Opinião|A universidade contra-ataca


A censura a livros infantis e juvenis quase nunca se mostra à luz do dia. Encapuzada, age em nome de outras instâncias: pais de famílias, instituições religiosas, grupos identitários

Por Antonio Sampaio Dória

A censura aos livros voltou! Mas, antes de se deixar envenenar pela raiva, tome o antídoto Literatura Infantil e Juvenil na Fogueira, da Aletria Editora, organizado por João Luís Ceccantini, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Eliane Galvão e Thiago Alves Valente. Vá com cuidado: o tema é mais sutil do que parece, e não se limita a um lado do espectro ideológico.

A grossura do volume não deve inibir ninguém: escrito por 35 acadêmicos, esse é um livro-caleidoscópio que nada tem de acadêmico. O texto flui jornalisticamente, deixando um gosto de “quero mais” que nos faz googlar atrás de informação, já que na origem de cada capítulo há um fato polêmico que ganhou as manchetes e as redes sociais.

A censura, velha surda e cega que aparece na capa com sua tesoura, quase nunca se mostra à luz do dia. Encapuzada, entre sombras e subterfúgios, age em nome de outras instâncias: pais de famílias, instituições religiosas, grupos identitários. Figura sorrateira, não se poderia encerrá-la em um volume, e a publicação opta por abrir o debate sobre a questão. Considerando a cena dos últimos anos, sim, é um contra-ataque.

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O debate, porém, raramente acontece. A bibliocastia — prática de destruição de livros — passa pela Inquisição, o nazismo, a caça às bruxas nos EUA (quando até gibis de super-heróis foram atacados), e se concentra hoje em grupos conservadores. A fogueira é virtual, alimentada pelo algoritmo do ódio, mas não visa ao debate, e sim à eliminação de livros infantis e juvenis de programas curriculares e bibliotecas.

O leitor será surpreendido, não só pelos argumentos estapafúrdios dos censores, mas também pela ausência de censura: embora a ditadura militar tenha acossado a produção artística nos anos 1970 (música, teatro, literatura), a literatura infantil e juvenil passou incólume, atesta Ruth Rocha. Por descuido dos censores? Ou por serem incapazes de ler nas entrelinhas e interpretar metáforas como a de O Reizinho Mandão?

Além de o Estado autoritário, defensor de si mesmo, e de grupos de pais, defensores da criança, serem incapazes de discernimento, há também a soft censorship, presente nas editoras e escolas, que evitam polêmicas e optam pelo convencional, já testado antes. O resultado é a autocensura dos próprios autores.

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Pergunta o advogado do diabo: e se esse livro for usado justamente por aqueles que visam à adoção de livros nas escolas e a garantir presença nos editais do governo?

Nesse caso, devem apostar em obras que não incluam: a) o período da ditadura militar (Meninos sem Pátria, de Luiz Puntel), b) espíritos (Evocação, de Marcia Kupstas; Onde Vivem os Monstros, de Maurice Sendak), c) Charles Darwin (A Chave do Tamanho, de Monteiro Lobato), k) referências aos genitais (O Diário de Anne Frank; Aparelho Sexual e Cia., de Zep e Hélène Bruller), d) palavrões (O Avesso da Pele, de Jefferson Tenório; A Bruxa do Armário de Limpeza, de Pierre Gripari, com os terríveis versos “Bruxa vagabunda, cuide bem da sua bunda”), e) incesto (Enquanto o Sono Não Vem, de José Mauro Brant), f) suicídio, suposto ou real (O Menino que Espiava para Dentro, de Ana Maria Machado; As Vantagens de Ser Invisível, de Stephen Chbosky), g) homossexualidade (Menino Ama Menino, de Marilene Godinho; a graphic novel Vingadores: A Cruzada das Crianças, proibida na Bienal do Rio em 2019), h) personagens negras que possam ser consideradas estereotipadas (Peppa, Silvana Rando), i) orixás (Amoras, de Emicida), j) identidade de gênero (Minha Família Enauenê, de Rita Carelli), e até o k) humor (Aparelho Sexual e Cia.; Peppa).

