Opinião|A segurança hídrica e o gatilho


Um tiro adiado no uso sustentável da água de São Paulo, que exige soluções inovadoras

Por JOÃO PAULO R. CAPOBIANCO E GUILHERME CHECCO

Reportagem publicada no Estadão em 8/3 – Agência desiste de ‘gatilho’ para reajustar água – repercutiu a decisão da Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp) de retirar da revisão tarifária da Sabesp a alteração automática do valor cobrado pelo fornecimento de água sempre que ocorresse uma variação significativa do consumo. Esse gatilho, que levaria ao aumento ou redução da tarifa quando ocorresse, respectivamente, diminuição ou aumento do gasto de água pelos usuários, foi duramente questionado nas consultas à sociedade feitas em fevereiro.

Ignorando as críticas, a Arsesp manteve o mecanismo sob a alegação de que precisava zelar pela sustentabilidade econômico-financeira da Sabesp. Mas depois da grande repercussão da reportagem do Estadão, a agência informou ter suspendido a adoção desse dispositivo para “aprofundar os estudos e melhorar o debate”. Embora tardia, a decisão merece aplausos, pois seria um equívoco de gravíssimas consequências.

Do ponto de vista econômico, a proposta era claramente um contrassenso. Como a Sabesp é uma empresa de capital misto que opera num mercado considerado monopólio natural, uma regulação adequada é fundamental para garantir a eficiência e a equidade necessárias ao resguardo do interesse público. Da forma como proposto, o gatilho garantiria à empresa a receita requerida, independentemente de qualquer variação de mercado ou de sua eficiência em lidar com um recurso vital e escasso em vários locais onde atua, incluindo a Região Metropolitana de São Paulo.

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Sob o aspecto socioambiental, o equívoco seria ainda maior. A Política Nacional de Saneamento Básico (Lei Federal n.º 11.445/2007) instituiu como um dos princípios fundamentais do setor a necessidade de “adoção de medidas de fomento à moderação do consumo de água” (artigo 2.º, XIII). Especificamente em relação às tarifas, a lei determina que a instituição de valores deve observar um conjunto de diretrizes, entre elas, “IV – inibição do consumo supérfluo e do desperdício de recursos”. 

Da forma como havia sido proposto, o mecanismo de ajuste pela variação do consumo seria totalmente contrário a esses princípios e diretrizes. Que consumidor se sentiria estimulado a incorporar novas atitudes de uso consciente ou investir em tecnologias para isso se o resultado fosse o aumento da tarifa? Como argumentar pela economia se o aumento do consumo levasse à redução do valor cobrado pelo metro cúbico fornecido?

Além da incoerência decorrente do fato de essa proposta ser de autoria da agência reguladora que deveria, de acordo com a sua missão institucional, “assegurar tarifas justas para os usuários e estimular a eficiência e melhorias constantes na qualidade dos serviços prestados pelas concessionárias”, causou surpresa o seu caráter retrógrado e revelou o quanto a revisão tarifária planejada pela Arsesp está desconectada de soluções inovadoras que já vêm sendo largamente postas em prática no Brasil e no exterior.

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A Arsae, agência reguladora do Estado de Minas Gerais, por exemplo, foi na direção contrária e incluiu na última revisão tarifária que aprovou para a Copasa, empresa de saneamento do Estado, mecanismos que premiam financeiramente a companhia sempre que ela melhorar a eficiência e a qualidade dos serviços prestados. Para tanto definiu metas para a redução de perdas de água tratada no sistema de distribuição e para o aumento do volume de esgoto levado às estações tratamento, assim como para a qualidade da água que retorna aos rios depois de tratada.

No plano internacional há inúmeros bons exemplos, como o da Austrália, para citar apenas um. Para enfrentar a crise hídrica decorrente da seca intensa que enfrentou entre 1997 e 2012, o governo desse país criou um amplo programa de troca de equipamentos (descargas, torneiras e chuveiros) por modelos mais eficientes e econômicos. Os resultados foram a diminuição dos níveis de consumo e o estímulo ao desenvolvimento de uma cadeia produtiva de empresas dedicadas a oferecer serviços de melhoria de eficiência no uso da água, produzindo benefícios compartilhados amplamente pela sociedade e contribuindo, de fato, para a segurança hídrica local. 

