Opinião|Clima, combustíveis fósseis e florestas – incógnitas de uma equação inacabada


O Brasil, mesmo sem abrir mão de suas reservas de petróleo e gás, pode se tornar um país positivo em carbono, em biodiversidade e em serviços ecossistêmicos

Por Oscar Graça Couto

É clara e enfática a mensagem da ciência quanto à crise climática em curso: não há tempo a perder. Cientistas e agências internacionais advertem: coletivamente, devemos reduzir de modo drástico a produção e o consumo de combustíveis fósseis. É que se atribui à queima de carvão, petróleo e gás natural – secundada pelo desmatamento – papel relevante na ocorrência, hoje mesmo, em todo o planeta, de episódios climáticos simultâneos, devastadores e letais. O futuro ameaçador antevisto pela ciência já desembarcou no presente. São as atuais e não só as futuras gerações que testemunham e testemunharão o que já se tem visto: secas, incêndios, inundações e furacões em gravidade e escala inauditas. Sob certa perspectiva, vivemos – todos nós – em Porto Alegre ou, apenas no Brasil, nos estimados 1.900 municípios em situação de risco climático (Centro Nacional de Monitoramento de Alertas de Desastres Naturais, 2019, estudo em atualização). Bem poderíamos estar dentre as cerca de 21 milhões de pessoas que anualmente, desde 2008, são obrigadas a se deslocar em razão de eventos climáticos extremos (Global health, climate change and migration: the need for recognition of ‘climate refugees’).

Nesse cenário, não deixa de ser uma ironia, trágica e desafiadora, que justo agora, quando medidas corretas se fazem mais necessárias e urgentes, se constatem movimentos na contramão do que deveria ser óbvio para todos – mas não é. É nesse contexto que o Legislativo brasileiro tem se esmerado em reduzir o rigor ou impedir a edição de normas que visam a promover o “meio ambiente ecologicamente equilibrado”, como determina a Constituição federal.

É também ante esse quadro que, em 2023, assistiu-se à perda 3,7 milhões de hectares de florestas tropicais primárias no mundo, ao ritmo de dez campos de futebol por minuto (Global Forest Watch – 2024, do World Resources Institute), e ao branqueamento letal de corais nos oceanos. É igualmente nesse cenário que, a despeito dos esforços de transição energética, o ano passado foi o de maior consumo de carvão da História, três vezes o que foi na década de 1960. De 2008 para cá, a produção de petróleo quase triplicou nos EUA e, no mundo, não decresceu e, mais importante, ao menos nas próximas duas décadas tenderia a continuar a desempenhar papel relevante, para o bem e para o mal, na economia planetária.

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Em que pese esse cenário, em disputas eleitorais, não importa o perfil ideológico do candidato, uma pergunta a ser respondida é: a despeito do quanto isso possa significar em termos de impacto climático, o Brasil abrirá mão de explorar os recursos de petróleo e gás (e mesmo carvão) de que dispõe? Deixará de buscar expandir suas reservas? Renunciará aos recursos financeiros provenientes da exploração de petróleo, que se chega a estimar em R$ 50 trilhões nos próximos 35 anos? Lembre-se de que, apenas em tributos e dividendos relativos a 2023, somente a Petrobras recolheu aos cofres públicos cerca de R$ 274 bilhões, bem mais do que o governo orça para o Programa Bolsa Família em 2024 (R$ 170 bilhões) e volume mais de 70 vezes maior do que os recursos destinados ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (R$ 3,72 bilhões).

A julgar pela experiência, a resposta a essas indagações parece ser não. Sob muitos ângulos, é justa e necessária a objeção ao aumento ou mesmo à manutenção do uso de combustíveis fósseis, rumo que a ciência qualifica como desastroso. Mas se mesmo os países mais ricos do planeta não deixaram de explorar e, mais, expandir suas próprias reservas de petróleo e gás, seria o Brasil, então, que faria isso?

Levada a cabo na base do “tudo ou nada”, essa luta louvável e meritória de ambientalistas mudará o rumo do País nesse ponto?

