Opinião|As quatro linhas da Constituição


O desenho do que configuraria a razão de ser e a direção da Carta Magna é distinto do que Bolsonaro parece ter em mente quando a invoca.

Por Marcelo de Azevedo Granato

Metáforas esportivas são um recurso eficiente para a transmissão de mensagens à população. Lula usou e abusou delas. Dilma e Temer trilharam outros caminhos, mas Bolsonaro vem consagrando “as quatro linhas” da Constituição. Embora ele nunca tenha se estendido sobre o traçado ou significado dessas linhas, a impressão é de que, para o presidente, elas delimitam os campos de atuação dos Poderes da República.

Afinal, a maior parte de suas referências a essas linhas se deu em confrontos dele com membros do Supremo Tribunal Federal (STF). Por exemplo, em agosto do ano passado, ao comentar a decisão do ministro Alexandre de Moraes de incluí-lo no inquérito das fake news, Bolsonaro afirmou: “Está dentro das quatro linhas da Constituição? Não está. Então o antídoto para isso também não é dentro das quatro linhas”.

Em setembro do mesmo ano, ele voltou ao tema: “Vou continuar jogando dentro das quatro linhas, mas, a partir de agora, não admito que outras pessoas, uma ou duas, joguem fora das quatro linhas”. Muitos se lembram, ainda, do seu discurso na Avenida Paulista no dia 7 de setembro: “Este presidente que vos fala sempre esteve ao lado da nossa Constituição. Sempre esteve dentro das quatro linhas da mesma”.

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Mas no que consistem essas linhas? Aparentemente, para Bolsonaro, elas demarcam as possíveis ações do Poder Judiciário contra atos do Poder Executivo ou do próprio Bolsonaro, ou contra manifestações de apoiadores do presidente. Algumas dessas manifestações resultaram em (controversas) prisões, que para o presidente tiveram finalidade política, contrariando tanto a neutralidade exigida do Judiciário no campo da política quanto o direito fundamental à liberdade de expressão daqueles apoiadores.

Deixando de lado a (im)procedência dessa possível visão sobre “as quatro linhas” da Constituição, ou sua coerência, dado o comportamento de Bolsonaro diante de outros ditames constitucionais, fato é que essas “linhas” podem ter traços/conteúdos mais amplos.

O primeiro título da Constituição chama-se Dos Princípios Fundamentais. Esse título traz os quatro primeiros artigos do texto constitucional. No artigo 1.º, é dito que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos, entre outros, a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Esse artigo é complementado por um parágrafo, que se inicia afirmando que “todo o poder emana do povo”.

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Pode-se dizer que o artigo 1.º da Constituição nos indica a própria origem dela: ela nasce do poder outorgado aos constituintes originários pelo povo. Daí, coerentemente, os fundamentos do Estado Democrático de Direito constituído em 1988: a cidadania, a dignidade da pessoa humana, etc. Em outras palavras, a Constituição nasceu junto com os preceitos do seu artigo 1.º. Ela não os “instituiu”; ela os “reconheceu”.

Esses preceitos formariam uma das “linhas” da Constituição, da qual derivam outros princípios e direitos, inclusive a liberdade de expressão tão defendida por Bolsonaro (e exercida a seu modo no referido discurso de 7 de setembro, quando chamou o ministro Moraes de canalha e afirmou que não obedeceria às suas decisões).

Tal obediência remete ao artigo 2.º da Constituição, segundo o qual “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Esse artigo estabelece a chamada separação dos Poderes (a distribuição das funções estatais entre Poderes independentes que se podem controlar mutuamente). O constituinte de 1988 erigiu essa disposição em princípio fundamental do Estado nascente para impedir o despotismo e proteger a liberdade dos cidadãos. Ela seria outra “linha” da Constituição.

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O artigo 3.º traz os “objetivos fundamentais” da República, entre os quais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais. Tais objetivos constituem metas perenes da República, que devem orientar as ações de todos os governos que se sucedem no País. Essa “terceira linha” da Constituição passou despercebida no veto do presidente às metas para redução das taxas de pobreza, previstas na lei do Auxílio Brasil.

Enfim, o artigo 4.º da Constituição informa os princípios que regem o País em suas relações internacionais: prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, não intervenção, etc. Trata-se, nas palavras do professor Tercio Sampaio Ferraz Junior, de princípios de reconhecimento mútuo, que delineiam o poder constituinte nacional em face dos poderes constituintes nos demais países (Direito constitucional: liberdade de fumar, privacidade, Estado, direitos humanos e outros temas).

