Opinião|Aos amigos tudo, aos inimigos a lei


Estariam procuradores da Lava Jato julgando o mérito de certas ações reparatórias?

Por ÉRICA GORGA

Quem sonhou que o combate à corrupção protagonizado pela Lava Jato no Brasil se equiparava ao empregado nos EUA, pode acordar: continuamos na terra de Macunaíma.

Na terra do Tio Sam foi erigido o mais sólido sistema de primazia do Direito (rule of law), que é o alicerce da maior democracia do mundo. Mas, em terra brasilis, a primazia do Direito nunca foi efetivamente construída. Aqui o sistema vigente é outro: aos amigos tudo, aos inimigos a lei.

A revelação das trocas de mensagens privadas entre o ex-juiz Sergio Moro e o procurador da República Deltan Dallagnol expõe ao público possíveis falhas nas suas condutas no que tange à imparcialidade potencialmente eivada por relações excessivamente “amistosas” que levariam à suspeição do juiz. Apontou-se o vazamento ilegal das mensagens, tal como Teori Zavascki indicou ilegalidades no vazamento da conversa entre Lula e Dilma realizado por Moro no caso da posse de Lula como ministro. O juiz, na época, justificou, em entrevista ao jornalista Pedro Bial na TV, que decidiu vazar o diálogo entre os petistas pelo conteúdo, desconsiderando a discussão sobre a legalidade da decisão.

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Assim, Moro não pode ficar imune ao próprio argumento da importância do conteúdo vazado, como suscitou o editorial Muito a esclarecer (Estado, 11/6): “Não é possível ficar indiferente à suspeita, levantada pelas mensagens, de que o então juiz Sergio Moro pode ter dado orientações ao procurador Deltan Dallagnol, responsável pela Lava Jato, em casos relativos à operação”.

Aliás, Dallagnol precisa esclarecer não só a troca privilegiada de mensagens, mas outras falhas técnicas, notadamente em relação às decisões sobre os valores recuperados na Operação Lava Jato.

Em inúmeros vídeos e no recém-divulgado em sua defesa no Facebook, em 10/6, Dallagnol cita os “R$ 13 bilhões recuperados” apenas “para os cofres públicos”. Assim, os procuradores da força-tarefa persistem falando como se somente dinheiro público tivesse sido desviado nos esquemas de corrupção, desprezando completamente o desvio de bilhões de patrimônio privado nos crimes praticados contra a poupança popular investida na Petrobrás, que é sociedade de economia mista.

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O patrimônio público da União federal abrange só cerca de 28,7% do capital acionário da petroleira, e a grande maioria do capital nela investido é privada, o que os procuradores se recusam a enxergar.

Como a maior parte do patrimônio dissipado no petrolão proveio de investimento privado, Dallagnol tem de aclarar por que decidiu não fazer nada para devolvê-lo a quem de direito, mesmo de posse de todas as informações e provas sobre os ilícitos financeiros perpetrados. A inação ocorre em franco descumprimento da Lei 7.913/1989, que expressamente determina que “o Ministério Público, de ofício ou por solicitação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), adotará as medidas judiciais necessárias para evitar prejuízos ou obter ressarcimento de danos causados aos titulares de valores mobiliários e aos investidores do mercado (...)”.

Existem milhares de aposentados, pensionistas e trabalhadores que perderam recursos financeiros necessários à sua sobrevivência, já que seus fundos de aposentadoria sofreram bilhões de prejuízo em negócios eivados por fraudes e corrupção na petroleira. Tais fundos, agora, descontam os pagamentos de aposentados e beneficiários em até 30%, demandando novos aportes para viabilizar o pagamento de aposentadorias e benefícios. Em suma, a omissão do Ministério Público Federal está gerando danos a aposentadorias e benefícios de milhares de pessoas, a quem o Ministério Público, por obrigação legal, deveria proteger.

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Os procuradores da força-tarefa de Curitiba têm plena ciência sobre o processo da ação coletiva americana que recuperou US$ 2,95 bilhões para fundos de aposentadoria e investidores estrangeiros da Petrobrás nos EUA e de que no acordo da empresa com a Securities and Exchange Commission (SEC) americana, por eles mesmos divulgados, a SEC obriga destinar valores das multas aplicadas para a indenização dos investidores lá lesados pelas fraudes. Isso mostra que a primazia do Direito funciona não só para prender, mas sobretudo para devolver o dinheiro a quem sofreu perdas nos crimes financeiros.

