Opinião|CFM e o kit covid: dois pesos, duas medidas?


Os argumentos do presidente do conselho constituem uma tentativa de justificar o injustificável.

Por Sergio D. Pittelli, Reinaldo A. Oliveira e Janice C. Nazareth

Em entrevista ao Estado (9/10, A4) sobre o posicionamento do Conselho Federal de Medicina (CFM) a respeito do tratamento precoce da covid-19, seu presidente, dr. Mauro Luiz de Britto Ribeiro, vale-se de argumentos falaciosos. A análise da produção normativa do órgão o contradiz francamente.

Nas normas, os Considerandos constituem os fundamentos sobre os quais é erigida a parte normativa propriamente dita. Há duas resoluções que consignam natureza de tratamento experimental a duas substâncias e vedam ao médico sua utilização, limitando a autonomia: PRP e o ozônio. Em nenhuma delas os Considerandos autorizam a argumentação do dr. Mauro.

Em nenhuma é admitida a autonomia do médico como critério para uso das substâncias em caráter excepcional ou o poder de instituir terapias não consagradas com base na ausência de evidência científica.

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Ao contrário, a inexistência de evidências científicas claras é evocada sempre e apenas e tão somente para limitar o uso das substâncias aos termos de medida de caráter experimental, definidos pela Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Também é inaceitável o argumento numérico. Jamais se aventou o fato de determinada porcentagem de médicos ser favorável a determinado tratamento como justificativa para sua liberação. Poder-se-ia, então, afirmar que determinada porcentagem de médicos é favorável ao uso do PRP e do ozônio, circunstância que, pelo raciocínio do dr. Mauro, deveria eximi-los de responsabilidade. Aliás, tornaria ilógica qualquer norma vedando tratamentos!

Concordamos com ele que tratamento off label não é tratamento experimental, mas sua concepção merece amplo reparo.

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Entende-se como off label o tratamento específico de determinada pessoa (não de toda uma população) portadora de doença conhecida, com tratamentos consagrados (o que não se dá com a covid-19). Ocorrendo uma situação específica em que os tratamentos consagrados naquele caso não estejam surtindo efeito, admite-se que seja utilizado, pelo médico assistente, devidamente qualificado, tratamento para outras doenças do mesmo gênero, todos eles consagrados. É nesse sentido, e só neste, que se deve levar em conta a experiência observacional do médico e consignar-lhe liberdade para valer-se de uma “autonomia ampliada”.

Também o fato de a covid-19 ser “uma doença sobre a qual não sabemos nada” não justifica o uso indiscriminado e generalizado do tratamento off label, bem como a espécie de delegação geral de decisão a todo e qualquer médico.

Jamais se aventou tal possibilidade, nem mesmo na época da epidemia da aids, então também uma doença sobre a qual não se sabia nada.

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Tal argumentação seria aplicável às terapias com PRP e ozônio. Então por que o duplo peso, dupla medida?

A impropriedade dos conceitos do entrevistado torna-se mais viva, ainda, admitidos os termos da resolução que proíbe o uso inalatório da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19 e que é vazada nos mesmos termos aplicados às resoluções da espécie.

Por último, tem-se a Resolução 1982/12, que é uma norma ampla, que regulamenta abstratamente toda a matéria, inclusive como devem ser as normas específicas. Em seus Considerandos, não há nenhuma exceção relativa às exigências para admissão de novos tratamentos.

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A alínea b do Tópico I determina que o CFM deve avaliar e aprovar a capacitação técnica necessária do médico que realiza novos procedimentos, o que afasta a “delegação geral” de competência aventada pelo dr. Mauro.

A alínea c estabelece que os novos procedimentos propostos para uso no Brasil, já em uso corrente no exterior (o que não é o caso), devem ser avaliados, cabendo ao CFM definir a capacitação médica necessária, o que mais uma vez contraria a delegação geral de competência.

Os demais tópicos regulamentam a pesquisa de novos medicamentos, nos termos da Resolução 466/12 do CNS, e é fato incontroverso que não foi feito nenhum experimento obedecendo tais normas. Merece menção o Tópico IV, que determina os requisitos para o reconhecimento de procedimentos de uso corrente no exterior, de modo que, se fosse o caso, ainda que considerássemos os artigos a que alude o presidente como veiculadores de procedimentos de uso corrente no exterior, o CFM teria obrigatoriamente de se manifestar.

