Opinião|Assédio ao idioma (ou ‘bullying’ ortográfico?)


Nossos legisladores parecem olvidar o artigo 13 da Constituição: ‘A Língua Portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil’

Por José Roberto Batochio

Que tal escrever ou pronunciar uma palavra ou expressão em português e, a seguir, grafá-la ou dizê-la em inglês? O fiscal do Ibama fala na TV da falsificação de guias para extração de madeira, faz uma pausa, e traduz aos nativos: “Fake!”. A prática tem se disseminado no Brasil como vírus de valor linguístico-imperial, a ponto de transbordar-se do linguajar coloquial do dia a dia para a formalidade da norma culta que tem sido o apanágio das leis. Se já era chocante ler ou ouvir tais patacoadas a torto e a direito, estamos a assistir a marcha deste fenômeno rumo a um nicho da língua que o processo legislativo sempre resguardou, avesso aos modismos e, em alguns casos, contrário à recepção de estrangeirismos que nada inovavam, mas somente usurpavam o lugar de termos clássicos no idioma de Rui Barbosa – legislador que cultuava o idioma e o Direito.

O Código Penal de 1940, elaborado sob a inspiração do conhecimento jurídico e lexical de Francisco Campos, evitou assassinato, do francês assassinat (italiano assassinato), no artigo 121, e adotou homicídio. Também não recepcionou chantagem, do francês chantage, e, no artigo 158, usou extorsão. Assim como grafou parede, no artigo 197, em vez da já usual greve que os anarquistas popularizaram na grande paralisação do trabalho de 1917. Mas uma inovação penal de 2021, ao criar o artigo 359-T do Código Penal, deu passagem à palavrinha francesa. Já a Lei das Contravenções Penais, de 1941, refugou o francesismo délit de vagabondage e manteve a portuguesa da gema vadiagem.

Se muito se baseou no romano e no germânico, o Direito luso-brasileiro também foi decalcado no francês (álibi - alibi; contravenção - contravention; contumácia - contumace; jurista - juriste; magistratura - magistrature; ministério público - ministère public e seu indisfarçado parquet; e tantos outros). Muitos dos nossos juristas (de juristes) beberam nas águas revolucionárias do Código Civil de Napoleão, tão bem escrito – por advogados – quanto um romance de Balzac. Esmeraram-se ao alinhavar no idioma pátrio conceitos básicos de contratos, propriedade, responsabilidade civil, Direito de Família e das sucessões.

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A regra sempre foi aportuguesar as palavras estrangeiras, passá-las pela lusa alfândega léxica, adaptá-las ao gênio do nosso idioma. Se sofremos a avalancha (inclusive esta...) de termos e expressões do francês desde os primórdios do português, que o filólogo Cândido de Figueiredo chamou de “galicismos de cabelos brancos”, agora inflacionamos anglicismos. Onipresentes em todas as áreas, penetram no glossário jurídico, a exemplo de feminicide, hate crime e protective measure. Ao menos ganharam feição nacional (feminicídio, crime de ódio, medida protetiva).

Eis que, agora, a Lei n.º 14.811/2024 rompe tão boa tradição e, ao tipificar delitos, adota o retrocesso do bilinguismo. É o que faz no artigo 6.º: “O Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar acrescido do seguinte artigo 146-A:

“Intimidação sistemática (bullying).

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Artigo 146-A. Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais:

Pena – multa, se a conduta não constituir crime mais grave.

Intimidação sistemática virtual (cyberbullying)” (...).

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Exemplo eloquente de insensato apego a neologismos inadaptados, com letras e fonemas desautorizados pelos acordos ortográficos desde a década de 1940, estende abusivamente a já clara definição do crime, que dispensa qualificação exótica para sua perfeita compreensão. Todos entendem que aquele tipo de assédio prescinde a explicação de “bullying” ou “cyberbullying”. Ademais, a má técnica legislativa agride a lógica semântica do idioma, na medida em que dispõe constituir dito crime o “intimidar” “por meio de atos de intimidação” e, não menos sofrível, “sem motivação evidente”, como se agressões sistemáticas que contempla admitissem justificativa factual. Não bastasse tal algaravia, ainda usa “on-line”, que o vocabulário ortográfico da Língua Portuguesa, preparado com força de lei pela Academia Brasileira de Letras, ultimamente um permissivo léxico portuinglês, nacionalizou na forma “online”.