E qual o método dessa heroína infatigável na defesa da pureza infantil? Quando se quer queimar bruxas, “a garimpagem de frases descontextualizadas é a técnica mais conveniente”, aponta Luzmara Curcino. À censura não interessa o “como” e “por quê?” literários, mas apenas o “o quê”. O livro é apenas propaganda do ideário do autor.

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Quando a questão é ideológica, o discurso se acovarda: “É muito cedo para que crianças e adolescentes se deparem com esses problemas.” “O pai na prisão... Que péssimo exemplo para um filho!” O fato de a prisão estar ligada à repressão política durante o regime militar, e ser baseada em fatos reais, claro, não vem ao caso (Quando Eu Voltei, Tive uma Surpresa, de Joel Rufino dos Santos).

Em raros casos a censura se dá com todas as letras: Evocação, de Marcia Kusptas, foi atacado em portais religiosos por mostrar adolescentes que fazem o perigoso jogo do copo, ou seja, evocam espíritos. Essa “feitiçaria”, ou “doutrina espírita”, segundo o censor, se faz pelo “apagamento dos valores culturais das tradições judaica e cristã” – ainda bem que ele nunca leu Harry Potter.

Ignoram eles que literatura é jogo entre real e fantasia, imaginação, o famoso “e se...” que permite experimentar o perigo sem riscos, viver o medo (do sobrenatural, digamos) e sair fortalecido pelos “efeitos catárticos e terapêuticos” gerados pelo texto, lembra Silvana Barbosa Carrijo.

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E quando o humor se torna vilão? Gerando o riso, o humor também gera insegurança, afinal há sempre o objeto do riso, aquele que em tese deveria ser protegido em sua frágil identidade. O exagero, o superlativo quase fantástico, no texto ou nas ilustrações, aponta Mell Brites, é uma faca de dois gumes – como em Peppa, menina negra cujo cabelo é tão forte que serve para o “cabo-de-guerra” – elogio ou zombaria?

Campeão de citações, o seminal Antonio Cândido comparece para desanuviar o ambiente: a literatura não tem como função “corromper nem edificar”. “Mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver.” Basta lembrar que a literatura infantil clássica (contos de fada) traz temas terríveis, embora não sejam nomeados. E Lygia Bojunga, a autora brasileira mais premiada lá fora, já abordou em seus livros o suicídio, o abuso sexual, a prostituição.

Para os censores, o livro infantil e juvenil deve apresentar bons modelos morais, evitar “temas fraturantes”, não questionar gênero nem identidade, valorizar a cultura e a religião original do leitor – pode-se imaginar o resultado. Resta a dúvida: ao gerar tal atmosfera de “pânico moral”, eles querem defender a criança ou a si mesmos – do questionamento, da chacota, da crítica que podem vir da própria criança?

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MESTRE EM LITERATURA COMPARADA PELA USP, É AUTOR DE LIVROS INFANTO-JUVENIS, ENTRE ELES ‘A VIRADA DE TIA NASTÁCIA’

A censura aos livros voltou! Mas, antes de se deixar envenenar pela raiva, tome o antídoto Literatura Infantil e Juvenil na Fogueira, da Aletria Editora, organizado por João Luís Ceccantini, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Eliane Galvão e Thiago Alves Valente. Vá com cuidado: o tema é mais sutil do que parece, e não se limita a um lado do espectro ideológico.

A grossura do volume não deve inibir ninguém: escrito por 35 acadêmicos, esse é um livro-caleidoscópio que nada tem de acadêmico. O texto flui jornalisticamente, deixando um gosto de “quero mais” que nos faz googlar atrás de informação, já que na origem de cada capítulo há um fato polêmico que ganhou as manchetes e as redes sociais.