Infelizmente, o governo paulista vem ignorando soluções sustentáveis e insiste em buscar garantias de abastecimento exclusivamente com o aumento da oferta. São bilhões de reais investidos em obras que parecem não ter fim para trazer água de lugares cada vez mais distantes, provocando impactos ambientais e conflitos com outras populações, que não concordam em ver seus recursos hídricos retirados para serem desperdiçados no enorme mata-borrão em que se transformou a Grande São Paulo.

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Segurança hídrica exige ações que vão muito além de espalhar tubulações e represas pelo Estado, pois, ao contrário do que se propaga, água de qualidade é um recurso finito e a cada dia mais escasso. A redução das perdas na distribuição deve ser uma das prioridades, assim como a universalização da coleta e do tratamento de esgoto, que leva à diminuição da poluição dos corpos hídricos próximos aos centros urbanos, permitindo sua utilização. Proteger e recuperar as áreas de mananciais, assegurando a capacidade desses locais de prover água em quantidade e qualidade adequada também é fundamental.

Entretanto, não há como prescindir do fator mais importante: a participação da sociedade. A construção de uma nova cultura de cuidado com a água, que leve à incorporação de práticas de consumo consciente, é inadiável, pois é a única solução definitiva para o desafio imposto pela escassez hídrica. Pôr os cidadãos como alvo de um gatilho prestes a disparar sempre que agirem na direção da sustentabilidade não parecia ser justo e inteligente, para ficar apenas nesses dois adjetivos.

BIÓLOGO, É PRESIDENTE DO INSTITUTO DEMOCRACIA E SUSTENTABILIDADE (IDS), E-MAIL: CAPOBIANCO@IDSBRASIL.ORG; E PESQUISADOR DO IDS E MESTRANDO EM CIÊNCIA AMBIENTAL PELA USP, E-MAIL: GUILHERME@IDSBRASIL.ORG

Reportagem publicada no Estadão em 8/3 – Agência desiste de ‘gatilho’ para reajustar água – repercutiu a decisão da Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp) de retirar da revisão tarifária da Sabesp a alteração automática do valor cobrado pelo fornecimento de água sempre que ocorresse uma variação significativa do consumo. Esse gatilho, que levaria ao aumento ou redução da tarifa quando ocorresse, respectivamente, diminuição ou aumento do gasto de água pelos usuários, foi duramente questionado nas consultas à sociedade feitas em fevereiro.

Ignorando as críticas, a Arsesp manteve o mecanismo sob a alegação de que precisava zelar pela sustentabilidade econômico-financeira da Sabesp. Mas depois da grande repercussão da reportagem do Estadão, a agência informou ter suspendido a adoção desse dispositivo para “aprofundar os estudos e melhorar o debate”. Embora tardia, a decisão merece aplausos, pois seria um equívoco de gravíssimas consequências.

Do ponto de vista econômico, a proposta era claramente um contrassenso. Como a Sabesp é uma empresa de capital misto que opera num mercado considerado monopólio natural, uma regulação adequada é fundamental para garantir a eficiência e a equidade necessárias ao resguardo do interesse público. Da forma como proposto, o gatilho garantiria à empresa a receita requerida, independentemente de qualquer variação de mercado ou de sua eficiência em lidar com um recurso vital e escasso em vários locais onde atua, incluindo a Região Metropolitana de São Paulo.

Sob o aspecto socioambiental, o equívoco seria ainda maior. A Política Nacional de Saneamento Básico (Lei Federal n.º 11.445/2007) instituiu como um dos princípios fundamentais do setor a necessidade de “adoção de medidas de fomento à moderação do consumo de água” (artigo 2.º, XIII). Especificamente em relação às tarifas, a lei determina que a instituição de valores deve observar um conjunto de diretrizes, entre elas, “IV – inibição do consumo supérfluo e do desperdício de recursos”. 

Da forma como havia sido proposto, o mecanismo de ajuste pela variação do consumo seria totalmente contrário a esses princípios e diretrizes. Que consumidor se sentiria estimulado a incorporar novas atitudes de uso consciente ou investir em tecnologias para isso se o resultado fosse o aumento da tarifa? Como argumentar pela economia se o aumento do consumo levasse à redução do valor cobrado pelo metro cúbico fornecido?

Além da incoerência decorrente do fato de essa proposta ser de autoria da agência reguladora que deveria, de acordo com a sua missão institucional, “assegurar tarifas justas para os usuários e estimular a eficiência e melhorias constantes na qualidade dos serviços prestados pelas concessionárias”, causou surpresa o seu caráter retrógrado e revelou o quanto a revisão tarifária planejada pela Arsesp está desconectada de soluções inovadoras que já vêm sendo largamente postas em prática no Brasil e no exterior.

