Pela primeira vez em mais de meio século a democracia liberal está retrocedendo. A maré democrática que subiu nos séculos 19 e 20 parece estar baixando novamente. Os sinais de maior resistência aos valores liberais e às instituições democráticas são visíveis não só em partes da África, Ásia e Américas, mas também em redutos democráticos da Europa Ocidental e da América do Norte.
Como há um punhado de democracias liberais em declínio, há o medo de que este seja o ano em que a ordem liberal global morra. Iniciada em 1945, ela consiste numa densa rede de acordos internacionais e de comércio, e alianças militares, que tinham como objetivo explícito a prevenção da guerra e do nacionalismo econômico, elementos que levavam a conflitos. A ordem já sofreu críticas, mas nunca foi tão atacada quanto atualmente.
A ordem global liberal e democrática pode estar em declínio, mas está longe de ter-se esgotado. De acordo com o Polity Project – que acompanha tendências relativas a autocracias e democracias –, formas de governo democráticas ainda estão se disseminando. Em 1989, quando Fukuyama fez sua declaração, existiam 52 democracias no mundo. Em 2009, no início da administração Obama, o número já havia subido para 87. Hoje são pelo menos 103, em países que, juntos, incluem mais de 60% da população mundial. Até a China e a Rússia são hoje menos repressoras que no passado. É verdade que algumas democracias em partes da Europa Ocidental e Oriental são menos “liberais” que no passado, mas, mesmo assim, de forma geral foi um avanço notável.
O que explica o medo de um déficit democrático e do declínio da ordem global liberal? De acordo com o colunista Ed Luce, boa parte dessa história tem que ver com a ascensão da China. O crescimento econômico do país é de tirar o fôlego: o PIB foi de US$ 950 bilhões no ano 2000 para US$ 22 trilhões em 2016. A China também se beneficiou de três eventos geopolíticos no período: a guerra do Iraque, em 2003, a crise financeira de 2008 e a eleição de Donald Trump, em 2016. Todos esses eventos amplificaram o apelo do modelo alternativo chinês autoritário de desenvolvimento, estimulando autocratas que vinham sendo dissuadidos pelos proponentes do liberalismo.
Outro fator que vem aumentando a ansiedade de quem apoia a ordem liberal global é a erosão do compromisso com princípios democráticos, até mesmo nos países do Ocidente. Revoltados pela eleição (ou quase eleição) de membros de partidos de extrema direita e do crescimento dos populistas, cidadãos moderados da Europa e da América do Norte vêm sofrendo com a crise de confiança de suas democracias. Não sem razão. Desde que assumiu a presidência, Donald Trump retirou financiamento da Organização das Nações Unidas (ONU) e condenou a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), ameaçou revogar acordos multilaterais de comércio e prejudicou enormemente as relações transatlânticas. No front doméstico, Trump defendeu supremacistas brancos, declarou guerra à mídia independente e ofendeu imigrantes. Se o que mantém a democracia de pé são os princípios da confiança e da igualdade de oportunidades, o que une a autocracia é a cola do medo e da discriminação.
Quando olhamos para o futuro, parece-nos que a ordem liberal global sobreviverá aos violentos ataques vindos de dentro e de fora? Steven Pinker acredita que as forças históricas que impulsionam a expansão da democracia liberal – mobilidade, urbanização, educação e conectividade – estão longe do fim. Assim como a pressão internacional por mais igualdade de gênero, racial e social. Pinker e outros defensores do projeto liberal estão certos de que estão do lado vencedor da História. Afinal, populismo autoritário é um jogo de velhos. Quem o apoia normalmente são homens, religiosos, com menor nível de educação e pertencentes a maioria étnica; reclamam de que se sentem estranhos em seu próprio país e é comum que sejam contrários à imigração e à governança global. Estudos recentes sobre a eleição de Trump, o Brexit e o crescimento de partidos nacionalistas na Europa sugerem que o apoio a eles é menor quanto menor a idade.
Isso não significa que a ordem liberal global sairá incólume ou que não precise de ajustes. É preciso fazer reparos urgentes nos Estados democráticos liberais – incluindo a representação desproporcional de áreas urbanas em detrimento de áreas rurais. Estratégias dedicadas à redução das consequências da desigualdade econômica, além de esforços para restringir o discurso polarizante e para desinflamar políticas identitárias, são louváveis. É certo que a ordem liberal global vai sobreviver de alguma forma, mas ela também precisa incluir um mundo cada vez mais plural. Os EUA quase que certamente desempenharam um papel-chave – engajamento global profundo é o nome do jogo –, mas também terão de reconhecer a realidade de um mundo multipolar cheio de potências novas e inquietas. Os resultados podem ser intermitentes e insatisfatórios, porém é possível que sejam muito mais positivos do que um mundo de desordem.
Um dos principais aspectos que garantem a evolução da ordem liberal global é a existência de um debate sensato e bem informado. O uso de narrativas histéricas é terreno fértil para o extremismo e para o surgimento de demagogos carismáticos. Precisamos refletir cuidadosamente sobre a natureza do discurso cívico. Devemos debater como as novas tecnologias dão forma e amplificam os piores instintos humanos. Em democracias liberais a política é desorganizada e confusa – o que não quer dizer que não possa ser melhorada. 2018 não deveria ser o ano do fim da ordem liberal global, mas um ano em que a democracia está com confiança no centro do discurso público.
*RESPECTIVAMENTE, COFUNDADOR DO INSTITUTO IGARAPÉ E DO SECDEV GROUP; E PROFESSOR ASSISTENTE DA UNIVERSITY OF BRITISH COLUMBIA