A censura, velha surda e cega que aparece na capa com sua tesoura, quase nunca se mostra à luz do dia. Encapuzada, entre sombras e subterfúgios, age em nome de outras instâncias: pais de famílias, instituições religiosas, grupos identitários. Figura sorrateira, não se poderia encerrá-la em um volume, e a publicação opta por abrir o debate sobre a questão. Considerando a cena dos últimos anos, sim, é um contra-ataque.

O debate, porém, raramente acontece. A bibliocastia — prática de destruição de livros — passa pela Inquisição, o nazismo, a caça às bruxas nos EUA (quando até gibis de super-heróis foram atacados), e se concentra hoje em grupos conservadores. A fogueira é virtual, alimentada pelo algoritmo do ódio, mas não visa ao debate, e sim à eliminação de livros infantis e juvenis de programas curriculares e bibliotecas.

O leitor será surpreendido, não só pelos argumentos estapafúrdios dos censores, mas também pela ausência de censura: embora a ditadura militar tenha acossado a produção artística nos anos 1970 (música, teatro, literatura), a literatura infantil e juvenil passou incólume, atesta Ruth Rocha. Por descuido dos censores? Ou por serem incapazes de ler nas entrelinhas e interpretar metáforas como a de O Reizinho Mandão?

Além de o Estado autoritário, defensor de si mesmo, e de grupos de pais, defensores da criança, serem incapazes de discernimento, há também a soft censorship, presente nas editoras e escolas, que evitam polêmicas e optam pelo convencional, já testado antes. O resultado é a autocensura dos próprios autores.

Pergunta o advogado do diabo: e se esse livro for usado justamente por aqueles que visam à adoção de livros nas escolas e a garantir presença nos editais do governo?

Nesse caso, devem apostar em obras que não incluam: a) o período da ditadura militar (Meninos sem Pátria, de Luiz Puntel), b) espíritos (Evocação, de Marcia Kupstas; Onde Vivem os Monstros, de Maurice Sendak), c) Charles Darwin (A Chave do Tamanho, de Monteiro Lobato), k) referências aos genitais (O Diário de Anne Frank; Aparelho Sexual e Cia., de Zep e Hélène Bruller), d) palavrões (O Avesso da Pele, de Jefferson Tenório; A Bruxa do Armário de Limpeza, de Pierre Gripari, com os terríveis versos “Bruxa vagabunda, cuide bem da sua bunda”), e) incesto (Enquanto o Sono Não Vem, de José Mauro Brant), f) suicídio, suposto ou real (O Menino que Espiava para Dentro, de Ana Maria Machado; As Vantagens de Ser Invisível, de Stephen Chbosky), g) homossexualidade (Menino Ama Menino, de Marilene Godinho; a graphic novel Vingadores: A Cruzada das Crianças, proibida na Bienal do Rio em 2019), h) personagens negras que possam ser consideradas estereotipadas (Peppa, Silvana Rando), i) orixás (Amoras, de Emicida), j) identidade de gênero (Minha Família Enauenê, de Rita Carelli), e até o k) humor (Aparelho Sexual e Cia.; Peppa).

E qual o método dessa heroína infatigável na defesa da pureza infantil? Quando se quer queimar bruxas, “a garimpagem de frases descontextualizadas é a técnica mais conveniente”, aponta Luzmara Curcino. À censura não interessa o “como” e “por quê?” literários, mas apenas o “o quê”. O livro é apenas propaganda do ideário do autor.

Quando a questão é ideológica, o discurso se acovarda: “É muito cedo para que crianças e adolescentes se deparem com esses problemas.” “O pai na prisão... Que péssimo exemplo para um filho!” O fato de a prisão estar ligada à repressão política durante o regime militar, e ser baseada em fatos reais, claro, não vem ao caso (Quando Eu Voltei, Tive uma Surpresa, de Joel Rufino dos Santos).