Eis um possível desenho das “quatro linhas” da Constituição, que configurariam sua razão de ser e sua direção. É um desenho distinto, porém, daquele que Bolsonaro parece ter em mente quando invoca as “quatro linhas” dela e quando age em seu nome.

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DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO, INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FACAMP E FADI

Metáforas esportivas são um recurso eficiente para a transmissão de mensagens à população. Lula usou e abusou delas. Dilma e Temer trilharam outros caminhos, mas Bolsonaro vem consagrando “as quatro linhas” da Constituição. Embora ele nunca tenha se estendido sobre o traçado ou significado dessas linhas, a impressão é de que, para o presidente, elas delimitam os campos de atuação dos Poderes da República.

Afinal, a maior parte de suas referências a essas linhas se deu em confrontos dele com membros do Supremo Tribunal Federal (STF). Por exemplo, em agosto do ano passado, ao comentar a decisão do ministro Alexandre de Moraes de incluí-lo no inquérito das fake news, Bolsonaro afirmou: “Está dentro das quatro linhas da Constituição? Não está. Então o antídoto para isso também não é dentro das quatro linhas”.

Em setembro do mesmo ano, ele voltou ao tema: “Vou continuar jogando dentro das quatro linhas, mas, a partir de agora, não admito que outras pessoas, uma ou duas, joguem fora das quatro linhas”. Muitos se lembram, ainda, do seu discurso na Avenida Paulista no dia 7 de setembro: “Este presidente que vos fala sempre esteve ao lado da nossa Constituição. Sempre esteve dentro das quatro linhas da mesma”.

Mas no que consistem essas linhas? Aparentemente, para Bolsonaro, elas demarcam as possíveis ações do Poder Judiciário contra atos do Poder Executivo ou do próprio Bolsonaro, ou contra manifestações de apoiadores do presidente. Algumas dessas manifestações resultaram em (controversas) prisões, que para o presidente tiveram finalidade política, contrariando tanto a neutralidade exigida do Judiciário no campo da política quanto o direito fundamental à liberdade de expressão daqueles apoiadores.

Deixando de lado a (im)procedência dessa possível visão sobre “as quatro linhas” da Constituição, ou sua coerência, dado o comportamento de Bolsonaro diante de outros ditames constitucionais, fato é que essas “linhas” podem ter traços/conteúdos mais amplos.

O primeiro título da Constituição chama-se Dos Princípios Fundamentais. Esse título traz os quatro primeiros artigos do texto constitucional. No artigo 1.º, é dito que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos, entre outros, a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Esse artigo é complementado por um parágrafo, que se inicia afirmando que “todo o poder emana do povo”.

Pode-se dizer que o artigo 1.º da Constituição nos indica a própria origem dela: ela nasce do poder outorgado aos constituintes originários pelo povo. Daí, coerentemente, os fundamentos do Estado Democrático de Direito constituído em 1988: a cidadania, a dignidade da pessoa humana, etc. Em outras palavras, a Constituição nasceu junto com os preceitos do seu artigo 1.º. Ela não os “instituiu”; ela os “reconheceu”.

Esses preceitos formariam uma das “linhas” da Constituição, da qual derivam outros princípios e direitos, inclusive a liberdade de expressão tão defendida por Bolsonaro (e exercida a seu modo no referido discurso de 7 de setembro, quando chamou o ministro Moraes de canalha e afirmou que não obedeceria às suas decisões).

Tal obediência remete ao artigo 2.º da Constituição, segundo o qual “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Esse artigo estabelece a chamada separação dos Poderes (a distribuição das funções estatais entre Poderes independentes que se podem controlar mutuamente). O constituinte de 1988 erigiu essa disposição em princípio fundamental do Estado nascente para impedir o despotismo e proteger a liberdade dos cidadãos. Ela seria outra “linha” da Constituição.

O artigo 3.º traz os “objetivos fundamentais” da República, entre os quais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais. Tais objetivos constituem metas perenes da República, que devem orientar as ações de todos os governos que se sucedem no País. Essa “terceira linha” da Constituição passou despercebida no veto do presidente às metas para redução das taxas de pobreza, previstas na lei do Auxílio Brasil.

Enfim, o artigo 4.º da Constituição informa os princípios que regem o País em suas relações internacionais: prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, não intervenção, etc. Trata-se, nas palavras do professor Tercio Sampaio Ferraz Junior, de princípios de reconhecimento mútuo, que delineiam o poder constituinte nacional em face dos poderes constituintes nos demais países (Direito constitucional: liberdade de fumar, privacidade, Estado, direitos humanos e outros temas).

Eis um possível desenho das “quatro linhas” da Constituição, que configurariam sua razão de ser e sua direção. É um desenho distinto, porém, daquele que Bolsonaro parece ter em mente quando invoca as “quatro linhas” dela e quando age em seu nome.

