situações nocivas, possibilita a experiência de comunhão espiritual em momentos nos quais a solidão urbana desertifica a alma, exige uma atitude mais ativa, quando comparada à sedução dos écrans e outros dispositivos eletrônicos. Na carta de Francisco, há certa crença ingênua e uma expectativa de que se alcançaria um conhecimento antropológico por meio de obras literárias. Mas o que ela apresenta, principalmente, é a aderência ao paradigma culturalista, que será discutido adiante.

Francisco não está só nessa crença de que a literatura contribui para a emancipação humana. Tzvetan Todorov, em A Literatura em Perigo (2007), partilha dessa visão e acrescenta que ela nos humaniza ao estabelecer alteridades com o próximo e o distante. Northrop Frye, em A Imaginação Educada (1965), corre na mesma senda, aprofundando os nexos entre os valores éticos e estéticos. Nesses autores, a literatura diz respeito mais ao mundo em que gostaríamos de viver do que àquele em que nos encontramos de fato. Ela nos faz transcender, mesmo que sem transcendência.

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Em Literatura e Religião, T. S. Eliot perguntava se era legítimo compreender e julgar a literatura de uma perspectiva teológica. Também indagava sobre se seria possível ler a Bíblia como se fosse literatura. Para Eliot, era impossível julgar a “grandeza” de uma obra apenas com critérios literários. Avaliar o que deveria ser considerado literário não seria função da teologia, mas lhe caberia discernir e julgar o padrão ético de uma época, confrontando-o com o estético. Quanto à questão sobre se a Bíblia poderia ser lida como literatura, ele era categórico: o tratamento literário dela indicaria o declínio do seu poder na organização espiritual da sociedade. Sua suspeita recaía na equiparação simbólica entre Bíblia e literatura, que significaria o enfraquecimento do texto sagrado, na medida em que ele seria apenas um texto de cultura entre muitos.

A crença de Francisco em a literatura ser um acesso privilegiado ao que há de melhor, pior e mais sagrado em todos nós explica-se pelo fato de que sua leitura cultivaria os afetos e emoções que nos movem à revelação cristã. Mas por que a leitura de um romance obrigaria a me engajar em seu mundo? Que afetos moveriam o meu ser ao término da leitura de Os 120 Dias de Sodoma, do Marquês de Sade? Julgar se a literatura hospeda os lugares teológicos e se se abre à revelação cristã exige retomar o problema de Eliot: há um padrão ético de base teológica que não seja dependente da panóplia de valores seculares?

O elogio de Francisco à literatura esconde certo mal-estar da religião católica. Em nossa época, persignação e genuflexão, ao invés de belos gestos espirituais, são sinais de suspeita ou de escárnio. A ideia de catolicidade diluiu-se no paradigma culturalista. Ao levar a sério tal paradigma, o que me impediria de ser budista, muçulmano ou candomblecista, se tais crenças são variações culturais da sede do divino, assim como o cristianismo? Mas qual seria o núcleo duro da revelação cristã? O que somente a literatura conseguiria dizer a respeito disso? Teólogos e críticos literários encontram-se em situações distintas: aqueles creem no poder da literatura; estes desconfiam se existe algo chamado “a literatura”.

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É PROFESSOR DE LITERATURA GERAL E COMPARADA NA UNICAMP

A Carta sobre o papel da literatura na educação (2024), do papa Francisco, exorta sacerdotes e leigos à leitura literária. Não é um gesto pastoral inusitado, pois, no século 4 a.C., São Basílio de Cesareia, em sua Carta aos jovens sobre a utilidade da literatura pagã, recomendava os seus benefícios para a edificação cristã. O saber poético seria um ornamento útil para realçar a beleza da alma, do mesmo modo que o elogio da virtude e a condenação do vício, presentes em obras profanas, seriam bons exercícios espirituais para os jovens.

Segundo Basílio, a literatura profana nos ajudaria “a traçar o primeiro esboço da virtude”. E concluiria afirmando que tudo “o que se pode reunir a partir de todos os lados e parecer útil pode ser comparado a córregos que, com seus cursos de águas, enchem um rio”. Se os vários córregos formam um grande rio, analogamente as diversas letras auxiliam na vivência das escrituras sagradas, desde que regradas pela virtude. A hierarquia entre os dois tipos textuais é incisiva, pois o vínculo deles se faz na orientação moral em face da fruição poética, o que será duradouro na pedagogia ocidental.