Nossos legisladores parecem olvidar o artigo 13 da Constituição: “A Língua Portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil”. E que seus ilustrados ancestrais cultuavam a juricidade literária – tanto que, como diz o gramático José Augusto Carvalho, em Problemas e Curiosidades da Língua Portuguesa (Thesaurus, 2014), “foi a linguagem jurídica que sedimentou a norma culta, e não a linguagem dos escritores, já que as primeiras cartilhas, no século 16, eram textos de leis, versados em linguagem supradialetal, ao alcance de todos”. Viva, sempre, a Última flor do Lácio!

*

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ADVOGADO CRIMINALISTA, FOI PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DA OAB E DEPUTADO PELO PDT-SP

Que tal escrever ou pronunciar uma palavra ou expressão em português e, a seguir, grafá-la ou dizê-la em inglês? O fiscal do Ibama fala na TV da falsificação de guias para extração de madeira, faz uma pausa, e traduz aos nativos: “Fake!”. A prática tem se disseminado no Brasil como vírus de valor linguístico-imperial, a ponto de transbordar-se do linguajar coloquial do dia a dia para a formalidade da norma culta que tem sido o apanágio das leis. Se já era chocante ler ou ouvir tais patacoadas a torto e a direito, estamos a assistir a marcha deste fenômeno rumo a um nicho da língua que o processo legislativo sempre resguardou, avesso aos modismos e, em alguns casos, contrário à recepção de estrangeirismos que nada inovavam, mas somente usurpavam o lugar de termos clássicos no idioma de Rui Barbosa – legislador que cultuava o idioma e o Direito.

O Código Penal de 1940, elaborado sob a inspiração do conhecimento jurídico e lexical de Francisco Campos, evitou assassinato, do francês assassinat (italiano assassinato), no artigo 121, e adotou homicídio. Também não recepcionou chantagem, do francês chantage, e, no artigo 158, usou extorsão. Assim como grafou parede, no artigo 197, em vez da já usual greve que os anarquistas popularizaram na grande paralisação do trabalho de 1917. Mas uma inovação penal de 2021, ao criar o artigo 359-T do Código Penal, deu passagem à palavrinha francesa. Já a Lei das Contravenções Penais, de 1941, refugou o francesismo délit de vagabondage e manteve a portuguesa da gema vadiagem.

Se muito se baseou no romano e no germânico, o Direito luso-brasileiro também foi decalcado no francês (álibi - alibi; contravenção - contravention; contumácia - contumace; jurista - juriste; magistratura - magistrature; ministério público - ministère public e seu indisfarçado parquet; e tantos outros). Muitos dos nossos juristas (de juristes) beberam nas águas revolucionárias do Código Civil de Napoleão, tão bem escrito – por advogados – quanto um romance de Balzac. Esmeraram-se ao alinhavar no idioma pátrio conceitos básicos de contratos, propriedade, responsabilidade civil, Direito de Família e das sucessões.

A regra sempre foi aportuguesar as palavras estrangeiras, passá-las pela lusa alfândega léxica, adaptá-las ao gênio do nosso idioma. Se sofremos a avalancha (inclusive esta...) de termos e expressões do francês desde os primórdios do português, que o filólogo Cândido de Figueiredo chamou de “galicismos de cabelos brancos”, agora inflacionamos anglicismos. Onipresentes em todas as áreas, penetram no glossário jurídico, a exemplo de feminicide, hate crime e protective measure. Ao menos ganharam feição nacional (feminicídio, crime de ódio, medida protetiva).

Eis que, agora, a Lei n.º 14.811/2024 rompe tão boa tradição e, ao tipificar delitos, adota o retrocesso do bilinguismo. É o que faz no artigo 6.º: “O Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar acrescido do seguinte artigo 146-A:

“Intimidação sistemática (bullying).