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Em nenhum ponto dessa resolução se encontra dispositivo que permita a delegação geral de competência aludida pelo dr. Mauro nem o correspondente grau de discricionariedade médica por ele admitida, sob o velho mantra da “autonomia médica” ou do novel “experiência observacional”.

Se admitida a legitimidade dos argumentos do presidente do CFM, estaria criada uma situação estranhíssima. Um dos casos, amplamente veiculado pela mídia, é o de um médico que sofreu insuflação retal de ozônio. A pergunta que cabe é se a equipe médica que atuou será submetida a apuração ética pela utilização de ozônio ou se o excepcionamento concedido ao uso do kit covid se comunicaria à ozonioterapia no caso.

De tudo, o que fica é a lastimável sensação de que os argumentos do dr. Mauro constituem uma tentativa de justificar o injustificável.

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*

SÃO, RESPECTIVAMENTE, MÉDICO NEUROCIRURGIÃO, ADVOGADO E BACHAREL EM FILOSOFIA PELA USP; MÉDICO E BIOETICISTA; E MÉDICA CARDIOLOGISTA E INTERNISTA

Em entrevista ao Estado (9/10, A4) sobre o posicionamento do Conselho Federal de Medicina (CFM) a respeito do tratamento precoce da covid-19, seu presidente, dr. Mauro Luiz de Britto Ribeiro, vale-se de argumentos falaciosos. A análise da produção normativa do órgão o contradiz francamente.

Nas normas, os Considerandos constituem os fundamentos sobre os quais é erigida a parte normativa propriamente dita. Há duas resoluções que consignam natureza de tratamento experimental a duas substâncias e vedam ao médico sua utilização, limitando a autonomia: PRP e o ozônio. Em nenhuma delas os Considerandos autorizam a argumentação do dr. Mauro.

Em nenhuma é admitida a autonomia do médico como critério para uso das substâncias em caráter excepcional ou o poder de instituir terapias não consagradas com base na ausência de evidência científica.

Ao contrário, a inexistência de evidências científicas claras é evocada sempre e apenas e tão somente para limitar o uso das substâncias aos termos de medida de caráter experimental, definidos pela Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Também é inaceitável o argumento numérico. Jamais se aventou o fato de determinada porcentagem de médicos ser favorável a determinado tratamento como justificativa para sua liberação. Poder-se-ia, então, afirmar que determinada porcentagem de médicos é favorável ao uso do PRP e do ozônio, circunstância que, pelo raciocínio do dr. Mauro, deveria eximi-los de responsabilidade. Aliás, tornaria ilógica qualquer norma vedando tratamentos!

Concordamos com ele que tratamento off label não é tratamento experimental, mas sua concepção merece amplo reparo.

Entende-se como off label o tratamento específico de determinada pessoa (não de toda uma população) portadora de doença conhecida, com tratamentos consagrados (o que não se dá com a covid-19). Ocorrendo uma situação específica em que os tratamentos consagrados naquele caso não estejam surtindo efeito, admite-se que seja utilizado, pelo médico assistente, devidamente qualificado, tratamento para outras doenças do mesmo gênero, todos eles consagrados. É nesse sentido, e só neste, que se deve levar em conta a experiência observacional do médico e consignar-lhe liberdade para valer-se de uma “autonomia ampliada”.

Também o fato de a covid-19 ser “uma doença sobre a qual não sabemos nada” não justifica o uso indiscriminado e generalizado do tratamento off label, bem como a espécie de delegação geral de decisão a todo e qualquer médico.

Jamais se aventou tal possibilidade, nem mesmo na época da epidemia da aids, então também uma doença sobre a qual não se sabia nada.

Tal argumentação seria aplicável às terapias com PRP e ozônio. Então por que o duplo peso, dupla medida?

A impropriedade dos conceitos do entrevistado torna-se mais viva, ainda, admitidos os termos da resolução que proíbe o uso inalatório da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19 e que é vazada nos mesmos termos aplicados às resoluções da espécie.

Por último, tem-se a Resolução 1982/12, que é uma norma ampla, que regulamenta abstratamente toda a matéria, inclusive como devem ser as normas específicas. Em seus Considerandos, não há nenhuma exceção relativa às exigências para admissão de novos tratamentos.

A alínea b do Tópico I determina que o CFM deve avaliar e aprovar a capacitação técnica necessária do médico que realiza novos procedimentos, o que afasta a “delegação geral” de competência aventada pelo dr. Mauro.