No século 4, assiste-se à liberdade de culto aos cristãos (313) e à institucionalização do cristianismo como religião oficial do Império Romano (390). Ordenado bispo em 370, entende-se, em parte, o contexto da carta pastoral de Basílio: é o início da formação da cristandade. Em situação oposta encontra-se Francisco no século 21. A Igreja de Roma não tem mais as prerrogativas teológicas políticas e a ideia de “cristandade” é uma excrescência.

O que motivou, então, o pontífice a cuidar das letras profanas? Quais valores crê existir nelas? Por que sua carta é uma “canonização” da literatura?

A leitura literária contribui para o amadurecimento pessoal do indivíduo, afasta-o de situações nocivas, possibilita a experiência de comunhão espiritual em momentos nos quais a solidão urbana desertifica a alma, exige uma atitude mais ativa, quando comparada à sedução dos écrans e outros dispositivos eletrônicos. Na carta de Francisco, há certa crença ingênua e uma expectativa de que se alcançaria um conhecimento antropológico por meio de obras literárias. Mas o que ela apresenta, principalmente, é a aderência ao paradigma culturalista, que será discutido adiante.

Francisco não está só nessa crença de que a literatura contribui para a emancipação humana. Tzvetan Todorov, em A Literatura em Perigo (2007), partilha dessa visão e acrescenta que ela nos humaniza ao estabelecer alteridades com o próximo e o distante. Northrop Frye, em A Imaginação Educada (1965), corre na mesma senda, aprofundando os nexos entre os valores éticos e estéticos. Nesses autores, a literatura diz respeito mais ao mundo em que gostaríamos de viver do que àquele em que nos encontramos de fato. Ela nos faz transcender, mesmo que sem transcendência.

Em Literatura e Religião, T. S. Eliot perguntava se era legítimo compreender e julgar a literatura de uma perspectiva teológica. Também indagava sobre se seria possível ler a Bíblia como se fosse literatura. Para Eliot, era impossível julgar a “grandeza” de uma obra apenas com critérios literários. Avaliar o que deveria ser considerado literário não seria função da teologia, mas lhe caberia discernir e julgar o padrão ético de uma época, confrontando-o com o estético. Quanto à questão sobre se a Bíblia poderia ser lida como literatura, ele era categórico: o tratamento literário dela indicaria o declínio do seu poder na organização espiritual da sociedade. Sua suspeita recaía na equiparação simbólica entre Bíblia e literatura, que significaria o enfraquecimento do texto sagrado, na medida em que ele seria apenas um texto de cultura entre muitos.

A crença de Francisco em a literatura ser um acesso privilegiado ao que há de melhor, pior e mais sagrado em todos nós explica-se pelo fato de que sua leitura cultivaria os afetos e emoções que nos movem à revelação cristã. Mas por que a leitura de um romance obrigaria a me engajar em seu mundo? Que afetos moveriam o meu ser ao término da leitura de Os 120 Dias de Sodoma, do Marquês de Sade? Julgar se a literatura hospeda os lugares teológicos e se se abre à revelação cristã exige retomar o problema de Eliot: há um padrão ético de base teológica que não seja dependente da panóplia de valores seculares?

O elogio de Francisco à literatura esconde certo mal-estar da religião católica. Em nossa época, persignação e genuflexão, ao invés de belos gestos espirituais, são sinais de suspeita ou de escárnio. A ideia de catolicidade diluiu-se no paradigma culturalista. Ao levar a sério tal paradigma, o que me impediria de ser budista, muçulmano ou candomblecista, se tais crenças são variações culturais da sede do divino, assim como o cristianismo? Mas qual seria o núcleo duro da revelação cristã? O que somente a literatura conseguiria dizer a respeito disso? Teólogos e críticos literários encontram-se em situações distintas: aqueles creem no poder da literatura; estes desconfiam se existe algo chamado “a literatura”.

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É PROFESSOR DE LITERATURA GERAL E COMPARADA NA UNICAMP

A Carta sobre o papel da literatura na educação (2024), do papa Francisco, exorta sacerdotes e leigos à leitura literária. Não é um gesto pastoral inusitado, pois, no século 4 a.C., São Basílio de Cesareia, em sua Carta aos jovens sobre a utilidade da literatura pagã, recomendava os seus benefícios para a edificação cristã. O saber poético seria um ornamento útil para realçar a beleza da alma, do mesmo modo que o elogio da virtude e a condenação do vício, presentes em obras profanas, seriam bons exercícios espirituais para os jovens.

Segundo Basílio, a literatura profana nos ajudaria “a traçar o primeiro esboço da virtude”. E concluiria afirmando que tudo “o que se pode reunir a partir de todos os lados e parecer útil pode ser comparado a córregos que, com seus cursos de águas, enchem um rio”. Se os vários córregos formam um grande rio, analogamente as diversas letras auxiliam na vivência das escrituras sagradas, desde que regradas pela virtude. A hierarquia entre os dois tipos textuais é incisiva, pois o vínculo deles se faz na orientação moral em face da fruição poética, o que será duradouro na pedagogia ocidental.