Artigo 146-A. Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais:

Pena – multa, se a conduta não constituir crime mais grave.

Intimidação sistemática virtual (cyberbullying)” (...).

Exemplo eloquente de insensato apego a neologismos inadaptados, com letras e fonemas desautorizados pelos acordos ortográficos desde a década de 1940, estende abusivamente a já clara definição do crime, que dispensa qualificação exótica para sua perfeita compreensão. Todos entendem que aquele tipo de assédio prescinde a explicação de “bullying” ou “cyberbullying”. Ademais, a má técnica legislativa agride a lógica semântica do idioma, na medida em que dispõe constituir dito crime o “intimidar” “por meio de atos de intimidação” e, não menos sofrível, “sem motivação evidente”, como se agressões sistemáticas que contempla admitissem justificativa factual. Não bastasse tal algaravia, ainda usa “on-line”, que o vocabulário ortográfico da Língua Portuguesa, preparado com força de lei pela Academia Brasileira de Letras, ultimamente um permissivo léxico portuinglês, nacionalizou na forma “online”.

Nossos legisladores parecem olvidar o artigo 13 da Constituição: “A Língua Portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil”. E que seus ilustrados ancestrais cultuavam a juricidade literária – tanto que, como diz o gramático José Augusto Carvalho, em Problemas e Curiosidades da Língua Portuguesa (Thesaurus, 2014), “foi a linguagem jurídica que sedimentou a norma culta, e não a linguagem dos escritores, já que as primeiras cartilhas, no século 16, eram textos de leis, versados em linguagem supradialetal, ao alcance de todos”. Viva, sempre, a Última flor do Lácio!

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ADVOGADO CRIMINALISTA, FOI PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DA OAB E DEPUTADO PELO PDT-SP

Que tal escrever ou pronunciar uma palavra ou expressão em português e, a seguir, grafá-la ou dizê-la em inglês? O fiscal do Ibama fala na TV da falsificação de guias para extração de madeira, faz uma pausa, e traduz aos nativos: “Fake!”. A prática tem se disseminado no Brasil como vírus de valor linguístico-imperial, a ponto de transbordar-se do linguajar coloquial do dia a dia para a formalidade da norma culta que tem sido o apanágio das leis. Se já era chocante ler ou ouvir tais patacoadas a torto e a direito, estamos a assistir a marcha deste fenômeno rumo a um nicho da língua que o processo legislativo sempre resguardou, avesso aos modismos e, em alguns casos, contrário à recepção de estrangeirismos que nada inovavam, mas somente usurpavam o lugar de termos clássicos no idioma de Rui Barbosa – legislador que cultuava o idioma e o Direito.

O Código Penal de 1940, elaborado sob a inspiração do conhecimento jurídico e lexical de Francisco Campos, evitou assassinato, do francês assassinat (italiano assassinato), no artigo 121, e adotou homicídio. Também não recepcionou chantagem, do francês chantage, e, no artigo 158, usou extorsão. Assim como grafou parede, no artigo 197, em vez da já usual greve que os anarquistas popularizaram na grande paralisação do trabalho de 1917. Mas uma inovação penal de 2021, ao criar o artigo 359-T do Código Penal, deu passagem à palavrinha francesa. Já a Lei das Contravenções Penais, de 1941, refugou o francesismo délit de vagabondage e manteve a portuguesa da gema vadiagem.

Se muito se baseou no romano e no germânico, o Direito luso-brasileiro também foi decalcado no francês (álibi - alibi; contravenção - contravention; contumácia - contumace; jurista - juriste; magistratura - magistrature; ministério público - ministère public e seu indisfarçado parquet; e tantos outros). Muitos dos nossos juristas (de juristes) beberam nas águas revolucionárias do Código Civil de Napoleão, tão bem escrito – por advogados – quanto um romance de Balzac. Esmeraram-se ao alinhavar no idioma pátrio conceitos básicos de contratos, propriedade, responsabilidade civil, Direito de Família e das sucessões.