Por que, então, se inspiram no Direito americano seletivamente, só nos aspectos penais do combate à corrupção, e optam por não aplicar as melhores técnicas usadas pelas autoridades americanas quanto à devolução do dinheiro recuperado? E pior: em vez de viabilizar a devolução da totalidade do dinheiro aos lesados, os procuradores tentaram criar fundação bilionária de direito privado para controlar o destino de metade do dinheiro recuperado graças à colaboração com autoridades americanas, violando normas do ordenamento jurídico pátrio. A fundação visava a destinar dinheiro recuperado para ditos “projetos sociais”, fazendo caridade com chapéu alheio, sem obedecer às obrigações de indenização dos danos causados às vítimas finais das fraudes e corrupção (art. 91 do Código Penal).

Urge expor por que os procuradores da Lava Jato, na cláusula 2.3.2 do acordo celebrado com a Petrobrás, estipularam prioridade e preferência indenizatórias a processos e arbitragens sigilosas impetrados somente até a data de 8/10/2017. Estariam assumindo prerrogativas de juiz e julgando o mérito de certas ações reparatórias? Ou agindo seletivamente de modo a privilegiar causas de certos patronos ingressadas até esta data? Seriam tais patronos os “amigos” a quem o “tudo” é assegurado? Aos demais prejudicados resta tão somente “a lei” 7.913, que se torna inócua sem a ação do próprio Ministério Público.

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* ÉRICA GORGA É DOUTORA EM DIREITO PELA USP, COM PÓS-DOUTORAMENTO NA UNIVERSIDADE DO TEXAS, FOI PROFESSORA NAS UNIVERSIDADES DO TEXAS, CORNELL E VANDERBILT, DIRETORA DO CENTRO DE DIREITO EMPRESARIAL DA YALE LAW SCHOOL E PESQUISADORA EM STANFORD E YALE

Quem sonhou que o combate à corrupção protagonizado pela Lava Jato no Brasil se equiparava ao empregado nos EUA, pode acordar: continuamos na terra de Macunaíma.

Na terra do Tio Sam foi erigido o mais sólido sistema de primazia do Direito (rule of law), que é o alicerce da maior democracia do mundo. Mas, em terra brasilis, a primazia do Direito nunca foi efetivamente construída. Aqui o sistema vigente é outro: aos amigos tudo, aos inimigos a lei.

A revelação das trocas de mensagens privadas entre o ex-juiz Sergio Moro e o procurador da República Deltan Dallagnol expõe ao público possíveis falhas nas suas condutas no que tange à imparcialidade potencialmente eivada por relações excessivamente “amistosas” que levariam à suspeição do juiz. Apontou-se o vazamento ilegal das mensagens, tal como Teori Zavascki indicou ilegalidades no vazamento da conversa entre Lula e Dilma realizado por Moro no caso da posse de Lula como ministro. O juiz, na época, justificou, em entrevista ao jornalista Pedro Bial na TV, que decidiu vazar o diálogo entre os petistas pelo conteúdo, desconsiderando a discussão sobre a legalidade da decisão.

Assim, Moro não pode ficar imune ao próprio argumento da importância do conteúdo vazado, como suscitou o editorial Muito a esclarecer (Estado, 11/6): “Não é possível ficar indiferente à suspeita, levantada pelas mensagens, de que o então juiz Sergio Moro pode ter dado orientações ao procurador Deltan Dallagnol, responsável pela Lava Jato, em casos relativos à operação”.

Aliás, Dallagnol precisa esclarecer não só a troca privilegiada de mensagens, mas outras falhas técnicas, notadamente em relação às decisões sobre os valores recuperados na Operação Lava Jato.

Em inúmeros vídeos e no recém-divulgado em sua defesa no Facebook, em 10/6, Dallagnol cita os “R$ 13 bilhões recuperados” apenas “para os cofres públicos”. Assim, os procuradores da força-tarefa persistem falando como se somente dinheiro público tivesse sido desviado nos esquemas de corrupção, desprezando completamente o desvio de bilhões de patrimônio privado nos crimes praticados contra a poupança popular investida na Petrobrás, que é sociedade de economia mista.

O patrimônio público da União federal abrange só cerca de 28,7% do capital acionário da petroleira, e a grande maioria do capital nela investido é privada, o que os procuradores se recusam a enxergar.

Como a maior parte do patrimônio dissipado no petrolão proveio de investimento privado, Dallagnol tem de aclarar por que decidiu não fazer nada para devolvê-lo a quem de direito, mesmo de posse de todas as informações e provas sobre os ilícitos financeiros perpetrados. A inação ocorre em franco descumprimento da Lei 7.913/1989, que expressamente determina que “o Ministério Público, de ofício ou por solicitação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), adotará as medidas judiciais necessárias para evitar prejuízos ou obter ressarcimento de danos causados aos titulares de valores mobiliários e aos investidores do mercado (...)”.

