Opinião|Brasil precisa de regulação para mercados digitais?


Na falta de evidências de que o direito concorrencial não é capaz de lidar com esses mercados, iniciativas de regulação ‘ex ante’ têm de ser examinadas com cautela

Por Ademir Pereira Jr. e Yan Villela Vieira

Os últimos anos foram marcados por propostas de novos modelos de regulação concorrencial para mercados digitais. O chamado Digital Markets Act (DMA), aprovado pelo Parlamento da União Europeia em 2022, destaca-se entre essas iniciativas pela estratégia de regulação ex ante, ou seja, pelo uso de regras que prescrevem ou proíbem certas estratégias empresariais independentemente de seus efeitos. Para os defensores de medidas como o DMA, o modelo tradicional de análise do direito antitruste, baseado na avaliação de efeitos de condutas após sua implementação (ex post), teria falhado em sua missão de conter abusos das big techs, de forma que a regulação ex ante de natureza concorrencial seria necessária. Essas propostas já desembarcaram no Brasil – no Congresso Nacional tramita o Projeto de Lei (PL) 2.768/2022 e o Ministério da Fazenda recentemente lançou consulta pública sobre o tema (não tratamos aqui de outras propostas, como o PL das Fake News, pois têm fundamentos distintos).

Em economias de mercado, a regulação de setores econômicos tipicamente ocorre na presença de falhas de mercado. E entre as falhas conhecidas encontra-se o abuso de poder de mercado em razão da ausência de concorrência – situação em que uma empresa (monopolista) ou um pequeno grupo de empresas (oligopolistas) podem aumentar preços além do nível competitivo. Propostas de regulação concorrencial de mercados digitais parecem preocupadas com esse tipo de falha, que se evidenciaria pelo tamanho das big techs e a presença constante de seus serviços no cotidiano.

Contudo, tamanho não é sinônimo de poder de mercado. Empresas gigantescas podem atuar em mercados altamente competitivos. A aferição da existência de poder de mercado depende de análise das condições de competição, o que não é levado em conta pelas atuais propostas de regulação ex ante.

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De fato, não há evidências de que mercados digitais (ou vários deles) sejam marcados pela presença de poder de mercado – e que eventual poder, se e quando existente, seja duradouro e produza efeitos sociais negativos. Primeiro, diferente das situações em que monopólios ou oligopólios em setores tradicionais (como telefonia e ferrovias) demandaram regulação específica, os mercados digitais apresentam altas taxas de inovação e satisfação de usuários. Segundo, mesmo que haja uma empresa líder num mercado, há evidências empíricas de que essa posição é contestável por rivais e entrantes. As recentes discussões sobre os desenvolvimentos na área de inteligência artificial e como ela pode redesenhar mercados é evidência disso.

Outro aspecto relevante é que regulações ex ante são, tipicamente, desenhadas para lidar com agentes que seguem modelos de negócio semelhantes. A existência de regulamentos individualizados para cada atividade é chave para que falhas de mercado sejam identificadas e para que se possa compreender qual o papel da regulação e seus objetivos. Entretanto, propostas assemelhadas ao DMA colocam sob o guarda-chuva de “mercados digitais” agentes com modelos de negócio distintos e que operam com dinâmicas particulares. Por exemplo, o desenvolvimento de navegadores é atividade muito distinta do varejo de e-commerce, e a computação em nuvem é diferente de redes sociais. Aplicar uma única regra a serviços distintos pode afetar negativamente os mercados.

Finalmente, mesmo que possam existir hipóteses de abuso de poder de mercado, esses casos parecem exceção, e não regra. Autoridades concorrenciais raramente identificaram condutas anticompetitivas a demandar intervenção em mercados digitais. Além de poucos, os casos levaram anos e as decisões dividiram opiniões, o que indica que a identificação de efeitos negativos das práticas está longe de ser autoevidente.

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Contudo, as propostas de regulação ex ante incluem o recurso a proibições absolutas (per se) de certos comportamentos. Quando aplicada de modo indiscriminado sobre mercados diversos, sem uma análise de efeitos sobre cada segmento, regras per se podem impedir estratégias pró-competitivas e que beneficiam consumidores. Por isso, décadas de desenvolvimento do direito antitruste levaram à evolução de um regime de proibições per se para um regime de análise dos efeitos concretos de condutas sobre mercados específicos.