A regra sempre foi aportuguesar as palavras estrangeiras, passá-las pela lusa alfândega léxica, adaptá-las ao gênio do nosso idioma. Se sofremos a avalancha (inclusive esta...) de termos e expressões do francês desde os primórdios do português, que o filólogo Cândido de Figueiredo chamou de “galicismos de cabelos brancos”, agora inflacionamos anglicismos. Onipresentes em todas as áreas, penetram no glossário jurídico, a exemplo de feminicide, hate crime e protective measure. Ao menos ganharam feição nacional (feminicídio, crime de ódio, medida protetiva).

Eis que, agora, a Lei n.º 14.811/2024 rompe tão boa tradição e, ao tipificar delitos, adota o retrocesso do bilinguismo. É o que faz no artigo 6.º: “O Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar acrescido do seguinte artigo 146-A:

“Intimidação sistemática (bullying).

Artigo 146-A. Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais:

Pena – multa, se a conduta não constituir crime mais grave.

Intimidação sistemática virtual (cyberbullying)” (...).

Exemplo eloquente de insensato apego a neologismos inadaptados, com letras e fonemas desautorizados pelos acordos ortográficos desde a década de 1940, estende abusivamente a já clara definição do crime, que dispensa qualificação exótica para sua perfeita compreensão. Todos entendem que aquele tipo de assédio prescinde a explicação de “bullying” ou “cyberbullying”. Ademais, a má técnica legislativa agride a lógica semântica do idioma, na medida em que dispõe constituir dito crime o “intimidar” “por meio de atos de intimidação” e, não menos sofrível, “sem motivação evidente”, como se agressões sistemáticas que contempla admitissem justificativa factual. Não bastasse tal algaravia, ainda usa “on-line”, que o vocabulário ortográfico da Língua Portuguesa, preparado com força de lei pela Academia Brasileira de Letras, ultimamente um permissivo léxico portuinglês, nacionalizou na forma “online”.

Nossos legisladores parecem olvidar o artigo 13 da Constituição: “A Língua Portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil”. E que seus ilustrados ancestrais cultuavam a juricidade literária – tanto que, como diz o gramático José Augusto Carvalho, em Problemas e Curiosidades da Língua Portuguesa (Thesaurus, 2014), “foi a linguagem jurídica que sedimentou a norma culta, e não a linguagem dos escritores, já que as primeiras cartilhas, no século 16, eram textos de leis, versados em linguagem supradialetal, ao alcance de todos”. Viva, sempre, a Última flor do Lácio!

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ADVOGADO CRIMINALISTA, FOI PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DA OAB E DEPUTADO PELO PDT-SP

Que tal escrever ou pronunciar uma palavra ou expressão em português e, a seguir, grafá-la ou dizê-la em inglês? O fiscal do Ibama fala na TV da falsificação de guias para extração de madeira, faz uma pausa, e traduz aos nativos: “Fake!”. A prática tem se disseminado no Brasil como vírus de valor linguístico-imperial, a ponto de transbordar-se do linguajar coloquial do dia a dia para a formalidade da norma culta que tem sido o apanágio das leis. Se já era chocante ler ou ouvir tais patacoadas a torto e a direito, estamos a assistir a marcha deste fenômeno rumo a um nicho da língua que o processo legislativo sempre resguardou, avesso aos modismos e, em alguns casos, contrário à recepção de estrangeirismos que nada inovavam, mas somente usurpavam o lugar de termos clássicos no idioma de Rui Barbosa – legislador que cultuava o idioma e o Direito.

O Código Penal de 1940, elaborado sob a inspiração do conhecimento jurídico e lexical de Francisco Campos, evitou assassinato, do francês assassinat (italiano assassinato), no artigo 121, e adotou homicídio. Também não recepcionou chantagem, do francês chantage, e, no artigo 158, usou extorsão. Assim como grafou parede, no artigo 197, em vez da já usual greve que os anarquistas popularizaram na grande paralisação do trabalho de 1917. Mas uma inovação penal de 2021, ao criar o artigo 359-T do Código Penal, deu passagem à palavrinha francesa. Já a Lei das Contravenções Penais, de 1941, refugou o francesismo délit de vagabondage e manteve a portuguesa da gema vadiagem.