Existem milhares de aposentados, pensionistas e trabalhadores que perderam recursos financeiros necessários à sua sobrevivência, já que seus fundos de aposentadoria sofreram bilhões de prejuízo em negócios eivados por fraudes e corrupção na petroleira. Tais fundos, agora, descontam os pagamentos de aposentados e beneficiários em até 30%, demandando novos aportes para viabilizar o pagamento de aposentadorias e benefícios. Em suma, a omissão do Ministério Público Federal está gerando danos a aposentadorias e benefícios de milhares de pessoas, a quem o Ministério Público, por obrigação legal, deveria proteger.

Os procuradores da força-tarefa de Curitiba têm plena ciência sobre o processo da ação coletiva americana que recuperou US$ 2,95 bilhões para fundos de aposentadoria e investidores estrangeiros da Petrobrás nos EUA e de que no acordo da empresa com a Securities and Exchange Commission (SEC) americana, por eles mesmos divulgados, a SEC obriga destinar valores das multas aplicadas para a indenização dos investidores lá lesados pelas fraudes. Isso mostra que a primazia do Direito funciona não só para prender, mas sobretudo para devolver o dinheiro a quem sofreu perdas nos crimes financeiros.

Por que, então, se inspiram no Direito americano seletivamente, só nos aspectos penais do combate à corrupção, e optam por não aplicar as melhores técnicas usadas pelas autoridades americanas quanto à devolução do dinheiro recuperado? E pior: em vez de viabilizar a devolução da totalidade do dinheiro aos lesados, os procuradores tentaram criar fundação bilionária de direito privado para controlar o destino de metade do dinheiro recuperado graças à colaboração com autoridades americanas, violando normas do ordenamento jurídico pátrio. A fundação visava a destinar dinheiro recuperado para ditos “projetos sociais”, fazendo caridade com chapéu alheio, sem obedecer às obrigações de indenização dos danos causados às vítimas finais das fraudes e corrupção (art. 91 do Código Penal).

Urge expor por que os procuradores da Lava Jato, na cláusula 2.3.2 do acordo celebrado com a Petrobrás, estipularam prioridade e preferência indenizatórias a processos e arbitragens sigilosas impetrados somente até a data de 8/10/2017. Estariam assumindo prerrogativas de juiz e julgando o mérito de certas ações reparatórias? Ou agindo seletivamente de modo a privilegiar causas de certos patronos ingressadas até esta data? Seriam tais patronos os “amigos” a quem o “tudo” é assegurado? Aos demais prejudicados resta tão somente “a lei” 7.913, que se torna inócua sem a ação do próprio Ministério Público.

* ÉRICA GORGA É DOUTORA EM DIREITO PELA USP, COM PÓS-DOUTORAMENTO NA UNIVERSIDADE DO TEXAS, FOI PROFESSORA NAS UNIVERSIDADES DO TEXAS, CORNELL E VANDERBILT, DIRETORA DO CENTRO DE DIREITO EMPRESARIAL DA YALE LAW SCHOOL E PESQUISADORA EM STANFORD E YALE

Quem sonhou que o combate à corrupção protagonizado pela Lava Jato no Brasil se equiparava ao empregado nos EUA, pode acordar: continuamos na terra de Macunaíma.

Na terra do Tio Sam foi erigido o mais sólido sistema de primazia do Direito (rule of law), que é o alicerce da maior democracia do mundo. Mas, em terra brasilis, a primazia do Direito nunca foi efetivamente construída. Aqui o sistema vigente é outro: aos amigos tudo, aos inimigos a lei.

A revelação das trocas de mensagens privadas entre o ex-juiz Sergio Moro e o procurador da República Deltan Dallagnol expõe ao público possíveis falhas nas suas condutas no que tange à imparcialidade potencialmente eivada por relações excessivamente “amistosas” que levariam à suspeição do juiz. Apontou-se o vazamento ilegal das mensagens, tal como Teori Zavascki indicou ilegalidades no vazamento da conversa entre Lula e Dilma realizado por Moro no caso da posse de Lula como ministro. O juiz, na época, justificou, em entrevista ao jornalista Pedro Bial na TV, que decidiu vazar o diálogo entre os petistas pelo conteúdo, desconsiderando a discussão sobre a legalidade da decisão.

Assim, Moro não pode ficar imune ao próprio argumento da importância do conteúdo vazado, como suscitou o editorial Muito a esclarecer (Estado, 11/6): “Não é possível ficar indiferente à suspeita, levantada pelas mensagens, de que o então juiz Sergio Moro pode ter dado orientações ao procurador Deltan Dallagnol, responsável pela Lava Jato, em casos relativos à operação”.