A Arsae, agência reguladora do Estado de Minas Gerais, por exemplo, foi na direção contrária e incluiu na última revisão tarifária que aprovou para a Copasa, empresa de saneamento do Estado, mecanismos que premiam financeiramente a companhia sempre que ela melhorar a eficiência e a qualidade dos serviços prestados. Para tanto definiu metas para a redução de perdas de água tratada no sistema de distribuição e para o aumento do volume de esgoto levado às estações tratamento, assim como para a qualidade da água que retorna aos rios depois de tratada.

No plano internacional há inúmeros bons exemplos, como o da Austrália, para citar apenas um. Para enfrentar a crise hídrica decorrente da seca intensa que enfrentou entre 1997 e 2012, o governo desse país criou um amplo programa de troca de equipamentos (descargas, torneiras e chuveiros) por modelos mais eficientes e econômicos. Os resultados foram a diminuição dos níveis de consumo e o estímulo ao desenvolvimento de uma cadeia produtiva de empresas dedicadas a oferecer serviços de melhoria de eficiência no uso da água, produzindo benefícios compartilhados amplamente pela sociedade e contribuindo, de fato, para a segurança hídrica local. 

Infelizmente, o governo paulista vem ignorando soluções sustentáveis e insiste em buscar garantias de abastecimento exclusivamente com o aumento da oferta. São bilhões de reais investidos em obras que parecem não ter fim para trazer água de lugares cada vez mais distantes, provocando impactos ambientais e conflitos com outras populações, que não concordam em ver seus recursos hídricos retirados para serem desperdiçados no enorme mata-borrão em que se transformou a Grande São Paulo.

Segurança hídrica exige ações que vão muito além de espalhar tubulações e represas pelo Estado, pois, ao contrário do que se propaga, água de qualidade é um recurso finito e a cada dia mais escasso. A redução das perdas na distribuição deve ser uma das prioridades, assim como a universalização da coleta e do tratamento de esgoto, que leva à diminuição da poluição dos corpos hídricos próximos aos centros urbanos, permitindo sua utilização. Proteger e recuperar as áreas de mananciais, assegurando a capacidade desses locais de prover água em quantidade e qualidade adequada também é fundamental.

Entretanto, não há como prescindir do fator mais importante: a participação da sociedade. A construção de uma nova cultura de cuidado com a água, que leve à incorporação de práticas de consumo consciente, é inadiável, pois é a única solução definitiva para o desafio imposto pela escassez hídrica. Pôr os cidadãos como alvo de um gatilho prestes a disparar sempre que agirem na direção da sustentabilidade não parecia ser justo e inteligente, para ficar apenas nesses dois adjetivos.

BIÓLOGO, É PRESIDENTE DO INSTITUTO DEMOCRACIA E SUSTENTABILIDADE (IDS), E-MAIL: CAPOBIANCO@IDSBRASIL.ORG; E PESQUISADOR DO IDS E MESTRANDO EM CIÊNCIA AMBIENTAL PELA USP, E-MAIL: GUILHERME@IDSBRASIL.ORG

Reportagem publicada no Estadão em 8/3 – Agência desiste de ‘gatilho’ para reajustar água – repercutiu a decisão da Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp) de retirar da revisão tarifária da Sabesp a alteração automática do valor cobrado pelo fornecimento de água sempre que ocorresse uma variação significativa do consumo. Esse gatilho, que levaria ao aumento ou redução da tarifa quando ocorresse, respectivamente, diminuição ou aumento do gasto de água pelos usuários, foi duramente questionado nas consultas à sociedade feitas em fevereiro.

Ignorando as críticas, a Arsesp manteve o mecanismo sob a alegação de que precisava zelar pela sustentabilidade econômico-financeira da Sabesp. Mas depois da grande repercussão da reportagem do Estadão, a agência informou ter suspendido a adoção desse dispositivo para “aprofundar os estudos e melhorar o debate”. Embora tardia, a decisão merece aplausos, pois seria um equívoco de gravíssimas consequências.

Do ponto de vista econômico, a proposta era claramente um contrassenso. Como a Sabesp é uma empresa de capital misto que opera num mercado considerado monopólio natural, uma regulação adequada é fundamental para garantir a eficiência e a equidade necessárias ao resguardo do interesse público. Da forma como proposto, o gatilho garantiria à empresa a receita requerida, independentemente de qualquer variação de mercado ou de sua eficiência em lidar com um recurso vital e escasso em vários locais onde atua, incluindo a Região Metropolitana de São Paulo.