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DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO, INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FACAMP E FADI

Metáforas esportivas são um recurso eficiente para a transmissão de mensagens à população. Lula usou e abusou delas. Dilma e Temer trilharam outros caminhos, mas Bolsonaro vem consagrando “as quatro linhas” da Constituição. Embora ele nunca tenha se estendido sobre o traçado ou significado dessas linhas, a impressão é de que, para o presidente, elas delimitam os campos de atuação dos Poderes da República.

Afinal, a maior parte de suas referências a essas linhas se deu em confrontos dele com membros do Supremo Tribunal Federal (STF). Por exemplo, em agosto do ano passado, ao comentar a decisão do ministro Alexandre de Moraes de incluí-lo no inquérito das fake news, Bolsonaro afirmou: “Está dentro das quatro linhas da Constituição? Não está. Então o antídoto para isso também não é dentro das quatro linhas”.

Em setembro do mesmo ano, ele voltou ao tema: “Vou continuar jogando dentro das quatro linhas, mas, a partir de agora, não admito que outras pessoas, uma ou duas, joguem fora das quatro linhas”. Muitos se lembram, ainda, do seu discurso na Avenida Paulista no dia 7 de setembro: “Este presidente que vos fala sempre esteve ao lado da nossa Constituição. Sempre esteve dentro das quatro linhas da mesma”.

Mas no que consistem essas linhas? Aparentemente, para Bolsonaro, elas demarcam as possíveis ações do Poder Judiciário contra atos do Poder Executivo ou do próprio Bolsonaro, ou contra manifestações de apoiadores do presidente. Algumas dessas manifestações resultaram em (controversas) prisões, que para o presidente tiveram finalidade política, contrariando tanto a neutralidade exigida do Judiciário no campo da política quanto o direito fundamental à liberdade de expressão daqueles apoiadores.

Deixando de lado a (im)procedência dessa possível visão sobre “as quatro linhas” da Constituição, ou sua coerência, dado o comportamento de Bolsonaro diante de outros ditames constitucionais, fato é que essas “linhas” podem ter traços/conteúdos mais amplos.

O primeiro título da Constituição chama-se Dos Princípios Fundamentais. Esse título traz os quatro primeiros artigos do texto constitucional. No artigo 1.º, é dito que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos, entre outros, a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Esse artigo é complementado por um parágrafo, que se inicia afirmando que “todo o poder emana do povo”.

Pode-se dizer que o artigo 1.º da Constituição nos indica a própria origem dela: ela nasce do poder outorgado aos constituintes originários pelo povo. Daí, coerentemente, os fundamentos do Estado Democrático de Direito constituído em 1988: a cidadania, a dignidade da pessoa humana, etc. Em outras palavras, a Constituição nasceu junto com os preceitos do seu artigo 1.º. Ela não os “instituiu”; ela os “reconheceu”.

Esses preceitos formariam uma das “linhas” da Constituição, da qual derivam outros princípios e direitos, inclusive a liberdade de expressão tão defendida por Bolsonaro (e exercida a seu modo no referido discurso de 7 de setembro, quando chamou o ministro Moraes de canalha e afirmou que não obedeceria às suas decisões).

Tal obediência remete ao artigo 2.º da Constituição, segundo o qual “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Esse artigo estabelece a chamada separação dos Poderes (a distribuição das funções estatais entre Poderes independentes que se podem controlar mutuamente). O constituinte de 1988 erigiu essa disposição em princípio fundamental do Estado nascente para impedir o despotismo e proteger a liberdade dos cidadãos. Ela seria outra “linha” da Constituição.

O artigo 3.º traz os “objetivos fundamentais” da República, entre os quais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais. Tais objetivos constituem metas perenes da República, que devem orientar as ações de todos os governos que se sucedem no País. Essa “terceira linha” da Constituição passou despercebida no veto do presidente às metas para redução das taxas de pobreza, previstas na lei do Auxílio Brasil.

Enfim, o artigo 4.º da Constituição informa os princípios que regem o País em suas relações internacionais: prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, não intervenção, etc. Trata-se, nas palavras do professor Tercio Sampaio Ferraz Junior, de princípios de reconhecimento mútuo, que delineiam o poder constituinte nacional em face dos poderes constituintes nos demais países (Direito constitucional: liberdade de fumar, privacidade, Estado, direitos humanos e outros temas).

Eis um possível desenho das “quatro linhas” da Constituição, que configurariam sua razão de ser e sua direção. É um desenho distinto, porém, daquele que Bolsonaro parece ter em mente quando invoca as “quatro linhas” dela e quando age em seu nome.