Em raros casos a censura se dá com todas as letras: Evocação, de Marcia Kusptas, foi atacado em portais religiosos por mostrar adolescentes que fazem o perigoso jogo do copo, ou seja, evocam espíritos. Essa “feitiçaria”, ou “doutrina espírita”, segundo o censor, se faz pelo “apagamento dos valores culturais das tradições judaica e cristã” – ainda bem que ele nunca leu Harry Potter.

Ignoram eles que literatura é jogo entre real e fantasia, imaginação, o famoso “e se...” que permite experimentar o perigo sem riscos, viver o medo (do sobrenatural, digamos) e sair fortalecido pelos “efeitos catárticos e terapêuticos” gerados pelo texto, lembra Silvana Barbosa Carrijo.

E quando o humor se torna vilão? Gerando o riso, o humor também gera insegurança, afinal há sempre o objeto do riso, aquele que em tese deveria ser protegido em sua frágil identidade. O exagero, o superlativo quase fantástico, no texto ou nas ilustrações, aponta Mell Brites, é uma faca de dois gumes – como em Peppa, menina negra cujo cabelo é tão forte que serve para o “cabo-de-guerra” – elogio ou zombaria?

Campeão de citações, o seminal Antonio Cândido comparece para desanuviar o ambiente: a literatura não tem como função “corromper nem edificar”. “Mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver.” Basta lembrar que a literatura infantil clássica (contos de fada) traz temas terríveis, embora não sejam nomeados. E Lygia Bojunga, a autora brasileira mais premiada lá fora, já abordou em seus livros o suicídio, o abuso sexual, a prostituição.

Para os censores, o livro infantil e juvenil deve apresentar bons modelos morais, evitar “temas fraturantes”, não questionar gênero nem identidade, valorizar a cultura e a religião original do leitor – pode-se imaginar o resultado. Resta a dúvida: ao gerar tal atmosfera de “pânico moral”, eles querem defender a criança ou a si mesmos – do questionamento, da chacota, da crítica que podem vir da própria criança?

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MESTRE EM LITERATURA COMPARADA PELA USP, É AUTOR DE LIVROS INFANTO-JUVENIS, ENTRE ELES ‘A VIRADA DE TIA NASTÁCIA’

A censura aos livros voltou! Mas, antes de se deixar envenenar pela raiva, tome o antídoto Literatura Infantil e Juvenil na Fogueira, da Aletria Editora, organizado por João Luís Ceccantini, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Eliane Galvão e Thiago Alves Valente. Vá com cuidado: o tema é mais sutil do que parece, e não se limita a um lado do espectro ideológico.

A grossura do volume não deve inibir ninguém: escrito por 35 acadêmicos, esse é um livro-caleidoscópio que nada tem de acadêmico. O texto flui jornalisticamente, deixando um gosto de “quero mais” que nos faz googlar atrás de informação, já que na origem de cada capítulo há um fato polêmico que ganhou as manchetes e as redes sociais.

A censura, velha surda e cega que aparece na capa com sua tesoura, quase nunca se mostra à luz do dia. Encapuzada, entre sombras e subterfúgios, age em nome de outras instâncias: pais de famílias, instituições religiosas, grupos identitários. Figura sorrateira, não se poderia encerrá-la em um volume, e a publicação opta por abrir o debate sobre a questão. Considerando a cena dos últimos anos, sim, é um contra-ataque.

O debate, porém, raramente acontece. A bibliocastia — prática de destruição de livros — passa pela Inquisição, o nazismo, a caça às bruxas nos EUA (quando até gibis de super-heróis foram atacados), e se concentra hoje em grupos conservadores. A fogueira é virtual, alimentada pelo algoritmo do ódio, mas não visa ao debate, e sim à eliminação de livros infantis e juvenis de programas curriculares e bibliotecas.

O leitor será surpreendido, não só pelos argumentos estapafúrdios dos censores, mas também pela ausência de censura: embora a ditadura militar tenha acossado a produção artística nos anos 1970 (música, teatro, literatura), a literatura infantil e juvenil passou incólume, atesta Ruth Rocha. Por descuido dos censores? Ou por serem incapazes de ler nas entrelinhas e interpretar metáforas como a de O Reizinho Mandão?