A alínea c estabelece que os novos procedimentos propostos para uso no Brasil, já em uso corrente no exterior (o que não é o caso), devem ser avaliados, cabendo ao CFM definir a capacitação médica necessária, o que mais uma vez contraria a delegação geral de competência.

Os demais tópicos regulamentam a pesquisa de novos medicamentos, nos termos da Resolução 466/12 do CNS, e é fato incontroverso que não foi feito nenhum experimento obedecendo tais normas. Merece menção o Tópico IV, que determina os requisitos para o reconhecimento de procedimentos de uso corrente no exterior, de modo que, se fosse o caso, ainda que considerássemos os artigos a que alude o presidente como veiculadores de procedimentos de uso corrente no exterior, o CFM teria obrigatoriamente de se manifestar.

Em nenhum ponto dessa resolução se encontra dispositivo que permita a delegação geral de competência aludida pelo dr. Mauro nem o correspondente grau de discricionariedade médica por ele admitida, sob o velho mantra da “autonomia médica” ou do novel “experiência observacional”.

Se admitida a legitimidade dos argumentos do presidente do CFM, estaria criada uma situação estranhíssima. Um dos casos, amplamente veiculado pela mídia, é o de um médico que sofreu insuflação retal de ozônio. A pergunta que cabe é se a equipe médica que atuou será submetida a apuração ética pela utilização de ozônio ou se o excepcionamento concedido ao uso do kit covid se comunicaria à ozonioterapia no caso.

De tudo, o que fica é a lastimável sensação de que os argumentos do dr. Mauro constituem uma tentativa de justificar o injustificável.

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SÃO, RESPECTIVAMENTE, MÉDICO NEUROCIRURGIÃO, ADVOGADO E BACHAREL EM FILOSOFIA PELA USP; MÉDICO E BIOETICISTA; E MÉDICA CARDIOLOGISTA E INTERNISTA

Em entrevista ao Estado (9/10, A4) sobre o posicionamento do Conselho Federal de Medicina (CFM) a respeito do tratamento precoce da covid-19, seu presidente, dr. Mauro Luiz de Britto Ribeiro, vale-se de argumentos falaciosos. A análise da produção normativa do órgão o contradiz francamente.

Nas normas, os Considerandos constituem os fundamentos sobre os quais é erigida a parte normativa propriamente dita. Há duas resoluções que consignam natureza de tratamento experimental a duas substâncias e vedam ao médico sua utilização, limitando a autonomia: PRP e o ozônio. Em nenhuma delas os Considerandos autorizam a argumentação do dr. Mauro.

Em nenhuma é admitida a autonomia do médico como critério para uso das substâncias em caráter excepcional ou o poder de instituir terapias não consagradas com base na ausência de evidência científica.

Ao contrário, a inexistência de evidências científicas claras é evocada sempre e apenas e tão somente para limitar o uso das substâncias aos termos de medida de caráter experimental, definidos pela Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Também é inaceitável o argumento numérico. Jamais se aventou o fato de determinada porcentagem de médicos ser favorável a determinado tratamento como justificativa para sua liberação. Poder-se-ia, então, afirmar que determinada porcentagem de médicos é favorável ao uso do PRP e do ozônio, circunstância que, pelo raciocínio do dr. Mauro, deveria eximi-los de responsabilidade. Aliás, tornaria ilógica qualquer norma vedando tratamentos!

Concordamos com ele que tratamento off label não é tratamento experimental, mas sua concepção merece amplo reparo.

Entende-se como off label o tratamento específico de determinada pessoa (não de toda uma população) portadora de doença conhecida, com tratamentos consagrados (o que não se dá com a covid-19). Ocorrendo uma situação específica em que os tratamentos consagrados naquele caso não estejam surtindo efeito, admite-se que seja utilizado, pelo médico assistente, devidamente qualificado, tratamento para outras doenças do mesmo gênero, todos eles consagrados. É nesse sentido, e só neste, que se deve levar em conta a experiência observacional do médico e consignar-lhe liberdade para valer-se de uma “autonomia ampliada”.

Também o fato de a covid-19 ser “uma doença sobre a qual não sabemos nada” não justifica o uso indiscriminado e generalizado do tratamento off label, bem como a espécie de delegação geral de decisão a todo e qualquer médico.

Jamais se aventou tal possibilidade, nem mesmo na época da epidemia da aids, então também uma doença sobre a qual não se sabia nada.