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De modo surpreendente, o País sequer discute, ao menos abertamente, a questão, como deveria estar fazendo. A exploração da chamada Margem Equatorial e outras fronteiras sedimentares suscita conflitos internos mais ou menos velados no âmbito do governo – e nem se fale de sua base parlamentar –, mas não existe e tampouco se propõe um diálogo aberto, informado pelas ciências climático-ambientais, sociais e econômicas sobre o assunto.

O fato é que se, por quaisquer motivos, o País optar por explorar e ampliar seus recursos fósseis – o que não parece improvável –, caberá então estabelecer como fazer isso sem agravar uma crise da qual somos todos vítimas.

Um caminho – talvez insuficiente, paliativo, mas quase à mão – seria o de compensar as emissões de gases de efeito estufa que a empreitada fóssil é capaz de gerar. E poucos países dispõem dos meios para fazer isso. Alguns fatores nos distinguem. O Brasil conta com florestas, biodiversidade e áreas degradadas (todas em proporções colossais); possui instituições reputadas, como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe); e pode se valer de cientistas com sólida produção científica na área. Esses fatores nos permitem implementar, a custos competitivos, as chamadas soluções baseadas na natureza. Manter preservadas as florestas existentes e recuperar, com o plantio biodiverso de espécies nativas, os milhões de hectares de áreas rurais esgotadas e mangues degradados, poderá render ao País, conforme o jargão econômico, novos índices de produtividade dos serviços ecossistêmicos e dividendos ecológicos imensuráveis – além de trabalho, renda e educação para grupos sociais desfavorecidos.

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A troca de “óleo por floresta (e outras formas de vegetação)” é uma opção imperfeita, e ninguém em sã consciência desconsidera isso. Mas, atualmente, em ambiente polarizado, desnorteado por fake news e marcado pela incapacidade de diálogo, talvez seja o que se poderá fazer. Climatologistas podem ter razão ao negar a eficácia dessa permuta, mas, metaforicamente, lidam com fumantes com os mais graves sintomas, e que, mesmo assim, por vício, prazer ou ignorância, não abrem mão de fumar. E tragicamente, sob o espectro da volta de Donald Trump, eles podem ser uma maioria, indiferente ao sofrimento que causam ao planeta e a centenas de milhões de pessoas.

Abrir mão do bom (e, mais do que isso, do necessário) em favor do imperfeito, mas possível, pode ser um sinal de dolorosa capitulação. A menos que seja a alternativa viável, e da qual se possa tirar proveito.

Exploradas suas possibilidades nesse campo, o Brasil, mesmo sem abrir mão de suas reservas de petróleo e gás, pode se tornar um país positivo em carbono, em biodiversidade e em serviços ecossistêmicos. Pode-se, pois, cogitar de um entendimento possível, com a perspectiva de resultados socioambientais concretos.

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Afora essa hipótese (e mesmo a despeito dela), a sociedade civil, por si ou pelos Ministério e Defensoria Públicos, em favor da atual e das futuras gerações, provocará a intervenção do Judiciário, inclusive sob o prisma dos direitos humanos. Veremos, então, crescer exponencialmente números que já impressionam: segundo dados do Supremo Tribunal Federal (STF), até abril de 2024, contavam-se no mundo 3.279 litígios climáticos, 82 dos quais no Brasil. Talvez haja ainda meios de evitar essa proliferação de ações judiciais, que “terceirizará” uma solução que ainda está ao alcance das principais partes interessadas: governo, sociedade civil e setor produtivo. O tempo que precede a COP-30, no Pará, pode ser a hora e a vez dessa oportunidade.