Além de o Estado autoritário, defensor de si mesmo, e de grupos de pais, defensores da criança, serem incapazes de discernimento, há também a soft censorship, presente nas editoras e escolas, que evitam polêmicas e optam pelo convencional, já testado antes. O resultado é a autocensura dos próprios autores.

Pergunta o advogado do diabo: e se esse livro for usado justamente por aqueles que visam à adoção de livros nas escolas e a garantir presença nos editais do governo?

Nesse caso, devem apostar em obras que não incluam: a) o período da ditadura militar (Meninos sem Pátria, de Luiz Puntel), b) espíritos (Evocação, de Marcia Kupstas; Onde Vivem os Monstros, de Maurice Sendak), c) Charles Darwin (A Chave do Tamanho, de Monteiro Lobato), k) referências aos genitais (O Diário de Anne Frank; Aparelho Sexual e Cia., de Zep e Hélène Bruller), d) palavrões (O Avesso da Pele, de Jefferson Tenório; A Bruxa do Armário de Limpeza, de Pierre Gripari, com os terríveis versos “Bruxa vagabunda, cuide bem da sua bunda”), e) incesto (Enquanto o Sono Não Vem, de José Mauro Brant), f) suicídio, suposto ou real (O Menino que Espiava para Dentro, de Ana Maria Machado; As Vantagens de Ser Invisível, de Stephen Chbosky), g) homossexualidade (Menino Ama Menino, de Marilene Godinho; a graphic novel Vingadores: A Cruzada das Crianças, proibida na Bienal do Rio em 2019), h) personagens negras que possam ser consideradas estereotipadas (Peppa, Silvana Rando), i) orixás (Amoras, de Emicida), j) identidade de gênero (Minha Família Enauenê, de Rita Carelli), e até o k) humor (Aparelho Sexual e Cia.; Peppa).

E qual o método dessa heroína infatigável na defesa da pureza infantil? Quando se quer queimar bruxas, “a garimpagem de frases descontextualizadas é a técnica mais conveniente”, aponta Luzmara Curcino. À censura não interessa o “como” e “por quê?” literários, mas apenas o “o quê”. O livro é apenas propaganda do ideário do autor.

Quando a questão é ideológica, o discurso se acovarda: “É muito cedo para que crianças e adolescentes se deparem com esses problemas.” “O pai na prisão... Que péssimo exemplo para um filho!” O fato de a prisão estar ligada à repressão política durante o regime militar, e ser baseada em fatos reais, claro, não vem ao caso (Quando Eu Voltei, Tive uma Surpresa, de Joel Rufino dos Santos).

Em raros casos a censura se dá com todas as letras: Evocação, de Marcia Kusptas, foi atacado em portais religiosos por mostrar adolescentes que fazem o perigoso jogo do copo, ou seja, evocam espíritos. Essa “feitiçaria”, ou “doutrina espírita”, segundo o censor, se faz pelo “apagamento dos valores culturais das tradições judaica e cristã” – ainda bem que ele nunca leu Harry Potter.

Ignoram eles que literatura é jogo entre real e fantasia, imaginação, o famoso “e se...” que permite experimentar o perigo sem riscos, viver o medo (do sobrenatural, digamos) e sair fortalecido pelos “efeitos catárticos e terapêuticos” gerados pelo texto, lembra Silvana Barbosa Carrijo.

E quando o humor se torna vilão? Gerando o riso, o humor também gera insegurança, afinal há sempre o objeto do riso, aquele que em tese deveria ser protegido em sua frágil identidade. O exagero, o superlativo quase fantástico, no texto ou nas ilustrações, aponta Mell Brites, é uma faca de dois gumes – como em Peppa, menina negra cujo cabelo é tão forte que serve para o “cabo-de-guerra” – elogio ou zombaria?