De fato, o direito concorrencial é um instrumento de intervenção já conhecido e testado. No Brasil, temos ao menos três décadas de aplicação consistente do direito da concorrência, com nítido desenvolvimento de uma entidade técnica (o Cade) com experiência e ferramentas variadas para lidar com eventuais abusos em diversos mercados (inclusive mediante o uso de medidas preventivas, quando houver urgência). Na ausência de evidências de que o direito concorrencial não é capaz de lidar com mercados digitais, iniciativas de regulação ex ante precisam ser examinadas com cautela.

Nesse sentido, é importante que o debate democrático inclua como pergunta central se a regulação ex ante de mercados digitais é necessária e o que ela procura atingir. Em propostas de importação de iniciativas estrangeiras, não faltam soluções em busca de problemas.

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*

ADVOGADOS, SÃO, RESPECTIVAMENTE, DOUTOR PELA USP E MESTRE EM DIREITO E TECNOLOGIA PELA STANFORD UNIVERSITY; E MESTRE EM DIREITO PELA USP

Os últimos anos foram marcados por propostas de novos modelos de regulação concorrencial para mercados digitais. O chamado Digital Markets Act (DMA), aprovado pelo Parlamento da União Europeia em 2022, destaca-se entre essas iniciativas pela estratégia de regulação ex ante, ou seja, pelo uso de regras que prescrevem ou proíbem certas estratégias empresariais independentemente de seus efeitos. Para os defensores de medidas como o DMA, o modelo tradicional de análise do direito antitruste, baseado na avaliação de efeitos de condutas após sua implementação (ex post), teria falhado em sua missão de conter abusos das big techs, de forma que a regulação ex ante de natureza concorrencial seria necessária. Essas propostas já desembarcaram no Brasil – no Congresso Nacional tramita o Projeto de Lei (PL) 2.768/2022 e o Ministério da Fazenda recentemente lançou consulta pública sobre o tema (não tratamos aqui de outras propostas, como o PL das Fake News, pois têm fundamentos distintos).

Em economias de mercado, a regulação de setores econômicos tipicamente ocorre na presença de falhas de mercado. E entre as falhas conhecidas encontra-se o abuso de poder de mercado em razão da ausência de concorrência – situação em que uma empresa (monopolista) ou um pequeno grupo de empresas (oligopolistas) podem aumentar preços além do nível competitivo. Propostas de regulação concorrencial de mercados digitais parecem preocupadas com esse tipo de falha, que se evidenciaria pelo tamanho das big techs e a presença constante de seus serviços no cotidiano.

Contudo, tamanho não é sinônimo de poder de mercado. Empresas gigantescas podem atuar em mercados altamente competitivos. A aferição da existência de poder de mercado depende de análise das condições de competição, o que não é levado em conta pelas atuais propostas de regulação ex ante.

De fato, não há evidências de que mercados digitais (ou vários deles) sejam marcados pela presença de poder de mercado – e que eventual poder, se e quando existente, seja duradouro e produza efeitos sociais negativos. Primeiro, diferente das situações em que monopólios ou oligopólios em setores tradicionais (como telefonia e ferrovias) demandaram regulação específica, os mercados digitais apresentam altas taxas de inovação e satisfação de usuários. Segundo, mesmo que haja uma empresa líder num mercado, há evidências empíricas de que essa posição é contestável por rivais e entrantes. As recentes discussões sobre os desenvolvimentos na área de inteligência artificial e como ela pode redesenhar mercados é evidência disso.

Outro aspecto relevante é que regulações ex ante são, tipicamente, desenhadas para lidar com agentes que seguem modelos de negócio semelhantes. A existência de regulamentos individualizados para cada atividade é chave para que falhas de mercado sejam identificadas e para que se possa compreender qual o papel da regulação e seus objetivos. Entretanto, propostas assemelhadas ao DMA colocam sob o guarda-chuva de “mercados digitais” agentes com modelos de negócio distintos e que operam com dinâmicas particulares. Por exemplo, o desenvolvimento de navegadores é atividade muito distinta do varejo de e-commerce, e a computação em nuvem é diferente de redes sociais. Aplicar uma única regra a serviços distintos pode afetar negativamente os mercados.