Se muito se baseou no romano e no germânico, o Direito luso-brasileiro também foi decalcado no francês (álibi - alibi; contravenção - contravention; contumácia - contumace; jurista - juriste; magistratura - magistrature; ministério público - ministère public e seu indisfarçado parquet; e tantos outros). Muitos dos nossos juristas (de juristes) beberam nas águas revolucionárias do Código Civil de Napoleão, tão bem escrito – por advogados – quanto um romance de Balzac. Esmeraram-se ao alinhavar no idioma pátrio conceitos básicos de contratos, propriedade, responsabilidade civil, Direito de Família e das sucessões.

A regra sempre foi aportuguesar as palavras estrangeiras, passá-las pela lusa alfândega léxica, adaptá-las ao gênio do nosso idioma. Se sofremos a avalancha (inclusive esta...) de termos e expressões do francês desde os primórdios do português, que o filólogo Cândido de Figueiredo chamou de “galicismos de cabelos brancos”, agora inflacionamos anglicismos. Onipresentes em todas as áreas, penetram no glossário jurídico, a exemplo de feminicide, hate crime e protective measure. Ao menos ganharam feição nacional (feminicídio, crime de ódio, medida protetiva).

Eis que, agora, a Lei n.º 14.811/2024 rompe tão boa tradição e, ao tipificar delitos, adota o retrocesso do bilinguismo. É o que faz no artigo 6.º: “O Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar acrescido do seguinte artigo 146-A:

“Intimidação sistemática (bullying).

Artigo 146-A. Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais:

Pena – multa, se a conduta não constituir crime mais grave.

Intimidação sistemática virtual (cyberbullying)” (...).

Exemplo eloquente de insensato apego a neologismos inadaptados, com letras e fonemas desautorizados pelos acordos ortográficos desde a década de 1940, estende abusivamente a já clara definição do crime, que dispensa qualificação exótica para sua perfeita compreensão. Todos entendem que aquele tipo de assédio prescinde a explicação de “bullying” ou “cyberbullying”. Ademais, a má técnica legislativa agride a lógica semântica do idioma, na medida em que dispõe constituir dito crime o “intimidar” “por meio de atos de intimidação” e, não menos sofrível, “sem motivação evidente”, como se agressões sistemáticas que contempla admitissem justificativa factual. Não bastasse tal algaravia, ainda usa “on-line”, que o vocabulário ortográfico da Língua Portuguesa, preparado com força de lei pela Academia Brasileira de Letras, ultimamente um permissivo léxico portuinglês, nacionalizou na forma “online”.

Nossos legisladores parecem olvidar o artigo 13 da Constituição: “A Língua Portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil”. E que seus ilustrados ancestrais cultuavam a juricidade literária – tanto que, como diz o gramático José Augusto Carvalho, em Problemas e Curiosidades da Língua Portuguesa (Thesaurus, 2014), “foi a linguagem jurídica que sedimentou a norma culta, e não a linguagem dos escritores, já que as primeiras cartilhas, no século 16, eram textos de leis, versados em linguagem supradialetal, ao alcance de todos”. Viva, sempre, a Última flor do Lácio!

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ADVOGADO CRIMINALISTA, FOI PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DA OAB E DEPUTADO PELO PDT-SP

Que tal escrever ou pronunciar uma palavra ou expressão em português e, a seguir, grafá-la ou dizê-la em inglês? O fiscal do Ibama fala na TV da falsificação de guias para extração de madeira, faz uma pausa, e traduz aos nativos: “Fake!”. A prática tem se disseminado no Brasil como vírus de valor linguístico-imperial, a ponto de transbordar-se do linguajar coloquial do dia a dia para a formalidade da norma culta que tem sido o apanágio das leis. Se já era chocante ler ou ouvir tais patacoadas a torto e a direito, estamos a assistir a marcha deste fenômeno rumo a um nicho da língua que o processo legislativo sempre resguardou, avesso aos modismos e, em alguns casos, contrário à recepção de estrangeirismos que nada inovavam, mas somente usurpavam o lugar de termos clássicos no idioma de Rui Barbosa – legislador que cultuava o idioma e o Direito.