Campeão de citações, o seminal Antonio Cândido comparece para desanuviar o ambiente: a literatura não tem como função “corromper nem edificar”. “Mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver.” Basta lembrar que a literatura infantil clássica (contos de fada) traz temas terríveis, embora não sejam nomeados. E Lygia Bojunga, a autora brasileira mais premiada lá fora, já abordou em seus livros o suicídio, o abuso sexual, a prostituição.

Para os censores, o livro infantil e juvenil deve apresentar bons modelos morais, evitar “temas fraturantes”, não questionar gênero nem identidade, valorizar a cultura e a religião original do leitor – pode-se imaginar o resultado. Resta a dúvida: ao gerar tal atmosfera de “pânico moral”, eles querem defender a criança ou a si mesmos – do questionamento, da chacota, da crítica que podem vir da própria criança?

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MESTRE EM LITERATURA COMPARADA PELA USP, É AUTOR DE LIVROS INFANTO-JUVENIS, ENTRE ELES ‘A VIRADA DE TIA NASTÁCIA’

A censura aos livros voltou! Mas, antes de se deixar envenenar pela raiva, tome o antídoto Literatura Infantil e Juvenil na Fogueira, da Aletria Editora, organizado por João Luís Ceccantini, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Eliane Galvão e Thiago Alves Valente. Vá com cuidado: o tema é mais sutil do que parece, e não se limita a um lado do espectro ideológico.

A grossura do volume não deve inibir ninguém: escrito por 35 acadêmicos, esse é um livro-caleidoscópio que nada tem de acadêmico. O texto flui jornalisticamente, deixando um gosto de “quero mais” que nos faz googlar atrás de informação, já que na origem de cada capítulo há um fato polêmico que ganhou as manchetes e as redes sociais.

A censura, velha surda e cega que aparece na capa com sua tesoura, quase nunca se mostra à luz do dia. Encapuzada, entre sombras e subterfúgios, age em nome de outras instâncias: pais de famílias, instituições religiosas, grupos identitários. Figura sorrateira, não se poderia encerrá-la em um volume, e a publicação opta por abrir o debate sobre a questão. Considerando a cena dos últimos anos, sim, é um contra-ataque.

O debate, porém, raramente acontece. A bibliocastia — prática de destruição de livros — passa pela Inquisição, o nazismo, a caça às bruxas nos EUA (quando até gibis de super-heróis foram atacados), e se concentra hoje em grupos conservadores. A fogueira é virtual, alimentada pelo algoritmo do ódio, mas não visa ao debate, e sim à eliminação de livros infantis e juvenis de programas curriculares e bibliotecas.

O leitor será surpreendido, não só pelos argumentos estapafúrdios dos censores, mas também pela ausência de censura: embora a ditadura militar tenha acossado a produção artística nos anos 1970 (música, teatro, literatura), a literatura infantil e juvenil passou incólume, atesta Ruth Rocha. Por descuido dos censores? Ou por serem incapazes de ler nas entrelinhas e interpretar metáforas como a de O Reizinho Mandão?

Além de o Estado autoritário, defensor de si mesmo, e de grupos de pais, defensores da criança, serem incapazes de discernimento, há também a soft censorship, presente nas editoras e escolas, que evitam polêmicas e optam pelo convencional, já testado antes. O resultado é a autocensura dos próprios autores.

Pergunta o advogado do diabo: e se esse livro for usado justamente por aqueles que visam à adoção de livros nas escolas e a garantir presença nos editais do governo?