Aliás, Dallagnol precisa esclarecer não só a troca privilegiada de mensagens, mas outras falhas técnicas, notadamente em relação às decisões sobre os valores recuperados na Operação Lava Jato.

Em inúmeros vídeos e no recém-divulgado em sua defesa no Facebook, em 10/6, Dallagnol cita os “R$ 13 bilhões recuperados” apenas “para os cofres públicos”. Assim, os procuradores da força-tarefa persistem falando como se somente dinheiro público tivesse sido desviado nos esquemas de corrupção, desprezando completamente o desvio de bilhões de patrimônio privado nos crimes praticados contra a poupança popular investida na Petrobrás, que é sociedade de economia mista.

O patrimônio público da União federal abrange só cerca de 28,7% do capital acionário da petroleira, e a grande maioria do capital nela investido é privada, o que os procuradores se recusam a enxergar.

Como a maior parte do patrimônio dissipado no petrolão proveio de investimento privado, Dallagnol tem de aclarar por que decidiu não fazer nada para devolvê-lo a quem de direito, mesmo de posse de todas as informações e provas sobre os ilícitos financeiros perpetrados. A inação ocorre em franco descumprimento da Lei 7.913/1989, que expressamente determina que “o Ministério Público, de ofício ou por solicitação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), adotará as medidas judiciais necessárias para evitar prejuízos ou obter ressarcimento de danos causados aos titulares de valores mobiliários e aos investidores do mercado (...)”.

Existem milhares de aposentados, pensionistas e trabalhadores que perderam recursos financeiros necessários à sua sobrevivência, já que seus fundos de aposentadoria sofreram bilhões de prejuízo em negócios eivados por fraudes e corrupção na petroleira. Tais fundos, agora, descontam os pagamentos de aposentados e beneficiários em até 30%, demandando novos aportes para viabilizar o pagamento de aposentadorias e benefícios. Em suma, a omissão do Ministério Público Federal está gerando danos a aposentadorias e benefícios de milhares de pessoas, a quem o Ministério Público, por obrigação legal, deveria proteger.

Os procuradores da força-tarefa de Curitiba têm plena ciência sobre o processo da ação coletiva americana que recuperou US$ 2,95 bilhões para fundos de aposentadoria e investidores estrangeiros da Petrobrás nos EUA e de que no acordo da empresa com a Securities and Exchange Commission (SEC) americana, por eles mesmos divulgados, a SEC obriga destinar valores das multas aplicadas para a indenização dos investidores lá lesados pelas fraudes. Isso mostra que a primazia do Direito funciona não só para prender, mas sobretudo para devolver o dinheiro a quem sofreu perdas nos crimes financeiros.

Por que, então, se inspiram no Direito americano seletivamente, só nos aspectos penais do combate à corrupção, e optam por não aplicar as melhores técnicas usadas pelas autoridades americanas quanto à devolução do dinheiro recuperado? E pior: em vez de viabilizar a devolução da totalidade do dinheiro aos lesados, os procuradores tentaram criar fundação bilionária de direito privado para controlar o destino de metade do dinheiro recuperado graças à colaboração com autoridades americanas, violando normas do ordenamento jurídico pátrio. A fundação visava a destinar dinheiro recuperado para ditos “projetos sociais”, fazendo caridade com chapéu alheio, sem obedecer às obrigações de indenização dos danos causados às vítimas finais das fraudes e corrupção (art. 91 do Código Penal).

Urge expor por que os procuradores da Lava Jato, na cláusula 2.3.2 do acordo celebrado com a Petrobrás, estipularam prioridade e preferência indenizatórias a processos e arbitragens sigilosas impetrados somente até a data de 8/10/2017. Estariam assumindo prerrogativas de juiz e julgando o mérito de certas ações reparatórias? Ou agindo seletivamente de modo a privilegiar causas de certos patronos ingressadas até esta data? Seriam tais patronos os “amigos” a quem o “tudo” é assegurado? Aos demais prejudicados resta tão somente “a lei” 7.913, que se torna inócua sem a ação do próprio Ministério Público.

* ÉRICA GORGA É DOUTORA EM DIREITO PELA USP, COM PÓS-DOUTORAMENTO NA UNIVERSIDADE DO TEXAS, FOI PROFESSORA NAS UNIVERSIDADES DO TEXAS, CORNELL E VANDERBILT, DIRETORA DO CENTRO DE DIREITO EMPRESARIAL DA YALE LAW SCHOOL E PESQUISADORA EM STANFORD E YALE

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