No século 4, assiste-se à liberdade de culto aos cristãos (313) e à institucionalização do cristianismo como religião oficial do Império Romano (390). Ordenado bispo em 370, entende-se, em parte, o contexto da carta pastoral de Basílio: é o início da formação da cristandade. Em situação oposta encontra-se Francisco no século 21. A Igreja de Roma não tem mais as prerrogativas teológicas políticas e a ideia de “cristandade” é uma excrescência.

O que motivou, então, o pontífice a cuidar das letras profanas? Quais valores crê existir nelas? Por que sua carta é uma “canonização” da literatura?

A leitura literária contribui para o amadurecimento pessoal do indivíduo, afasta-o de situações nocivas, possibilita a experiência de comunhão espiritual em momentos nos quais a solidão urbana desertifica a alma, exige uma atitude mais ativa, quando comparada à sedução dos écrans e outros dispositivos eletrônicos. Na carta de Francisco, há certa crença ingênua e uma expectativa de que se alcançaria um conhecimento antropológico por meio de obras literárias. Mas o que ela apresenta, principalmente, é a aderência ao paradigma culturalista, que será discutido adiante.

Francisco não está só nessa crença de que a literatura contribui para a emancipação humana. Tzvetan Todorov, em A Literatura em Perigo (2007), partilha dessa visão e acrescenta que ela nos humaniza ao estabelecer alteridades com o próximo e o distante. Northrop Frye, em A Imaginação Educada (1965), corre na mesma senda, aprofundando os nexos entre os valores éticos e estéticos. Nesses autores, a literatura diz respeito mais ao mundo em que gostaríamos de viver do que àquele em que nos encontramos de fato. Ela nos faz transcender, mesmo que sem transcendência.

Em Literatura e Religião, T. S. Eliot perguntava se era legítimo compreender e julgar a literatura de uma perspectiva teológica. Também indagava sobre se seria possível ler a Bíblia como se fosse literatura. Para Eliot, era impossível julgar a “grandeza” de uma obra apenas com critérios literários. Avaliar o que deveria ser considerado literário não seria função da teologia, mas lhe caberia discernir e julgar o padrão ético de uma época, confrontando-o com o estético. Quanto à questão sobre se a Bíblia poderia ser lida como literatura, ele era categórico: o tratamento literário dela indicaria o declínio do seu poder na organização espiritual da sociedade. Sua suspeita recaía na equiparação simbólica entre Bíblia e literatura, que significaria o enfraquecimento do texto sagrado, na medida em que ele seria apenas um texto de cultura entre muitos.

A crença de Francisco em a literatura ser um acesso privilegiado ao que há de melhor, pior e mais sagrado em todos nós explica-se pelo fato de que sua leitura cultivaria os afetos e emoções que nos movem à revelação cristã. Mas por que a leitura de um romance obrigaria a me engajar em seu mundo? Que afetos moveriam o meu ser ao término da leitura de Os 120 Dias de Sodoma, do Marquês de Sade? Julgar se a literatura hospeda os lugares teológicos e se se abre à revelação cristã exige retomar o problema de Eliot: há um padrão ético de base teológica que não seja dependente da panóplia de valores seculares?

O elogio de Francisco à literatura esconde certo mal-estar da religião católica. Em nossa época, persignação e genuflexão, ao invés de belos gestos espirituais, são sinais de suspeita ou de escárnio. A ideia de catolicidade diluiu-se no paradigma culturalista. Ao levar a sério tal paradigma, o que me impediria de ser budista, muçulmano ou candomblecista, se tais crenças são variações culturais da sede do divino, assim como o cristianismo? Mas qual seria o núcleo duro da revelação cristã? O que somente a literatura conseguiria dizer a respeito disso? Teólogos e críticos literários encontram-se em situações distintas: aqueles creem no poder da literatura; estes desconfiam se existe algo chamado “a literatura”.

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É PROFESSOR DE LITERATURA GERAL E COMPARADA NA UNICAMP

A Carta sobre o papel da literatura na educação (2024), do papa Francisco, exorta sacerdotes e leigos à leitura literária. Não é um gesto pastoral inusitado, pois, no século 4 a.C., São Basílio de Cesareia, em sua Carta aos jovens sobre a utilidade da literatura pagã, recomendava os seus benefícios para a edificação cristã. O saber poético seria um ornamento útil para realçar a beleza da alma, do mesmo modo que o elogio da virtude e a condenação do vício, presentes em obras profanas, seriam bons exercícios espirituais para os jovens.