*

ADVOGADO, É PROFESSOR DE DIREITO AMBIENTAL DA PUC-RIO

É clara e enfática a mensagem da ciência quanto à crise climática em curso: não há tempo a perder. Cientistas e agências internacionais advertem: coletivamente, devemos reduzir de modo drástico a produção e o consumo de combustíveis fósseis. É que se atribui à queima de carvão, petróleo e gás natural – secundada pelo desmatamento – papel relevante na ocorrência, hoje mesmo, em todo o planeta, de episódios climáticos simultâneos, devastadores e letais. O futuro ameaçador antevisto pela ciência já desembarcou no presente. São as atuais e não só as futuras gerações que testemunham e testemunharão o que já se tem visto: secas, incêndios, inundações e furacões em gravidade e escala inauditas. Sob certa perspectiva, vivemos – todos nós – em Porto Alegre ou, apenas no Brasil, nos estimados 1.900 municípios em situação de risco climático (Centro Nacional de Monitoramento de Alertas de Desastres Naturais, 2019, estudo em atualização). Bem poderíamos estar dentre as cerca de 21 milhões de pessoas que anualmente, desde 2008, são obrigadas a se deslocar em razão de eventos climáticos extremos (Global health, climate change and migration: the need for recognition of ‘climate refugees’).

Nesse cenário, não deixa de ser uma ironia, trágica e desafiadora, que justo agora, quando medidas corretas se fazem mais necessárias e urgentes, se constatem movimentos na contramão do que deveria ser óbvio para todos – mas não é. É nesse contexto que o Legislativo brasileiro tem se esmerado em reduzir o rigor ou impedir a edição de normas que visam a promover o “meio ambiente ecologicamente equilibrado”, como determina a Constituição federal.

É também ante esse quadro que, em 2023, assistiu-se à perda 3,7 milhões de hectares de florestas tropicais primárias no mundo, ao ritmo de dez campos de futebol por minuto (Global Forest Watch – 2024, do World Resources Institute), e ao branqueamento letal de corais nos oceanos. É igualmente nesse cenário que, a despeito dos esforços de transição energética, o ano passado foi o de maior consumo de carvão da História, três vezes o que foi na década de 1960. De 2008 para cá, a produção de petróleo quase triplicou nos EUA e, no mundo, não decresceu e, mais importante, ao menos nas próximas duas décadas tenderia a continuar a desempenhar papel relevante, para o bem e para o mal, na economia planetária.

Em que pese esse cenário, em disputas eleitorais, não importa o perfil ideológico do candidato, uma pergunta a ser respondida é: a despeito do quanto isso possa significar em termos de impacto climático, o Brasil abrirá mão de explorar os recursos de petróleo e gás (e mesmo carvão) de que dispõe? Deixará de buscar expandir suas reservas? Renunciará aos recursos financeiros provenientes da exploração de petróleo, que se chega a estimar em R$ 50 trilhões nos próximos 35 anos? Lembre-se de que, apenas em tributos e dividendos relativos a 2023, somente a Petrobras recolheu aos cofres públicos cerca de R$ 274 bilhões, bem mais do que o governo orça para o Programa Bolsa Família em 2024 (R$ 170 bilhões) e volume mais de 70 vezes maior do que os recursos destinados ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (R$ 3,72 bilhões).

A julgar pela experiência, a resposta a essas indagações parece ser não. Sob muitos ângulos, é justa e necessária a objeção ao aumento ou mesmo à manutenção do uso de combustíveis fósseis, rumo que a ciência qualifica como desastroso. Mas se mesmo os países mais ricos do planeta não deixaram de explorar e, mais, expandir suas próprias reservas de petróleo e gás, seria o Brasil, então, que faria isso?

Levada a cabo na base do “tudo ou nada”, essa luta louvável e meritória de ambientalistas mudará o rumo do País nesse ponto?

De modo surpreendente, o País sequer discute, ao menos abertamente, a questão, como deveria estar fazendo. A exploração da chamada Margem Equatorial e outras fronteiras sedimentares suscita conflitos internos mais ou menos velados no âmbito do governo – e nem se fale de sua base parlamentar –, mas não existe e tampouco se propõe um diálogo aberto, informado pelas ciências climático-ambientais, sociais e econômicas sobre o assunto.

O fato é que se, por quaisquer motivos, o País optar por explorar e ampliar seus recursos fósseis – o que não parece improvável –, caberá então estabelecer como fazer isso sem agravar uma crise da qual somos todos vítimas.