Tal argumentação seria aplicável às terapias com PRP e ozônio. Então por que o duplo peso, dupla medida?

A impropriedade dos conceitos do entrevistado torna-se mais viva, ainda, admitidos os termos da resolução que proíbe o uso inalatório da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19 e que é vazada nos mesmos termos aplicados às resoluções da espécie.

Por último, tem-se a Resolução 1982/12, que é uma norma ampla, que regulamenta abstratamente toda a matéria, inclusive como devem ser as normas específicas. Em seus Considerandos, não há nenhuma exceção relativa às exigências para admissão de novos tratamentos.

A alínea b do Tópico I determina que o CFM deve avaliar e aprovar a capacitação técnica necessária do médico que realiza novos procedimentos, o que afasta a “delegação geral” de competência aventada pelo dr. Mauro.

A alínea c estabelece que os novos procedimentos propostos para uso no Brasil, já em uso corrente no exterior (o que não é o caso), devem ser avaliados, cabendo ao CFM definir a capacitação médica necessária, o que mais uma vez contraria a delegação geral de competência.

Os demais tópicos regulamentam a pesquisa de novos medicamentos, nos termos da Resolução 466/12 do CNS, e é fato incontroverso que não foi feito nenhum experimento obedecendo tais normas. Merece menção o Tópico IV, que determina os requisitos para o reconhecimento de procedimentos de uso corrente no exterior, de modo que, se fosse o caso, ainda que considerássemos os artigos a que alude o presidente como veiculadores de procedimentos de uso corrente no exterior, o CFM teria obrigatoriamente de se manifestar.

Em nenhum ponto dessa resolução se encontra dispositivo que permita a delegação geral de competência aludida pelo dr. Mauro nem o correspondente grau de discricionariedade médica por ele admitida, sob o velho mantra da “autonomia médica” ou do novel “experiência observacional”.

Se admitida a legitimidade dos argumentos do presidente do CFM, estaria criada uma situação estranhíssima. Um dos casos, amplamente veiculado pela mídia, é o de um médico que sofreu insuflação retal de ozônio. A pergunta que cabe é se a equipe médica que atuou será submetida a apuração ética pela utilização de ozônio ou se o excepcionamento concedido ao uso do kit covid se comunicaria à ozonioterapia no caso.

De tudo, o que fica é a lastimável sensação de que os argumentos do dr. Mauro constituem uma tentativa de justificar o injustificável.

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SÃO, RESPECTIVAMENTE, MÉDICO NEUROCIRURGIÃO, ADVOGADO E BACHAREL EM FILOSOFIA PELA USP; MÉDICO E BIOETICISTA; E MÉDICA CARDIOLOGISTA E INTERNISTA

Em entrevista ao Estado (9/10, A4) sobre o posicionamento do Conselho Federal de Medicina (CFM) a respeito do tratamento precoce da covid-19, seu presidente, dr. Mauro Luiz de Britto Ribeiro, vale-se de argumentos falaciosos. A análise da produção normativa do órgão o contradiz francamente.

Nas normas, os Considerandos constituem os fundamentos sobre os quais é erigida a parte normativa propriamente dita. Há duas resoluções que consignam natureza de tratamento experimental a duas substâncias e vedam ao médico sua utilização, limitando a autonomia: PRP e o ozônio. Em nenhuma delas os Considerandos autorizam a argumentação do dr. Mauro.

Em nenhuma é admitida a autonomia do médico como critério para uso das substâncias em caráter excepcional ou o poder de instituir terapias não consagradas com base na ausência de evidência científica.

Ao contrário, a inexistência de evidências científicas claras é evocada sempre e apenas e tão somente para limitar o uso das substâncias aos termos de medida de caráter experimental, definidos pela Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Também é inaceitável o argumento numérico. Jamais se aventou o fato de determinada porcentagem de médicos ser favorável a determinado tratamento como justificativa para sua liberação. Poder-se-ia, então, afirmar que determinada porcentagem de médicos é favorável ao uso do PRP e do ozônio, circunstância que, pelo raciocínio do dr. Mauro, deveria eximi-los de responsabilidade. Aliás, tornaria ilógica qualquer norma vedando tratamentos!

Concordamos com ele que tratamento off label não é tratamento experimental, mas sua concepção merece amplo reparo.