Finalmente, mesmo que possam existir hipóteses de abuso de poder de mercado, esses casos parecem exceção, e não regra. Autoridades concorrenciais raramente identificaram condutas anticompetitivas a demandar intervenção em mercados digitais. Além de poucos, os casos levaram anos e as decisões dividiram opiniões, o que indica que a identificação de efeitos negativos das práticas está longe de ser autoevidente.

Contudo, as propostas de regulação ex ante incluem o recurso a proibições absolutas (per se) de certos comportamentos. Quando aplicada de modo indiscriminado sobre mercados diversos, sem uma análise de efeitos sobre cada segmento, regras per se podem impedir estratégias pró-competitivas e que beneficiam consumidores. Por isso, décadas de desenvolvimento do direito antitruste levaram à evolução de um regime de proibições per se para um regime de análise dos efeitos concretos de condutas sobre mercados específicos.

De fato, o direito concorrencial é um instrumento de intervenção já conhecido e testado. No Brasil, temos ao menos três décadas de aplicação consistente do direito da concorrência, com nítido desenvolvimento de uma entidade técnica (o Cade) com experiência e ferramentas variadas para lidar com eventuais abusos em diversos mercados (inclusive mediante o uso de medidas preventivas, quando houver urgência). Na ausência de evidências de que o direito concorrencial não é capaz de lidar com mercados digitais, iniciativas de regulação ex ante precisam ser examinadas com cautela.

Nesse sentido, é importante que o debate democrático inclua como pergunta central se a regulação ex ante de mercados digitais é necessária e o que ela procura atingir. Em propostas de importação de iniciativas estrangeiras, não faltam soluções em busca de problemas.

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ADVOGADOS, SÃO, RESPECTIVAMENTE, DOUTOR PELA USP E MESTRE EM DIREITO E TECNOLOGIA PELA STANFORD UNIVERSITY; E MESTRE EM DIREITO PELA USP

Os últimos anos foram marcados por propostas de novos modelos de regulação concorrencial para mercados digitais. O chamado Digital Markets Act (DMA), aprovado pelo Parlamento da União Europeia em 2022, destaca-se entre essas iniciativas pela estratégia de regulação ex ante, ou seja, pelo uso de regras que prescrevem ou proíbem certas estratégias empresariais independentemente de seus efeitos. Para os defensores de medidas como o DMA, o modelo tradicional de análise do direito antitruste, baseado na avaliação de efeitos de condutas após sua implementação (ex post), teria falhado em sua missão de conter abusos das big techs, de forma que a regulação ex ante de natureza concorrencial seria necessária. Essas propostas já desembarcaram no Brasil – no Congresso Nacional tramita o Projeto de Lei (PL) 2.768/2022 e o Ministério da Fazenda recentemente lançou consulta pública sobre o tema (não tratamos aqui de outras propostas, como o PL das Fake News, pois têm fundamentos distintos).

Em economias de mercado, a regulação de setores econômicos tipicamente ocorre na presença de falhas de mercado. E entre as falhas conhecidas encontra-se o abuso de poder de mercado em razão da ausência de concorrência – situação em que uma empresa (monopolista) ou um pequeno grupo de empresas (oligopolistas) podem aumentar preços além do nível competitivo. Propostas de regulação concorrencial de mercados digitais parecem preocupadas com esse tipo de falha, que se evidenciaria pelo tamanho das big techs e a presença constante de seus serviços no cotidiano.

Contudo, tamanho não é sinônimo de poder de mercado. Empresas gigantescas podem atuar em mercados altamente competitivos. A aferição da existência de poder de mercado depende de análise das condições de competição, o que não é levado em conta pelas atuais propostas de regulação ex ante.

De fato, não há evidências de que mercados digitais (ou vários deles) sejam marcados pela presença de poder de mercado – e que eventual poder, se e quando existente, seja duradouro e produza efeitos sociais negativos. Primeiro, diferente das situações em que monopólios ou oligopólios em setores tradicionais (como telefonia e ferrovias) demandaram regulação específica, os mercados digitais apresentam altas taxas de inovação e satisfação de usuários. Segundo, mesmo que haja uma empresa líder num mercado, há evidências empíricas de que essa posição é contestável por rivais e entrantes. As recentes discussões sobre os desenvolvimentos na área de inteligência artificial e como ela pode redesenhar mercados é evidência disso.