Um caminho – talvez insuficiente, paliativo, mas quase à mão – seria o de compensar as emissões de gases de efeito estufa que a empreitada fóssil é capaz de gerar. E poucos países dispõem dos meios para fazer isso. Alguns fatores nos distinguem. O Brasil conta com florestas, biodiversidade e áreas degradadas (todas em proporções colossais); possui instituições reputadas, como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe); e pode se valer de cientistas com sólida produção científica na área. Esses fatores nos permitem implementar, a custos competitivos, as chamadas soluções baseadas na natureza. Manter preservadas as florestas existentes e recuperar, com o plantio biodiverso de espécies nativas, os milhões de hectares de áreas rurais esgotadas e mangues degradados, poderá render ao País, conforme o jargão econômico, novos índices de produtividade dos serviços ecossistêmicos e dividendos ecológicos imensuráveis – além de trabalho, renda e educação para grupos sociais desfavorecidos.

A troca de “óleo por floresta (e outras formas de vegetação)” é uma opção imperfeita, e ninguém em sã consciência desconsidera isso. Mas, atualmente, em ambiente polarizado, desnorteado por fake news e marcado pela incapacidade de diálogo, talvez seja o que se poderá fazer. Climatologistas podem ter razão ao negar a eficácia dessa permuta, mas, metaforicamente, lidam com fumantes com os mais graves sintomas, e que, mesmo assim, por vício, prazer ou ignorância, não abrem mão de fumar. E tragicamente, sob o espectro da volta de Donald Trump, eles podem ser uma maioria, indiferente ao sofrimento que causam ao planeta e a centenas de milhões de pessoas.

Abrir mão do bom (e, mais do que isso, do necessário) em favor do imperfeito, mas possível, pode ser um sinal de dolorosa capitulação. A menos que seja a alternativa viável, e da qual se possa tirar proveito.

Exploradas suas possibilidades nesse campo, o Brasil, mesmo sem abrir mão de suas reservas de petróleo e gás, pode se tornar um país positivo em carbono, em biodiversidade e em serviços ecossistêmicos. Pode-se, pois, cogitar de um entendimento possível, com a perspectiva de resultados socioambientais concretos.

Afora essa hipótese (e mesmo a despeito dela), a sociedade civil, por si ou pelos Ministério e Defensoria Públicos, em favor da atual e das futuras gerações, provocará a intervenção do Judiciário, inclusive sob o prisma dos direitos humanos. Veremos, então, crescer exponencialmente números que já impressionam: segundo dados do Supremo Tribunal Federal (STF), até abril de 2024, contavam-se no mundo 3.279 litígios climáticos, 82 dos quais no Brasil. Talvez haja ainda meios de evitar essa proliferação de ações judiciais, que “terceirizará” uma solução que ainda está ao alcance das principais partes interessadas: governo, sociedade civil e setor produtivo. O tempo que precede a COP-30, no Pará, pode ser a hora e a vez dessa oportunidade.

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ADVOGADO, É PROFESSOR DE DIREITO AMBIENTAL DA PUC-RIO

É clara e enfática a mensagem da ciência quanto à crise climática em curso: não há tempo a perder. Cientistas e agências internacionais advertem: coletivamente, devemos reduzir de modo drástico a produção e o consumo de combustíveis fósseis. É que se atribui à queima de carvão, petróleo e gás natural – secundada pelo desmatamento – papel relevante na ocorrência, hoje mesmo, em todo o planeta, de episódios climáticos simultâneos, devastadores e letais. O futuro ameaçador antevisto pela ciência já desembarcou no presente. São as atuais e não só as futuras gerações que testemunham e testemunharão o que já se tem visto: secas, incêndios, inundações e furacões em gravidade e escala inauditas. Sob certa perspectiva, vivemos – todos nós – em Porto Alegre ou, apenas no Brasil, nos estimados 1.900 municípios em situação de risco climático (Centro Nacional de Monitoramento de Alertas de Desastres Naturais, 2019, estudo em atualização). Bem poderíamos estar dentre as cerca de 21 milhões de pessoas que anualmente, desde 2008, são obrigadas a se deslocar em razão de eventos climáticos extremos (Global health, climate change and migration: the need for recognition of ‘climate refugees’).