O Código Penal de 1940, elaborado sob a inspiração do conhecimento jurídico e lexical de Francisco Campos, evitou assassinato, do francês assassinat (italiano assassinato), no artigo 121, e adotou homicídio. Também não recepcionou chantagem, do francês chantage, e, no artigo 158, usou extorsão. Assim como grafou parede, no artigo 197, em vez da já usual greve que os anarquistas popularizaram na grande paralisação do trabalho de 1917. Mas uma inovação penal de 2021, ao criar o artigo 359-T do Código Penal, deu passagem à palavrinha francesa. Já a Lei das Contravenções Penais, de 1941, refugou o francesismo délit de vagabondage e manteve a portuguesa da gema vadiagem.

Se muito se baseou no romano e no germânico, o Direito luso-brasileiro também foi decalcado no francês (álibi - alibi; contravenção - contravention; contumácia - contumace; jurista - juriste; magistratura - magistrature; ministério público - ministère public e seu indisfarçado parquet; e tantos outros). Muitos dos nossos juristas (de juristes) beberam nas águas revolucionárias do Código Civil de Napoleão, tão bem escrito – por advogados – quanto um romance de Balzac. Esmeraram-se ao alinhavar no idioma pátrio conceitos básicos de contratos, propriedade, responsabilidade civil, Direito de Família e das sucessões.

A regra sempre foi aportuguesar as palavras estrangeiras, passá-las pela lusa alfândega léxica, adaptá-las ao gênio do nosso idioma. Se sofremos a avalancha (inclusive esta...) de termos e expressões do francês desde os primórdios do português, que o filólogo Cândido de Figueiredo chamou de “galicismos de cabelos brancos”, agora inflacionamos anglicismos. Onipresentes em todas as áreas, penetram no glossário jurídico, a exemplo de feminicide, hate crime e protective measure. Ao menos ganharam feição nacional (feminicídio, crime de ódio, medida protetiva).

Eis que, agora, a Lei n.º 14.811/2024 rompe tão boa tradição e, ao tipificar delitos, adota o retrocesso do bilinguismo. É o que faz no artigo 6.º: “O Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar acrescido do seguinte artigo 146-A:

“Intimidação sistemática (bullying).

Artigo 146-A. Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais:

Pena – multa, se a conduta não constituir crime mais grave.

Intimidação sistemática virtual (cyberbullying)” (...).

Exemplo eloquente de insensato apego a neologismos inadaptados, com letras e fonemas desautorizados pelos acordos ortográficos desde a década de 1940, estende abusivamente a já clara definição do crime, que dispensa qualificação exótica para sua perfeita compreensão. Todos entendem que aquele tipo de assédio prescinde a explicação de “bullying” ou “cyberbullying”. Ademais, a má técnica legislativa agride a lógica semântica do idioma, na medida em que dispõe constituir dito crime o “intimidar” “por meio de atos de intimidação” e, não menos sofrível, “sem motivação evidente”, como se agressões sistemáticas que contempla admitissem justificativa factual. Não bastasse tal algaravia, ainda usa “on-line”, que o vocabulário ortográfico da Língua Portuguesa, preparado com força de lei pela Academia Brasileira de Letras, ultimamente um permissivo léxico portuinglês, nacionalizou na forma “online”.

Nossos legisladores parecem olvidar o artigo 13 da Constituição: “A Língua Portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil”. E que seus ilustrados ancestrais cultuavam a juricidade literária – tanto que, como diz o gramático José Augusto Carvalho, em Problemas e Curiosidades da Língua Portuguesa (Thesaurus, 2014), “foi a linguagem jurídica que sedimentou a norma culta, e não a linguagem dos escritores, já que as primeiras cartilhas, no século 16, eram textos de leis, versados em linguagem supradialetal, ao alcance de todos”. Viva, sempre, a Última flor do Lácio!

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ADVOGADO CRIMINALISTA, FOI PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DA OAB E DEPUTADO PELO PDT-SP

Opinião por José Roberto Batochio

Advogado criminalista, foi presidente do Conselho Federal da OAB e deputado pelo PDT-SP

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