Outro aspecto relevante é que regulações ex ante são, tipicamente, desenhadas para lidar com agentes que seguem modelos de negócio semelhantes. A existência de regulamentos individualizados para cada atividade é chave para que falhas de mercado sejam identificadas e para que se possa compreender qual o papel da regulação e seus objetivos. Entretanto, propostas assemelhadas ao DMA colocam sob o guarda-chuva de “mercados digitais” agentes com modelos de negócio distintos e que operam com dinâmicas particulares. Por exemplo, o desenvolvimento de navegadores é atividade muito distinta do varejo de e-commerce, e a computação em nuvem é diferente de redes sociais. Aplicar uma única regra a serviços distintos pode afetar negativamente os mercados.

Finalmente, mesmo que possam existir hipóteses de abuso de poder de mercado, esses casos parecem exceção, e não regra. Autoridades concorrenciais raramente identificaram condutas anticompetitivas a demandar intervenção em mercados digitais. Além de poucos, os casos levaram anos e as decisões dividiram opiniões, o que indica que a identificação de efeitos negativos das práticas está longe de ser autoevidente.

Contudo, as propostas de regulação ex ante incluem o recurso a proibições absolutas (per se) de certos comportamentos. Quando aplicada de modo indiscriminado sobre mercados diversos, sem uma análise de efeitos sobre cada segmento, regras per se podem impedir estratégias pró-competitivas e que beneficiam consumidores. Por isso, décadas de desenvolvimento do direito antitruste levaram à evolução de um regime de proibições per se para um regime de análise dos efeitos concretos de condutas sobre mercados específicos.

De fato, o direito concorrencial é um instrumento de intervenção já conhecido e testado. No Brasil, temos ao menos três décadas de aplicação consistente do direito da concorrência, com nítido desenvolvimento de uma entidade técnica (o Cade) com experiência e ferramentas variadas para lidar com eventuais abusos em diversos mercados (inclusive mediante o uso de medidas preventivas, quando houver urgência). Na ausência de evidências de que o direito concorrencial não é capaz de lidar com mercados digitais, iniciativas de regulação ex ante precisam ser examinadas com cautela.

Nesse sentido, é importante que o debate democrático inclua como pergunta central se a regulação ex ante de mercados digitais é necessária e o que ela procura atingir. Em propostas de importação de iniciativas estrangeiras, não faltam soluções em busca de problemas.

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ADVOGADOS, SÃO, RESPECTIVAMENTE, DOUTOR PELA USP E MESTRE EM DIREITO E TECNOLOGIA PELA STANFORD UNIVERSITY; E MESTRE EM DIREITO PELA USP

Os últimos anos foram marcados por propostas de novos modelos de regulação concorrencial para mercados digitais. O chamado Digital Markets Act (DMA), aprovado pelo Parlamento da União Europeia em 2022, destaca-se entre essas iniciativas pela estratégia de regulação ex ante, ou seja, pelo uso de regras que prescrevem ou proíbem certas estratégias empresariais independentemente de seus efeitos. Para os defensores de medidas como o DMA, o modelo tradicional de análise do direito antitruste, baseado na avaliação de efeitos de condutas após sua implementação (ex post), teria falhado em sua missão de conter abusos das big techs, de forma que a regulação ex ante de natureza concorrencial seria necessária. Essas propostas já desembarcaram no Brasil – no Congresso Nacional tramita o Projeto de Lei (PL) 2.768/2022 e o Ministério da Fazenda recentemente lançou consulta pública sobre o tema (não tratamos aqui de outras propostas, como o PL das Fake News, pois têm fundamentos distintos).

Em economias de mercado, a regulação de setores econômicos tipicamente ocorre na presença de falhas de mercado. E entre as falhas conhecidas encontra-se o abuso de poder de mercado em razão da ausência de concorrência – situação em que uma empresa (monopolista) ou um pequeno grupo de empresas (oligopolistas) podem aumentar preços além do nível competitivo. Propostas de regulação concorrencial de mercados digitais parecem preocupadas com esse tipo de falha, que se evidenciaria pelo tamanho das big techs e a presença constante de seus serviços no cotidiano.

Contudo, tamanho não é sinônimo de poder de mercado. Empresas gigantescas podem atuar em mercados altamente competitivos. A aferição da existência de poder de mercado depende de análise das condições de competição, o que não é levado em conta pelas atuais propostas de regulação ex ante.

De fato, não há evidências de que mercados digitais (ou vários deles) sejam marcados pela presença de poder de mercado – e que eventual poder, se e quando existente, seja duradouro e produza efeitos sociais negativos. Primeiro, diferente das situações em que monopólios ou oligopólios em setores tradicionais (como telefonia e ferrovias) demandaram regulação específica, os mercados digitais apresentam altas taxas de inovação e satisfação de usuários. Segundo, mesmo que haja uma empresa líder num mercado, há evidências empíricas de que essa posição é contestável por rivais e entrantes. As recentes discussões sobre os desenvolvimentos na área de inteligência artificial e como ela pode redesenhar mercados é evidência disso.

Outro aspecto relevante é que regulações ex ante são, tipicamente, desenhadas para lidar com agentes que seguem modelos de negócio semelhantes. A existência de regulamentos individualizados para cada atividade é chave para que falhas de mercado sejam identificadas e para que se possa compreender qual o papel da regulação e seus objetivos. Entretanto, propostas assemelhadas ao DMA colocam sob o guarda-chuva de “mercados digitais” agentes com modelos de negócio distintos e que operam com dinâmicas particulares. Por exemplo, o desenvolvimento de navegadores é atividade muito distinta do varejo de e-commerce, e a computação em nuvem é diferente de redes sociais. Aplicar uma única regra a serviços distintos pode afetar negativamente os mercados.

Finalmente, mesmo que possam existir hipóteses de abuso de poder de mercado, esses casos parecem exceção, e não regra. Autoridades concorrenciais raramente identificaram condutas anticompetitivas a demandar intervenção em mercados digitais. Além de poucos, os casos levaram anos e as decisões dividiram opiniões, o que indica que a identificação de efeitos negativos das práticas está longe de ser autoevidente.

Contudo, as propostas de regulação ex ante incluem o recurso a proibições absolutas (per se) de certos comportamentos. Quando aplicada de modo indiscriminado sobre mercados diversos, sem uma análise de efeitos sobre cada segmento, regras per se podem impedir estratégias pró-competitivas e que beneficiam consumidores. Por isso, décadas de desenvolvimento do direito antitruste levaram à evolução de um regime de proibições per se para um regime de análise dos efeitos concretos de condutas sobre mercados específicos.

De fato, o direito concorrencial é um instrumento de intervenção já conhecido e testado. No Brasil, temos ao menos três décadas de aplicação consistente do direito da concorrência, com nítido desenvolvimento de uma entidade técnica (o Cade) com experiência e ferramentas variadas para lidar com eventuais abusos em diversos mercados (inclusive mediante o uso de medidas preventivas, quando houver urgência). Na ausência de evidências de que o direito concorrencial não é capaz de lidar com mercados digitais, iniciativas de regulação ex ante precisam ser examinadas com cautela.

Nesse sentido, é importante que o debate democrático inclua como pergunta central se a regulação ex ante de mercados digitais é necessária e o que ela procura atingir. Em propostas de importação de iniciativas estrangeiras, não faltam soluções em busca de problemas.

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ADVOGADOS, SÃO, RESPECTIVAMENTE, DOUTOR PELA USP E MESTRE EM DIREITO E TECNOLOGIA PELA STANFORD UNIVERSITY; E MESTRE EM DIREITO PELA USP

Os últimos anos foram marcados por propostas de novos modelos de regulação concorrencial para mercados digitais. O chamado Digital Markets Act (DMA), aprovado pelo Parlamento da União Europeia em 2022, destaca-se entre essas iniciativas pela estratégia de regulação ex ante, ou seja, pelo uso de regras que prescrevem ou proíbem certas estratégias empresariais independentemente de seus efeitos. Para os defensores de medidas como o DMA, o modelo tradicional de análise do direito antitruste, baseado na avaliação de efeitos de condutas após sua implementação (ex post), teria falhado em sua missão de conter abusos das big techs, de forma que a regulação ex ante de natureza concorrencial seria necessária. Essas propostas já desembarcaram no Brasil – no Congresso Nacional tramita o Projeto de Lei (PL) 2.768/2022 e o Ministério da Fazenda recentemente lançou consulta pública sobre o tema (não tratamos aqui de outras propostas, como o PL das Fake News, pois têm fundamentos distintos).

Em economias de mercado, a regulação de setores econômicos tipicamente ocorre na presença de falhas de mercado. E entre as falhas conhecidas encontra-se o abuso de poder de mercado em razão da ausência de concorrência – situação em que uma empresa (monopolista) ou um pequeno grupo de empresas (oligopolistas) podem aumentar preços além do nível competitivo. Propostas de regulação concorrencial de mercados digitais parecem preocupadas com esse tipo de falha, que se evidenciaria pelo tamanho das big techs e a presença constante de seus serviços no cotidiano.

Contudo, tamanho não é sinônimo de poder de mercado. Empresas gigantescas podem atuar em mercados altamente competitivos. A aferição da existência de poder de mercado depende de análise das condições de competição, o que não é levado em conta pelas atuais propostas de regulação ex ante.

De fato, não há evidências de que mercados digitais (ou vários deles) sejam marcados pela presença de poder de mercado – e que eventual poder, se e quando existente, seja duradouro e produza efeitos sociais negativos. Primeiro, diferente das situações em que monopólios ou oligopólios em setores tradicionais (como telefonia e ferrovias) demandaram regulação específica, os mercados digitais apresentam altas taxas de inovação e satisfação de usuários. Segundo, mesmo que haja uma empresa líder num mercado, há evidências empíricas de que essa posição é contestável por rivais e entrantes. As recentes discussões sobre os desenvolvimentos na área de inteligência artificial e como ela pode redesenhar mercados é evidência disso.

Outro aspecto relevante é que regulações ex ante são, tipicamente, desenhadas para lidar com agentes que seguem modelos de negócio semelhantes. A existência de regulamentos individualizados para cada atividade é chave para que falhas de mercado sejam identificadas e para que se possa compreender qual o papel da regulação e seus objetivos. Entretanto, propostas assemelhadas ao DMA colocam sob o guarda-chuva de “mercados digitais” agentes com modelos de negócio distintos e que operam com dinâmicas particulares. Por exemplo, o desenvolvimento de navegadores é atividade muito distinta do varejo de e-commerce, e a computação em nuvem é diferente de redes sociais. Aplicar uma única regra a serviços distintos pode afetar negativamente os mercados.

Finalmente, mesmo que possam existir hipóteses de abuso de poder de mercado, esses casos parecem exceção, e não regra. Autoridades concorrenciais raramente identificaram condutas anticompetitivas a demandar intervenção em mercados digitais. Além de poucos, os casos levaram anos e as decisões dividiram opiniões, o que indica que a identificação de efeitos negativos das práticas está longe de ser autoevidente.

Contudo, as propostas de regulação ex ante incluem o recurso a proibições absolutas (per se) de certos comportamentos. Quando aplicada de modo indiscriminado sobre mercados diversos, sem uma análise de efeitos sobre cada segmento, regras per se podem impedir estratégias pró-competitivas e que beneficiam consumidores. Por isso, décadas de desenvolvimento do direito antitruste levaram à evolução de um regime de proibições per se para um regime de análise dos efeitos concretos de condutas sobre mercados específicos.

De fato, o direito concorrencial é um instrumento de intervenção já conhecido e testado. No Brasil, temos ao menos três décadas de aplicação consistente do direito da concorrência, com nítido desenvolvimento de uma entidade técnica (o Cade) com experiência e ferramentas variadas para lidar com eventuais abusos em diversos mercados (inclusive mediante o uso de medidas preventivas, quando houver urgência). Na ausência de evidências de que o direito concorrencial não é capaz de lidar com mercados digitais, iniciativas de regulação ex ante precisam ser examinadas com cautela.

Nesse sentido, é importante que o debate democrático inclua como pergunta central se a regulação ex ante de mercados digitais é necessária e o que ela procura atingir. Em propostas de importação de iniciativas estrangeiras, não faltam soluções em busca de problemas.

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ADVOGADOS, SÃO, RESPECTIVAMENTE, DOUTOR PELA USP E MESTRE EM DIREITO E TECNOLOGIA PELA STANFORD UNIVERSITY; E MESTRE EM DIREITO PELA USP

Opinião por Ademir Pereira Jr.

Advogado, doutor pela USP e mestre em Direito e Tecnologia pela Stanford University

Yan Villela Vieira

Advogado, é mestre em Direito pela USP

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