Nesse cenário, não deixa de ser uma ironia, trágica e desafiadora, que justo agora, quando medidas corretas se fazem mais necessárias e urgentes, se constatem movimentos na contramão do que deveria ser óbvio para todos – mas não é. É nesse contexto que o Legislativo brasileiro tem se esmerado em reduzir o rigor ou impedir a edição de normas que visam a promover o “meio ambiente ecologicamente equilibrado”, como determina a Constituição federal.

É também ante esse quadro que, em 2023, assistiu-se à perda 3,7 milhões de hectares de florestas tropicais primárias no mundo, ao ritmo de dez campos de futebol por minuto (Global Forest Watch – 2024, do World Resources Institute), e ao branqueamento letal de corais nos oceanos. É igualmente nesse cenário que, a despeito dos esforços de transição energética, o ano passado foi o de maior consumo de carvão da História, três vezes o que foi na década de 1960. De 2008 para cá, a produção de petróleo quase triplicou nos EUA e, no mundo, não decresceu e, mais importante, ao menos nas próximas duas décadas tenderia a continuar a desempenhar papel relevante, para o bem e para o mal, na economia planetária.

Em que pese esse cenário, em disputas eleitorais, não importa o perfil ideológico do candidato, uma pergunta a ser respondida é: a despeito do quanto isso possa significar em termos de impacto climático, o Brasil abrirá mão de explorar os recursos de petróleo e gás (e mesmo carvão) de que dispõe? Deixará de buscar expandir suas reservas? Renunciará aos recursos financeiros provenientes da exploração de petróleo, que se chega a estimar em R$ 50 trilhões nos próximos 35 anos? Lembre-se de que, apenas em tributos e dividendos relativos a 2023, somente a Petrobras recolheu aos cofres públicos cerca de R$ 274 bilhões, bem mais do que o governo orça para o Programa Bolsa Família em 2024 (R$ 170 bilhões) e volume mais de 70 vezes maior do que os recursos destinados ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (R$ 3,72 bilhões).

A julgar pela experiência, a resposta a essas indagações parece ser não. Sob muitos ângulos, é justa e necessária a objeção ao aumento ou mesmo à manutenção do uso de combustíveis fósseis, rumo que a ciência qualifica como desastroso. Mas se mesmo os países mais ricos do planeta não deixaram de explorar e, mais, expandir suas próprias reservas de petróleo e gás, seria o Brasil, então, que faria isso?

Levada a cabo na base do “tudo ou nada”, essa luta louvável e meritória de ambientalistas mudará o rumo do País nesse ponto?

De modo surpreendente, o País sequer discute, ao menos abertamente, a questão, como deveria estar fazendo. A exploração da chamada Margem Equatorial e outras fronteiras sedimentares suscita conflitos internos mais ou menos velados no âmbito do governo – e nem se fale de sua base parlamentar –, mas não existe e tampouco se propõe um diálogo aberto, informado pelas ciências climático-ambientais, sociais e econômicas sobre o assunto.

O fato é que se, por quaisquer motivos, o País optar por explorar e ampliar seus recursos fósseis – o que não parece improvável –, caberá então estabelecer como fazer isso sem agravar uma crise da qual somos todos vítimas.

Um caminho – talvez insuficiente, paliativo, mas quase à mão – seria o de compensar as emissões de gases de efeito estufa que a empreitada fóssil é capaz de gerar. E poucos países dispõem dos meios para fazer isso. Alguns fatores nos distinguem. O Brasil conta com florestas, biodiversidade e áreas degradadas (todas em proporções colossais); possui instituições reputadas, como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe); e pode se valer de cientistas com sólida produção científica na área. Esses fatores nos permitem implementar, a custos competitivos, as chamadas soluções baseadas na natureza. Manter preservadas as florestas existentes e recuperar, com o plantio biodiverso de espécies nativas, os milhões de hectares de áreas rurais esgotadas e mangues degradados, poderá render ao País, conforme o jargão econômico, novos índices de produtividade dos serviços ecossistêmicos e dividendos ecológicos imensuráveis – além de trabalho, renda e educação para grupos sociais desfavorecidos.