Entende-se como off label o tratamento específico de determinada pessoa (não de toda uma população) portadora de doença conhecida, com tratamentos consagrados (o que não se dá com a covid-19). Ocorrendo uma situação específica em que os tratamentos consagrados naquele caso não estejam surtindo efeito, admite-se que seja utilizado, pelo médico assistente, devidamente qualificado, tratamento para outras doenças do mesmo gênero, todos eles consagrados. É nesse sentido, e só neste, que se deve levar em conta a experiência observacional do médico e consignar-lhe liberdade para valer-se de uma “autonomia ampliada”.

Também o fato de a covid-19 ser “uma doença sobre a qual não sabemos nada” não justifica o uso indiscriminado e generalizado do tratamento off label, bem como a espécie de delegação geral de decisão a todo e qualquer médico.

Jamais se aventou tal possibilidade, nem mesmo na época da epidemia da aids, então também uma doença sobre a qual não se sabia nada.

Tal argumentação seria aplicável às terapias com PRP e ozônio. Então por que o duplo peso, dupla medida?

A impropriedade dos conceitos do entrevistado torna-se mais viva, ainda, admitidos os termos da resolução que proíbe o uso inalatório da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19 e que é vazada nos mesmos termos aplicados às resoluções da espécie.

Por último, tem-se a Resolução 1982/12, que é uma norma ampla, que regulamenta abstratamente toda a matéria, inclusive como devem ser as normas específicas. Em seus Considerandos, não há nenhuma exceção relativa às exigências para admissão de novos tratamentos.

A alínea b do Tópico I determina que o CFM deve avaliar e aprovar a capacitação técnica necessária do médico que realiza novos procedimentos, o que afasta a “delegação geral” de competência aventada pelo dr. Mauro.

A alínea c estabelece que os novos procedimentos propostos para uso no Brasil, já em uso corrente no exterior (o que não é o caso), devem ser avaliados, cabendo ao CFM definir a capacitação médica necessária, o que mais uma vez contraria a delegação geral de competência.

Os demais tópicos regulamentam a pesquisa de novos medicamentos, nos termos da Resolução 466/12 do CNS, e é fato incontroverso que não foi feito nenhum experimento obedecendo tais normas. Merece menção o Tópico IV, que determina os requisitos para o reconhecimento de procedimentos de uso corrente no exterior, de modo que, se fosse o caso, ainda que considerássemos os artigos a que alude o presidente como veiculadores de procedimentos de uso corrente no exterior, o CFM teria obrigatoriamente de se manifestar.

Em nenhum ponto dessa resolução se encontra dispositivo que permita a delegação geral de competência aludida pelo dr. Mauro nem o correspondente grau de discricionariedade médica por ele admitida, sob o velho mantra da “autonomia médica” ou do novel “experiência observacional”.

Se admitida a legitimidade dos argumentos do presidente do CFM, estaria criada uma situação estranhíssima. Um dos casos, amplamente veiculado pela mídia, é o de um médico que sofreu insuflação retal de ozônio. A pergunta que cabe é se a equipe médica que atuou será submetida a apuração ética pela utilização de ozônio ou se o excepcionamento concedido ao uso do kit covid se comunicaria à ozonioterapia no caso.

De tudo, o que fica é a lastimável sensação de que os argumentos do dr. Mauro constituem uma tentativa de justificar o injustificável.

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SÃO, RESPECTIVAMENTE, MÉDICO NEUROCIRURGIÃO, ADVOGADO E BACHAREL EM FILOSOFIA PELA USP; MÉDICO E BIOETICISTA; E MÉDICA CARDIOLOGISTA E INTERNISTA

Em entrevista ao Estado (9/10, A4) sobre o posicionamento do Conselho Federal de Medicina (CFM) a respeito do tratamento precoce da covid-19, seu presidente, dr. Mauro Luiz de Britto Ribeiro, vale-se de argumentos falaciosos. A análise da produção normativa do órgão o contradiz francamente.

Nas normas, os Considerandos constituem os fundamentos sobre os quais é erigida a parte normativa propriamente dita. Há duas resoluções que consignam natureza de tratamento experimental a duas substâncias e vedam ao médico sua utilização, limitando a autonomia: PRP e o ozônio. Em nenhuma delas os Considerandos autorizam a argumentação do dr. Mauro.

Em nenhuma é admitida a autonomia do médico como critério para uso das substâncias em caráter excepcional ou o poder de instituir terapias não consagradas com base na ausência de evidência científica.