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DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO, INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FACAMP E FADI

Metáforas esportivas são um recurso eficiente para a transmissão de mensagens à população. Lula usou e abusou delas. Dilma e Temer trilharam outros caminhos, mas Bolsonaro vem consagrando “as quatro linhas” da Constituição. Embora ele nunca tenha se estendido sobre o traçado ou significado dessas linhas, a impressão é de que, para o presidente, elas delimitam os campos de atuação dos Poderes da República.

Afinal, a maior parte de suas referências a essas linhas se deu em confrontos dele com membros do Supremo Tribunal Federal (STF). Por exemplo, em agosto do ano passado, ao comentar a decisão do ministro Alexandre de Moraes de incluí-lo no inquérito das fake news, Bolsonaro afirmou: “Está dentro das quatro linhas da Constituição? Não está. Então o antídoto para isso também não é dentro das quatro linhas”.

Em setembro do mesmo ano, ele voltou ao tema: “Vou continuar jogando dentro das quatro linhas, mas, a partir de agora, não admito que outras pessoas, uma ou duas, joguem fora das quatro linhas”. Muitos se lembram, ainda, do seu discurso na Avenida Paulista no dia 7 de setembro: “Este presidente que vos fala sempre esteve ao lado da nossa Constituição. Sempre esteve dentro das quatro linhas da mesma”.

Mas no que consistem essas linhas? Aparentemente, para Bolsonaro, elas demarcam as possíveis ações do Poder Judiciário contra atos do Poder Executivo ou do próprio Bolsonaro, ou contra manifestações de apoiadores do presidente. Algumas dessas manifestações resultaram em (controversas) prisões, que para o presidente tiveram finalidade política, contrariando tanto a neutralidade exigida do Judiciário no campo da política quanto o direito fundamental à liberdade de expressão daqueles apoiadores.

Deixando de lado a (im)procedência dessa possível visão sobre “as quatro linhas” da Constituição, ou sua coerência, dado o comportamento de Bolsonaro diante de outros ditames constitucionais, fato é que essas “linhas” podem ter traços/conteúdos mais amplos.

O primeiro título da Constituição chama-se Dos Princípios Fundamentais. Esse título traz os quatro primeiros artigos do texto constitucional. No artigo 1.º, é dito que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos, entre outros, a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Esse artigo é complementado por um parágrafo, que se inicia afirmando que “todo o poder emana do povo”.

Pode-se dizer que o artigo 1.º da Constituição nos indica a própria origem dela: ela nasce do poder outorgado aos constituintes originários pelo povo. Daí, coerentemente, os fundamentos do Estado Democrático de Direito constituído em 1988: a cidadania, a dignidade da pessoa humana, etc. Em outras palavras, a Constituição nasceu junto com os preceitos do seu artigo 1.º. Ela não os “instituiu”; ela os “reconheceu”.

Esses preceitos formariam uma das “linhas” da Constituição, da qual derivam outros princípios e direitos, inclusive a liberdade de expressão tão defendida por Bolsonaro (e exercida a seu modo no referido discurso de 7 de setembro, quando chamou o ministro Moraes de canalha e afirmou que não obedeceria às suas decisões).

Tal obediência remete ao artigo 2.º da Constituição, segundo o qual “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Esse artigo estabelece a chamada separação dos Poderes (a distribuição das funções estatais entre Poderes independentes que se podem controlar mutuamente). O constituinte de 1988 erigiu essa disposição em princípio fundamental do Estado nascente para impedir o despotismo e proteger a liberdade dos cidadãos. Ela seria outra “linha” da Constituição.

O artigo 3.º traz os “objetivos fundamentais” da República, entre os quais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais. Tais objetivos constituem metas perenes da República, que devem orientar as ações de todos os governos que se sucedem no País. Essa “terceira linha” da Constituição passou despercebida no veto do presidente às metas para redução das taxas de pobreza, previstas na lei do Auxílio Brasil.

Enfim, o artigo 4.º da Constituição informa os princípios que regem o País em suas relações internacionais: prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, não intervenção, etc. Trata-se, nas palavras do professor Tercio Sampaio Ferraz Junior, de princípios de reconhecimento mútuo, que delineiam o poder constituinte nacional em face dos poderes constituintes nos demais países (Direito constitucional: liberdade de fumar, privacidade, Estado, direitos humanos e outros temas).

Eis um possível desenho das “quatro linhas” da Constituição, que configurariam sua razão de ser e sua direção. É um desenho distinto, porém, daquele que Bolsonaro parece ter em mente quando invoca as “quatro linhas” dela e quando age em seu nome.