A troca de “óleo por floresta (e outras formas de vegetação)” é uma opção imperfeita, e ninguém em sã consciência desconsidera isso. Mas, atualmente, em ambiente polarizado, desnorteado por fake news e marcado pela incapacidade de diálogo, talvez seja o que se poderá fazer. Climatologistas podem ter razão ao negar a eficácia dessa permuta, mas, metaforicamente, lidam com fumantes com os mais graves sintomas, e que, mesmo assim, por vício, prazer ou ignorância, não abrem mão de fumar. E tragicamente, sob o espectro da volta de Donald Trump, eles podem ser uma maioria, indiferente ao sofrimento que causam ao planeta e a centenas de milhões de pessoas.

Abrir mão do bom (e, mais do que isso, do necessário) em favor do imperfeito, mas possível, pode ser um sinal de dolorosa capitulação. A menos que seja a alternativa viável, e da qual se possa tirar proveito.

Exploradas suas possibilidades nesse campo, o Brasil, mesmo sem abrir mão de suas reservas de petróleo e gás, pode se tornar um país positivo em carbono, em biodiversidade e em serviços ecossistêmicos. Pode-se, pois, cogitar de um entendimento possível, com a perspectiva de resultados socioambientais concretos.

Afora essa hipótese (e mesmo a despeito dela), a sociedade civil, por si ou pelos Ministério e Defensoria Públicos, em favor da atual e das futuras gerações, provocará a intervenção do Judiciário, inclusive sob o prisma dos direitos humanos. Veremos, então, crescer exponencialmente números que já impressionam: segundo dados do Supremo Tribunal Federal (STF), até abril de 2024, contavam-se no mundo 3.279 litígios climáticos, 82 dos quais no Brasil. Talvez haja ainda meios de evitar essa proliferação de ações judiciais, que “terceirizará” uma solução que ainda está ao alcance das principais partes interessadas: governo, sociedade civil e setor produtivo. O tempo que precede a COP-30, no Pará, pode ser a hora e a vez dessa oportunidade.

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ADVOGADO, É PROFESSOR DE DIREITO AMBIENTAL DA PUC-RIO

É clara e enfática a mensagem da ciência quanto à crise climática em curso: não há tempo a perder. Cientistas e agências internacionais advertem: coletivamente, devemos reduzir de modo drástico a produção e o consumo de combustíveis fósseis. É que se atribui à queima de carvão, petróleo e gás natural – secundada pelo desmatamento – papel relevante na ocorrência, hoje mesmo, em todo o planeta, de episódios climáticos simultâneos, devastadores e letais. O futuro ameaçador antevisto pela ciência já desembarcou no presente. São as atuais e não só as futuras gerações que testemunham e testemunharão o que já se tem visto: secas, incêndios, inundações e furacões em gravidade e escala inauditas. Sob certa perspectiva, vivemos – todos nós – em Porto Alegre ou, apenas no Brasil, nos estimados 1.900 municípios em situação de risco climático (Centro Nacional de Monitoramento de Alertas de Desastres Naturais, 2019, estudo em atualização). Bem poderíamos estar dentre as cerca de 21 milhões de pessoas que anualmente, desde 2008, são obrigadas a se deslocar em razão de eventos climáticos extremos (Global health, climate change and migration: the need for recognition of ‘climate refugees’).

Nesse cenário, não deixa de ser uma ironia, trágica e desafiadora, que justo agora, quando medidas corretas se fazem mais necessárias e urgentes, se constatem movimentos na contramão do que deveria ser óbvio para todos – mas não é. É nesse contexto que o Legislativo brasileiro tem se esmerado em reduzir o rigor ou impedir a edição de normas que visam a promover o “meio ambiente ecologicamente equilibrado”, como determina a Constituição federal.

