Apesar de ser aclamado patrono cívico da nação brasileira, o personagem Tiradentes sempre esteve sujeito a polêmicas. Avaliações contraditórias sobre o seu significado histórico não são incomuns. Uma busca na internet vai evidenciar as disparidades.
A Conjuração Mineira foi o primeiro movimento claramente separatista no Brasil. Na época, a ideia de Brasil era inexistente ou muito frágil. Por isso, o foco regional se impôs: Minas Gerais, talvez com apoio do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Um grupo de conspiradores passou a se reunir a partir do segundo semestre de 1788 e, no final de dezembro, o planejamento do que deveria ser feito estava concluído. As distâncias não eram pequenas e o grupo reunia indivíduos muito heterogêneos. Eram intelectuais, ricos proprietários de terra e de escravos, profissionais liberais, padres e pessoas desprovidas de cultura letrada e recursos econômicos, espalhados por três grandes núcleos: Vila Rica (atual Ouro Preto), Rio das Mortes (com São João del Rei ao centro) e região do Tejuco e Vila do Príncipe (atuais Diamantina e Serro).
O movimento foi delatado por três integrantes ao governador das Minas Gerais, o Visconde de Barbacena, que ordenou a repressão e a prisão dos envolvidos. Duas devassas foram abertas para apuração das responsabilidades: em Minas e no Rio de Janeiro, posteriormente unificadas. Os réus foram sentenciados a penas diversas e Joaquim José da Silva Xavier foi condenado à morte em 21 de abril de 1792.
Num primeiro momento, prevaleceu uma imagem negativa de Tiradentes: louco, imprudente, inimigo da monarquia portuguesa e merecedor do castigo. Diogo de Vasconcelos, vereador à época na Câmara de Vila Rica, publicou uma aclamação que o achincalhava. Ele foi o pai do deputado Bernardo Pereira de Vasconcelos, um dos mais destacados políticos da história do Brasil independente e um grande adversário de Dom Pedro I, neto da rainha Dona Maria, que condenou Tiradentes à forca.
Essa imagem negativa de Tiradentes perdurou por muito tempo. Afinal, a Conjuração Mineira era republicana e separatista. Ser favorável a Tiradentes tinha contra si o espectro da monarquia portuguesa e do seu rebento, o Império brasileiro. Mas, aos poucos, teve início uma representação que via sentido positivo no martírio de Tiradentes. Por exemplo, os delatores da Conjuração nunca viveram em paz após a delação. Em vários documentos, eles se queixavam da aversão com que eram tratados e do perigo de serem assassinados. Silvério dos Reis, por várias vezes, implorou para deixar o Brasil. Temia pela vida.
Em setembro de 1821, em meio à agitação política que precedeu o processo de independência do Brasil, e diante das desconfianças em relação à fidelidade do governo mineiro ao príncipe-regente no Rio de Janeiro, o tenente-coronel Pinto Peixoto avançou sobre Vila Rica e organizou a eleição de uma Junta Provisória de governo. Imediatamente, a junta ordenou a destruição do padrão de infâmia na antiga casa em que Tiradentes vivera. O episódio é rico de significado.
Em vários lugares, ao longo do século 19, a figura de Tiradentes foi utilizada como símbolo de crítica e militância contra a monarquia brasileira. Havia jornais que se intitulavam com a sua alcunha. Clubes denominados “Tiradentes” se espalharam pelo Brasil. Não é correta a versão muito difundida de que foi a República quem inventou Tiradentes. Ela de fato consagrou a sua imagem icônica, mas não a tirou do nada, pois ela estava bem estabelecida social e culturalmente antes da proclamação da República.
Começa com a República a fase do Tiradentes triunfal, símbolo da Nação e mártir da independência do Brasil. As escolas reproduziram por longo tempo essa versão, que chegou ao cume com o movimento militar de 1964, em que Tiradentes foi elevado à categoria de patrono cívico na nação brasileira.
Essa versão oficial e triunfalista de Tiradentes passou a ser questionada nos anos 80 e se difundiu pelas escolas brasileiras. Expressões muito utilizadas para se referir a ele a partir de então: bode expiatório, motivado por frustração pessoal com a carreira militar e inocente útil numa conjuração de elites escravocratas que o desprezavam. Simultaneamente, uma operação didática foi posta em ação: a Conjuração Mineira passou a ser tratada em comparação com a Conjuração Baiana, ocorrida em 1798, nove anos depois, em que se opunham as características elitistas da primeira à social da segunda, sem a devida consideração de contextos e tempo histórico. Quando eclodiu a Conjuração Mineira, a Revolução Francesa ainda não havia iniciado.
Hoje, a imagem de Tiradentes está bem reconstituída e a interpretação do seu significado histórico é feita com mais cuidado e apreço pelas evidências. Era um homem sem cultura superior e sem poder econômico, mas inteligente, ousado, com interesses múltiplos (curador de dentes, tropeiro, minerador, militar disciplinado e confiável, conhecedor dos caminhos de Minas e do Rio de Janeiro), corajoso à beira da imprudência, inspirado pela Declaração de Independência das 13 colônias, convicto da necessidade de romper com Portugal e crente na viabilidade econômica da República das Minas Gerais.
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DOUTOR EM CIÊNCIAS SOCIAIS