Segundo Basílio, a literatura profana nos ajudaria “a traçar o primeiro esboço da virtude”. E concluiria afirmando que tudo “o que se pode reunir a partir de todos os lados e parecer útil pode ser comparado a córregos que, com seus cursos de águas, enchem um rio”. Se os vários córregos formam um grande rio, analogamente as diversas letras auxiliam na vivência das escrituras sagradas, desde que regradas pela virtude. A hierarquia entre os dois tipos textuais é incisiva, pois o vínculo deles se faz na orientação moral em face da fruição poética, o que será duradouro na pedagogia ocidental.

No século 4, assiste-se à liberdade de culto aos cristãos (313) e à institucionalização do cristianismo como religião oficial do Império Romano (390). Ordenado bispo em 370, entende-se, em parte, o contexto da carta pastoral de Basílio: é o início da formação da cristandade. Em situação oposta encontra-se Francisco no século 21. A Igreja de Roma não tem mais as prerrogativas teológicas políticas e a ideia de “cristandade” é uma excrescência.

O que motivou, então, o pontífice a cuidar das letras profanas? Quais valores crê existir nelas? Por que sua carta é uma “canonização” da literatura?

A leitura literária contribui para o amadurecimento pessoal do indivíduo, afasta-o de situações nocivas, possibilita a experiência de comunhão espiritual em momentos nos quais a solidão urbana desertifica a alma, exige uma atitude mais ativa, quando comparada à sedução dos écrans e outros dispositivos eletrônicos. Na carta de Francisco, há certa crença ingênua e uma expectativa de que se alcançaria um conhecimento antropológico por meio de obras literárias. Mas o que ela apresenta, principalmente, é a aderência ao paradigma culturalista, que será discutido adiante.

Francisco não está só nessa crença de que a literatura contribui para a emancipação humana. Tzvetan Todorov, em A Literatura em Perigo (2007), partilha dessa visão e acrescenta que ela nos humaniza ao estabelecer alteridades com o próximo e o distante. Northrop Frye, em A Imaginação Educada (1965), corre na mesma senda, aprofundando os nexos entre os valores éticos e estéticos. Nesses autores, a literatura diz respeito mais ao mundo em que gostaríamos de viver do que àquele em que nos encontramos de fato. Ela nos faz transcender, mesmo que sem transcendência.

Em Literatura e Religião, T. S. Eliot perguntava se era legítimo compreender e julgar a literatura de uma perspectiva teológica. Também indagava sobre se seria possível ler a Bíblia como se fosse literatura. Para Eliot, era impossível julgar a “grandeza” de uma obra apenas com critérios literários. Avaliar o que deveria ser considerado literário não seria função da teologia, mas lhe caberia discernir e julgar o padrão ético de uma época, confrontando-o com o estético. Quanto à questão sobre se a Bíblia poderia ser lida como literatura, ele era categórico: o tratamento literário dela indicaria o declínio do seu poder na organização espiritual da sociedade. Sua suspeita recaía na equiparação simbólica entre Bíblia e literatura, que significaria o enfraquecimento do texto sagrado, na medida em que ele seria apenas um texto de cultura entre muitos.

A crença de Francisco em a literatura ser um acesso privilegiado ao que há de melhor, pior e mais sagrado em todos nós explica-se pelo fato de que sua leitura cultivaria os afetos e emoções que nos movem à revelação cristã. Mas por que a leitura de um romance obrigaria a me engajar em seu mundo? Que afetos moveriam o meu ser ao término da leitura de Os 120 Dias de Sodoma, do Marquês de Sade? Julgar se a literatura hospeda os lugares teológicos e se se abre à revelação cristã exige retomar o problema de Eliot: há um padrão ético de base teológica que não seja dependente da panóplia de valores seculares?

O elogio de Francisco à literatura esconde certo mal-estar da religião católica. Em nossa época, persignação e genuflexão, ao invés de belos gestos espirituais, são sinais de suspeita ou de escárnio. A ideia de catolicidade diluiu-se no paradigma culturalista. Ao levar a sério tal paradigma, o que me impediria de ser budista, muçulmano ou candomblecista, se tais crenças são variações culturais da sede do divino, assim como o cristianismo? Mas qual seria o núcleo duro da revelação cristã? O que somente a literatura conseguiria dizer a respeito disso? Teólogos e críticos literários encontram-se em situações distintas: aqueles creem no poder da literatura; estes desconfiam se existe algo chamado “a literatura”.

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