Sob o aspecto socioambiental, o equívoco seria ainda maior. A Política Nacional de Saneamento Básico (Lei Federal n.º 11.445/2007) instituiu como um dos princípios fundamentais do setor a necessidade de “adoção de medidas de fomento à moderação do consumo de água” (artigo 2.º, XIII). Especificamente em relação às tarifas, a lei determina que a instituição de valores deve observar um conjunto de diretrizes, entre elas, “IV – inibição do consumo supérfluo e do desperdício de recursos”. 

Da forma como havia sido proposto, o mecanismo de ajuste pela variação do consumo seria totalmente contrário a esses princípios e diretrizes. Que consumidor se sentiria estimulado a incorporar novas atitudes de uso consciente ou investir em tecnologias para isso se o resultado fosse o aumento da tarifa? Como argumentar pela economia se o aumento do consumo levasse à redução do valor cobrado pelo metro cúbico fornecido?

Além da incoerência decorrente do fato de essa proposta ser de autoria da agência reguladora que deveria, de acordo com a sua missão institucional, “assegurar tarifas justas para os usuários e estimular a eficiência e melhorias constantes na qualidade dos serviços prestados pelas concessionárias”, causou surpresa o seu caráter retrógrado e revelou o quanto a revisão tarifária planejada pela Arsesp está desconectada de soluções inovadoras que já vêm sendo largamente postas em prática no Brasil e no exterior.

A Arsae, agência reguladora do Estado de Minas Gerais, por exemplo, foi na direção contrária e incluiu na última revisão tarifária que aprovou para a Copasa, empresa de saneamento do Estado, mecanismos que premiam financeiramente a companhia sempre que ela melhorar a eficiência e a qualidade dos serviços prestados. Para tanto definiu metas para a redução de perdas de água tratada no sistema de distribuição e para o aumento do volume de esgoto levado às estações tratamento, assim como para a qualidade da água que retorna aos rios depois de tratada.

No plano internacional há inúmeros bons exemplos, como o da Austrália, para citar apenas um. Para enfrentar a crise hídrica decorrente da seca intensa que enfrentou entre 1997 e 2012, o governo desse país criou um amplo programa de troca de equipamentos (descargas, torneiras e chuveiros) por modelos mais eficientes e econômicos. Os resultados foram a diminuição dos níveis de consumo e o estímulo ao desenvolvimento de uma cadeia produtiva de empresas dedicadas a oferecer serviços de melhoria de eficiência no uso da água, produzindo benefícios compartilhados amplamente pela sociedade e contribuindo, de fato, para a segurança hídrica local. 

Infelizmente, o governo paulista vem ignorando soluções sustentáveis e insiste em buscar garantias de abastecimento exclusivamente com o aumento da oferta. São bilhões de reais investidos em obras que parecem não ter fim para trazer água de lugares cada vez mais distantes, provocando impactos ambientais e conflitos com outras populações, que não concordam em ver seus recursos hídricos retirados para serem desperdiçados no enorme mata-borrão em que se transformou a Grande São Paulo.

Segurança hídrica exige ações que vão muito além de espalhar tubulações e represas pelo Estado, pois, ao contrário do que se propaga, água de qualidade é um recurso finito e a cada dia mais escasso. A redução das perdas na distribuição deve ser uma das prioridades, assim como a universalização da coleta e do tratamento de esgoto, que leva à diminuição da poluição dos corpos hídricos próximos aos centros urbanos, permitindo sua utilização. Proteger e recuperar as áreas de mananciais, assegurando a capacidade desses locais de prover água em quantidade e qualidade adequada também é fundamental.

Entretanto, não há como prescindir do fator mais importante: a participação da sociedade. A construção de uma nova cultura de cuidado com a água, que leve à incorporação de práticas de consumo consciente, é inadiável, pois é a única solução definitiva para o desafio imposto pela escassez hídrica. Pôr os cidadãos como alvo de um gatilho prestes a disparar sempre que agirem na direção da sustentabilidade não parecia ser justo e inteligente, para ficar apenas nesses dois adjetivos.

BIÓLOGO, É PRESIDENTE DO INSTITUTO DEMOCRACIA E SUSTENTABILIDADE (IDS), E-MAIL: CAPOBIANCO@IDSBRASIL.ORG; E PESQUISADOR DO IDS E MESTRANDO EM CIÊNCIA AMBIENTAL PELA USP, E-MAIL: GUILHERME@IDSBRASIL.ORG

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