É fato notório que o presidente Bolsonaro é pessoa tosca, deseducada, nada afeito a qualquer etiqueta. Ao contrário, orgulha-se de ser um atleta bronco, e não um “bundão” que morre ao contrair a covid-19. Mas além das grosserias proferidas contra jornalistas, tão ou mais graves foram as tentativas de desvirtuar a verdade.
Com efeito, ao chegar à catedral de Brasília no domingo 23/8, jornalista de O Globo indagou: “Presidente, por que sua esposa, Michelle, recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz?”. E o presidente respondeu: “Vontade de encher a sua boca de porrada”. No mesmo instante, um ambulante falava: “Vamos visitar, presidente, a nossa feirinha da catedral?”. Segundo vídeo falso de site bolsonarista, com foto de Bolsonaro abraçado à filha, o repórter teria dito: “Vamos visitar sua filha na cadeia”. Ao que, então, o presidente reagiu: “Vontade de encher sua boca de porrada”. Sites bolsonaristas difundirem inverdades para salvar a cara do seu mito já é habitual no mundo das fake news.
O grave está em o presidente, sabedor da falsidade inventada por apoiadores, ter reproduzido em seu canal no YouTube a versão mentirosa, sem legendas, com o título: “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará!”. O filho 02, Carluxo, compartilhou no Twitter essa versão de conteúdo falso.
Não é a primeira vez que o presidente recorre à mentira para atacar jornalista. Vera Magalhães noticiou que Bolsonaro divulgara vídeo convidando pessoas a irem a ato contra o Congresso Nacional, no dia 15 de março deste ano. Em live do Palácio do Alvorada e em sua página no Facebook, Bolsonaro acusou falsamente a jornalista de ter confundido o vídeo em que convocava para reunião contra o PT em 2015 e o chamamento para o ato de 15 de março de 2020, ambos num domingo.
Disse o presidente: “O vídeo abaixo chegou ao conhecimento da jornalista Vera Magalhães, que, na sede de furo jornalístico, publicou matéria como se eu estivesse convocando ato para as manifestações de 15/março/2020. Ela, certamente por má-fé, não atentou que o vídeo era de 2015, onde houve uma manifestação no dia 15 de março (domingo) daquele ano contra o governo do PT”. E completou o mandatário com esta ofensa: “Não sou da sua laia, esqueceu de ver a data. Trabalho porco precisa ter um pouco mais de vergonha na cara”.
A mentira do presidente era inadvertidamente por ele mesmo denunciada, pois na live disse que o vídeo contava um pouco de sua vida: a facada. Ora, a facada foi em 2018, portanto, o vídeo não poderia dizer respeito a manifestação de 2015. Além do mais, no vídeo mostrava-se a posse de Bolsonaro em 2019. Ainda por cima, o ministro José Eduardo Ramos e o deputado Alberto Fraga confirmaram ter recebido de Bolsonaro o vídeo.
Inverdades e acusações são marcas dos dois acontecimentos. O uso deslavado da mentira como arma de defesa, para tentar esconder seus atos que infringem a dignidade do cargo. se une à deslealdade de fazer recair sobre outros as suas próprias culpas.
A intenção de mentir está em fugir da verdade para tentar se eximir da responsabilidade pelos atos cometidos, induzindo em erro os destinatários da mensagem, sem nenhum pudor (Batistelli. A Mentira, trad. Fernando Miranda, São Paulo, 1945, pág. 81).
Nesses casos, as mentiras têm perna curta, a demonstrar que no afã de ocultar a verdade e culpar terceiro nem se fez a versão passar pelo crivo do raciocínio, parecendo ser fruto de um impulso, indicando, conforme Battistelli, ser a mentira quase patológica.
A simulação da indignação, ao rechear a mentira com ofensas aos terceiros que pretende culpar pelos próprios atos, é um truque grosseiro, um fingimento, a revelar antes pusilanimidade perante possíveis aborrecimentos do que a força que se pretende demonstrar.
A ficção visa a proteger das dificuldades, aderindo à mentira como tábua de salvação, em recurso próprio dos medrosos (Battistelli, cit., pág. 143), pois, ao contrário dos homens de coragem, não assumem os próprios atos. Mentir e acusar o outro é a reação comum dos fracos diante de uma pergunta a que não sabem responder.
Uma das hipóteses de crime de responsabilidade previstas na Lei 1.079, de 1950, está em proceder o presidente “de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo” (artigo 9.º, 7).
Aquele que age sem ser conforme a dignidade exigível para o exercício do cargo desmoraliza a “própria imagem do Estado aos olhos do povo”, com perda da respeitabilidade. A retidão moral constitui o cerne da dignidade no exercício do cargo de primeiro mandatário da Nação.
O professor Fábio Comparato, na peça que preparou para o impeachment de Collor, ensina que a lei introduziu na definição do delito a ideia central do decoro, que vem a ser temperança, domínio das paixões, honestidade, decência, pois “o que é honesto é decente e vice-versa”.
E cabe perguntar, então: tem retidão moral aquele que mente e acusa injustamente terceiro para se livrar da assunção dos próprios atos que se revestem, por si só, da ausência do devido decoro?
É mais uma pergunta que não quer calar.
ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA