O Supremo Tribunal Federal (STF) está prestes a tomar uma decisão histórica sobre o futuro da internet brasileira. A possível rejeição do artigo 19 do Marco Civil da Internet não apenas ameaça direitos fundamentais, mas também ignora evidências empíricas sobre seu papel crucial na proteção da liberdade de expressão. Embora o ministro Dias Toffoli tenha citado meus trabalhos acadêmicos em seu voto, suas conclusões divergem substancialmente das minhas descobertas: o atual sistema, baseado em ordem judicial específica, é crucial para preservar o equilíbrio entre proteção de direitos e livre manifestação do pensamento.
Para mostrar a complexidade dessa questão, reuni no link a seguir cem casos em que o próprio Poder Judiciário recusou pedidos de remoção de conteúdo: bit.ly/100casos19mci. Nessa lista, congressistas, juízes e juízas, empresas de grande e médio porte e cidadãos pleitearam a remoção à Justiça e não a conseguiram. Esses pedidos foram feitos com base em direitos de marca, de personalidade, proteção à honra e diversos outros. Todos foram considerados, pelos autores das ações, como “ofensivos e ilícitos”, nos mesmos termos do voto de Dias Toffoli.
Essa compilação revela um padrão crucial: mesmo magistrados, após análise aprofundada, frequentemente divergem sobre a ilicitude de determinados conteúdos. Se o Poder Judiciário, com todo seu aparato técnico e tempo para reflexão, encontra tal complexidade no momento de decidir uma causa, como esperar que plataformas façam análises instantâneas e precisas sob um possível regime de “notificação e remoção”? Deveriam suprimir todos os conteúdos sobre os quais paira alguma dúvida?
Destaquei alguns casos nessa lista, que incluem a remoção de notícias sobre investigações e processos judiciais envolvendo servidores públicos, políticos e ocupantes de cargos eletivos, alertas de consumidores sobre serviços defeituosos e até uma prefeitura que pretendia remover vídeos criticando obras por desperdício de dinheiro público. Seria a remoção desses conteúdos das plataformas saudável para nossa democracia?
Preocupa especialmente a proposta de criar uma lista de conteúdos sujeitos à remoção imediata, com responsabilidade objetiva das plataformas. Essa abordagem comete o erro fundamental de equiparar a responsabilidade da imprensa profissional, que produz seu próprio conteúdo, com a dos provedores de aplicação, que hospedam conteúdo gerado por terceiros. São situações juridicamente distintas que exigem tratamentos diferentes.
Mais grave ainda é a incompreensão sobre o alcance do termo “provedores de aplicação”. Não estamos falando apenas de grandes plataformas – a definição abrange todo e qualquer site que permita interação de usuários, desde pequenos blogs e fóruns comunitários até portais de notícias que possuam seção de comentários. A rejeição do artigo 19 do Marco Civil terá como consequência um ônus desproporcional a esses pequenos atores digitais, fundamentais para a diversidade e vitalidade da internet brasileira.
A atual proteção oferecida pelo artigo 19 não representa um privilégio injustificado aos provedores, mas uma salvaguarda essencial ao debate público. Sem ela, plataformas serão compelidas a remover preventivamente qualquer conteúdo questionado, independentemente de seu mérito, para evitar riscos jurídicos. Essa “censura por precaução”, inédita entre as democracias maduras, seria particularmente nociva ao jornalismo investigativo, à crítica política e às vozes minoritárias.
O impacto econômico da rejeição do artigo 19 seria igualmente devastador. Startups brasileiras, sem recursos para análise jurídica extensiva de cada denúncia recebida, por exemplo, enfrentariam custos proibitivos. Plataformas globais poderiam restringir operações no Brasil, prejudicando nossa inserção na economia digital global. A inovação tecnológica local seria sufocada pelo medo de uma responsabilização imprevisível.
A experiência com o Marco Civil demonstra que, quando há decisão judicial determinando a remoção de um conteúdo, as plataformas cumprem as ordens. E isso ocorre de forma consistente. O artigo 19 previne a censura privada indiscriminada, baseada em alegações unilaterais. Rejeitar essa salvaguarda significaria retroceder a um cenário de insegurança jurídica e censura que já superamos.
Ao formar suas posições, nossos ministros devem se nortear pelo princípio da razoabilidade e pela definição de critérios claros. Se houver uma delimitação de categorias de conteúdo para notificação e retirada, deve ser infinitamente mais estreita do que aquela vislumbrada nos votos dos relatores, ministros Dias Toffoli e Luiz Fux.
Os cem casos documentados na lista demonstram que o caminho para proteger direitos na internet passa pelo fortalecimento, não pelo enfraquecimento, das garantias do Marco Civil da Internet. E são um prenúncio dos efeitos avassaladores que viveríamos com o cerceamento da liberdade de expressão.
*
ADVOGADO, PROFESSOR DA FGV DESDE 2005, CONSELHEIRO DE ÉTICA DO CONAR, ÁRBITRO DA CÂMARA DE MERCADO DA B3, É DOUTOR, MESTRE E BACHAREL PELA FACULDADE DE DIREITO DA USP, COM PÓS-DOUTORADO PELA BERKELEY LAW