Ao contrário, a inexistência de evidências científicas claras é evocada sempre e apenas e tão somente para limitar o uso das substâncias aos termos de medida de caráter experimental, definidos pela Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Também é inaceitável o argumento numérico. Jamais se aventou o fato de determinada porcentagem de médicos ser favorável a determinado tratamento como justificativa para sua liberação. Poder-se-ia, então, afirmar que determinada porcentagem de médicos é favorável ao uso do PRP e do ozônio, circunstância que, pelo raciocínio do dr. Mauro, deveria eximi-los de responsabilidade. Aliás, tornaria ilógica qualquer norma vedando tratamentos!

Concordamos com ele que tratamento off label não é tratamento experimental, mas sua concepção merece amplo reparo.

Entende-se como off label o tratamento específico de determinada pessoa (não de toda uma população) portadora de doença conhecida, com tratamentos consagrados (o que não se dá com a covid-19). Ocorrendo uma situação específica em que os tratamentos consagrados naquele caso não estejam surtindo efeito, admite-se que seja utilizado, pelo médico assistente, devidamente qualificado, tratamento para outras doenças do mesmo gênero, todos eles consagrados. É nesse sentido, e só neste, que se deve levar em conta a experiência observacional do médico e consignar-lhe liberdade para valer-se de uma “autonomia ampliada”.

Também o fato de a covid-19 ser “uma doença sobre a qual não sabemos nada” não justifica o uso indiscriminado e generalizado do tratamento off label, bem como a espécie de delegação geral de decisão a todo e qualquer médico.

Jamais se aventou tal possibilidade, nem mesmo na época da epidemia da aids, então também uma doença sobre a qual não se sabia nada.

Tal argumentação seria aplicável às terapias com PRP e ozônio. Então por que o duplo peso, dupla medida?

A impropriedade dos conceitos do entrevistado torna-se mais viva, ainda, admitidos os termos da resolução que proíbe o uso inalatório da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19 e que é vazada nos mesmos termos aplicados às resoluções da espécie.

Por último, tem-se a Resolução 1982/12, que é uma norma ampla, que regulamenta abstratamente toda a matéria, inclusive como devem ser as normas específicas. Em seus Considerandos, não há nenhuma exceção relativa às exigências para admissão de novos tratamentos.

A alínea b do Tópico I determina que o CFM deve avaliar e aprovar a capacitação técnica necessária do médico que realiza novos procedimentos, o que afasta a “delegação geral” de competência aventada pelo dr. Mauro.

A alínea c estabelece que os novos procedimentos propostos para uso no Brasil, já em uso corrente no exterior (o que não é o caso), devem ser avaliados, cabendo ao CFM definir a capacitação médica necessária, o que mais uma vez contraria a delegação geral de competência.

Os demais tópicos regulamentam a pesquisa de novos medicamentos, nos termos da Resolução 466/12 do CNS, e é fato incontroverso que não foi feito nenhum experimento obedecendo tais normas. Merece menção o Tópico IV, que determina os requisitos para o reconhecimento de procedimentos de uso corrente no exterior, de modo que, se fosse o caso, ainda que considerássemos os artigos a que alude o presidente como veiculadores de procedimentos de uso corrente no exterior, o CFM teria obrigatoriamente de se manifestar.

Em nenhum ponto dessa resolução se encontra dispositivo que permita a delegação geral de competência aludida pelo dr. Mauro nem o correspondente grau de discricionariedade médica por ele admitida, sob o velho mantra da “autonomia médica” ou do novel “experiência observacional”.

Se admitida a legitimidade dos argumentos do presidente do CFM, estaria criada uma situação estranhíssima. Um dos casos, amplamente veiculado pela mídia, é o de um médico que sofreu insuflação retal de ozônio. A pergunta que cabe é se a equipe médica que atuou será submetida a apuração ética pela utilização de ozônio ou se o excepcionamento concedido ao uso do kit covid se comunicaria à ozonioterapia no caso.

De tudo, o que fica é a lastimável sensação de que os argumentos do dr. Mauro constituem uma tentativa de justificar o injustificável.

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SÃO, RESPECTIVAMENTE, MÉDICO NEUROCIRURGIÃO, ADVOGADO E BACHAREL EM FILOSOFIA PELA USP; MÉDICO E BIOETICISTA; E MÉDICA CARDIOLOGISTA E INTERNISTA

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