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DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO, INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FACAMP E FADI

Metáforas esportivas são um recurso eficiente para a transmissão de mensagens à população. Lula usou e abusou delas. Dilma e Temer trilharam outros caminhos, mas Bolsonaro vem consagrando “as quatro linhas” da Constituição. Embora ele nunca tenha se estendido sobre o traçado ou significado dessas linhas, a impressão é de que, para o presidente, elas delimitam os campos de atuação dos Poderes da República.

Afinal, a maior parte de suas referências a essas linhas se deu em confrontos dele com membros do Supremo Tribunal Federal (STF). Por exemplo, em agosto do ano passado, ao comentar a decisão do ministro Alexandre de Moraes de incluí-lo no inquérito das fake news, Bolsonaro afirmou: “Está dentro das quatro linhas da Constituição? Não está. Então o antídoto para isso também não é dentro das quatro linhas”.

Em setembro do mesmo ano, ele voltou ao tema: “Vou continuar jogando dentro das quatro linhas, mas, a partir de agora, não admito que outras pessoas, uma ou duas, joguem fora das quatro linhas”. Muitos se lembram, ainda, do seu discurso na Avenida Paulista no dia 7 de setembro: “Este presidente que vos fala sempre esteve ao lado da nossa Constituição. Sempre esteve dentro das quatro linhas da mesma”.

Mas no que consistem essas linhas? Aparentemente, para Bolsonaro, elas demarcam as possíveis ações do Poder Judiciário contra atos do Poder Executivo ou do próprio Bolsonaro, ou contra manifestações de apoiadores do presidente. Algumas dessas manifestações resultaram em (controversas) prisões, que para o presidente tiveram finalidade política, contrariando tanto a neutralidade exigida do Judiciário no campo da política quanto o direito fundamental à liberdade de expressão daqueles apoiadores.

Deixando de lado a (im)procedência dessa possível visão sobre “as quatro linhas” da Constituição, ou sua coerência, dado o comportamento de Bolsonaro diante de outros ditames constitucionais, fato é que essas “linhas” podem ter traços/conteúdos mais amplos.

O primeiro título da Constituição chama-se Dos Princípios Fundamentais. Esse título traz os quatro primeiros artigos do texto constitucional. No artigo 1.º, é dito que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos, entre outros, a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Esse artigo é complementado por um parágrafo, que se inicia afirmando que “todo o poder emana do povo”.

Pode-se dizer que o artigo 1.º da Constituição nos indica a própria origem dela: ela nasce do poder outorgado aos constituintes originários pelo povo. Daí, coerentemente, os fundamentos do Estado Democrático de Direito constituído em 1988: a cidadania, a dignidade da pessoa humana, etc. Em outras palavras, a Constituição nasceu junto com os preceitos do seu artigo 1.º. Ela não os “instituiu”; ela os “reconheceu”.

Esses preceitos formariam uma das “linhas” da Constituição, da qual derivam outros princípios e direitos, inclusive a liberdade de expressão tão defendida por Bolsonaro (e exercida a seu modo no referido discurso de 7 de setembro, quando chamou o ministro Moraes de canalha e afirmou que não obedeceria às suas decisões).

Tal obediência remete ao artigo 2.º da Constituição, segundo o qual “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Esse artigo estabelece a chamada separação dos Poderes (a distribuição das funções estatais entre Poderes independentes que se podem controlar mutuamente). O constituinte de 1988 erigiu essa disposição em princípio fundamental do Estado nascente para impedir o despotismo e proteger a liberdade dos cidadãos. Ela seria outra “linha” da Constituição.

O artigo 3.º traz os “objetivos fundamentais” da República, entre os quais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais. Tais objetivos constituem metas perenes da República, que devem orientar as ações de todos os governos que se sucedem no País. Essa “terceira linha” da Constituição passou despercebida no veto do presidente às metas para redução das taxas de pobreza, previstas na lei do Auxílio Brasil.

Enfim, o artigo 4.º da Constituição informa os princípios que regem o País em suas relações internacionais: prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, não intervenção, etc. Trata-se, nas palavras do professor Tercio Sampaio Ferraz Junior, de princípios de reconhecimento mútuo, que delineiam o poder constituinte nacional em face dos poderes constituintes nos demais países (Direito constitucional: liberdade de fumar, privacidade, Estado, direitos humanos e outros temas).

Eis um possível desenho das “quatro linhas” da Constituição, que configurariam sua razão de ser e sua direção. É um desenho distinto, porém, daquele que Bolsonaro parece ter em mente quando invoca as “quatro linhas” dela e quando age em seu nome.

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