Nesse caso, devem apostar em obras que não incluam: a) o período da ditadura militar (Meninos sem Pátria, de Luiz Puntel), b) espíritos (Evocação, de Marcia Kupstas; Onde Vivem os Monstros, de Maurice Sendak), c) Charles Darwin (A Chave do Tamanho, de Monteiro Lobato), k) referências aos genitais (O Diário de Anne Frank; Aparelho Sexual e Cia., de Zep e Hélène Bruller), d) palavrões (O Avesso da Pele, de Jefferson Tenório; A Bruxa do Armário de Limpeza, de Pierre Gripari, com os terríveis versos “Bruxa vagabunda, cuide bem da sua bunda”), e) incesto (Enquanto o Sono Não Vem, de José Mauro Brant), f) suicídio, suposto ou real (O Menino que Espiava para Dentro, de Ana Maria Machado; As Vantagens de Ser Invisível, de Stephen Chbosky), g) homossexualidade (Menino Ama Menino, de Marilene Godinho; a graphic novel Vingadores: A Cruzada das Crianças, proibida na Bienal do Rio em 2019), h) personagens negras que possam ser consideradas estereotipadas (Peppa, Silvana Rando), i) orixás (Amoras, de Emicida), j) identidade de gênero (Minha Família Enauenê, de Rita Carelli), e até o k) humor (Aparelho Sexual e Cia.; Peppa).

E qual o método dessa heroína infatigável na defesa da pureza infantil? Quando se quer queimar bruxas, “a garimpagem de frases descontextualizadas é a técnica mais conveniente”, aponta Luzmara Curcino. À censura não interessa o “como” e “por quê?” literários, mas apenas o “o quê”. O livro é apenas propaganda do ideário do autor.

Quando a questão é ideológica, o discurso se acovarda: “É muito cedo para que crianças e adolescentes se deparem com esses problemas.” “O pai na prisão... Que péssimo exemplo para um filho!” O fato de a prisão estar ligada à repressão política durante o regime militar, e ser baseada em fatos reais, claro, não vem ao caso (Quando Eu Voltei, Tive uma Surpresa, de Joel Rufino dos Santos).

Em raros casos a censura se dá com todas as letras: Evocação, de Marcia Kusptas, foi atacado em portais religiosos por mostrar adolescentes que fazem o perigoso jogo do copo, ou seja, evocam espíritos. Essa “feitiçaria”, ou “doutrina espírita”, segundo o censor, se faz pelo “apagamento dos valores culturais das tradições judaica e cristã” – ainda bem que ele nunca leu Harry Potter.

Ignoram eles que literatura é jogo entre real e fantasia, imaginação, o famoso “e se...” que permite experimentar o perigo sem riscos, viver o medo (do sobrenatural, digamos) e sair fortalecido pelos “efeitos catárticos e terapêuticos” gerados pelo texto, lembra Silvana Barbosa Carrijo.

E quando o humor se torna vilão? Gerando o riso, o humor também gera insegurança, afinal há sempre o objeto do riso, aquele que em tese deveria ser protegido em sua frágil identidade. O exagero, o superlativo quase fantástico, no texto ou nas ilustrações, aponta Mell Brites, é uma faca de dois gumes – como em Peppa, menina negra cujo cabelo é tão forte que serve para o “cabo-de-guerra” – elogio ou zombaria?

Campeão de citações, o seminal Antonio Cândido comparece para desanuviar o ambiente: a literatura não tem como função “corromper nem edificar”. “Mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver.” Basta lembrar que a literatura infantil clássica (contos de fada) traz temas terríveis, embora não sejam nomeados. E Lygia Bojunga, a autora brasileira mais premiada lá fora, já abordou em seus livros o suicídio, o abuso sexual, a prostituição.

Para os censores, o livro infantil e juvenil deve apresentar bons modelos morais, evitar “temas fraturantes”, não questionar gênero nem identidade, valorizar a cultura e a religião original do leitor – pode-se imaginar o resultado. Resta a dúvida: ao gerar tal atmosfera de “pânico moral”, eles querem defender a criança ou a si mesmos – do questionamento, da chacota, da crítica que podem vir da própria criança?

*

MESTRE EM LITERATURA COMPARADA PELA USP, É AUTOR DE LIVROS INFANTO-JUVENIS, ENTRE ELES ‘A VIRADA DE TIA NASTÁCIA’

Opinião por Antonio Sampaio Dória

Mestre em Literatura Comparada pela USP, é autor de livros infanto-juvenis, entre eles 'A Virada de Tia Nastácia'

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