É também ante esse quadro que, em 2023, assistiu-se à perda 3,7 milhões de hectares de florestas tropicais primárias no mundo, ao ritmo de dez campos de futebol por minuto (Global Forest Watch – 2024, do World Resources Institute), e ao branqueamento letal de corais nos oceanos. É igualmente nesse cenário que, a despeito dos esforços de transição energética, o ano passado foi o de maior consumo de carvão da História, três vezes o que foi na década de 1960. De 2008 para cá, a produção de petróleo quase triplicou nos EUA e, no mundo, não decresceu e, mais importante, ao menos nas próximas duas décadas tenderia a continuar a desempenhar papel relevante, para o bem e para o mal, na economia planetária.

Em que pese esse cenário, em disputas eleitorais, não importa o perfil ideológico do candidato, uma pergunta a ser respondida é: a despeito do quanto isso possa significar em termos de impacto climático, o Brasil abrirá mão de explorar os recursos de petróleo e gás (e mesmo carvão) de que dispõe? Deixará de buscar expandir suas reservas? Renunciará aos recursos financeiros provenientes da exploração de petróleo, que se chega a estimar em R$ 50 trilhões nos próximos 35 anos? Lembre-se de que, apenas em tributos e dividendos relativos a 2023, somente a Petrobras recolheu aos cofres públicos cerca de R$ 274 bilhões, bem mais do que o governo orça para o Programa Bolsa Família em 2024 (R$ 170 bilhões) e volume mais de 70 vezes maior do que os recursos destinados ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (R$ 3,72 bilhões).

A julgar pela experiência, a resposta a essas indagações parece ser não. Sob muitos ângulos, é justa e necessária a objeção ao aumento ou mesmo à manutenção do uso de combustíveis fósseis, rumo que a ciência qualifica como desastroso. Mas se mesmo os países mais ricos do planeta não deixaram de explorar e, mais, expandir suas próprias reservas de petróleo e gás, seria o Brasil, então, que faria isso?

Levada a cabo na base do “tudo ou nada”, essa luta louvável e meritória de ambientalistas mudará o rumo do País nesse ponto?

De modo surpreendente, o País sequer discute, ao menos abertamente, a questão, como deveria estar fazendo. A exploração da chamada Margem Equatorial e outras fronteiras sedimentares suscita conflitos internos mais ou menos velados no âmbito do governo – e nem se fale de sua base parlamentar –, mas não existe e tampouco se propõe um diálogo aberto, informado pelas ciências climático-ambientais, sociais e econômicas sobre o assunto.

O fato é que se, por quaisquer motivos, o País optar por explorar e ampliar seus recursos fósseis – o que não parece improvável –, caberá então estabelecer como fazer isso sem agravar uma crise da qual somos todos vítimas.

Um caminho – talvez insuficiente, paliativo, mas quase à mão – seria o de compensar as emissões de gases de efeito estufa que a empreitada fóssil é capaz de gerar. E poucos países dispõem dos meios para fazer isso. Alguns fatores nos distinguem. O Brasil conta com florestas, biodiversidade e áreas degradadas (todas em proporções colossais); possui instituições reputadas, como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe); e pode se valer de cientistas com sólida produção científica na área. Esses fatores nos permitem implementar, a custos competitivos, as chamadas soluções baseadas na natureza. Manter preservadas as florestas existentes e recuperar, com o plantio biodiverso de espécies nativas, os milhões de hectares de áreas rurais esgotadas e mangues degradados, poderá render ao País, conforme o jargão econômico, novos índices de produtividade dos serviços ecossistêmicos e dividendos ecológicos imensuráveis – além de trabalho, renda e educação para grupos sociais desfavorecidos.

A troca de “óleo por floresta (e outras formas de vegetação)” é uma opção imperfeita, e ninguém em sã consciência desconsidera isso. Mas, atualmente, em ambiente polarizado, desnorteado por fake news e marcado pela incapacidade de diálogo, talvez seja o que se poderá fazer. Climatologistas podem ter razão ao negar a eficácia dessa permuta, mas, metaforicamente, lidam com fumantes com os mais graves sintomas, e que, mesmo assim, por vício, prazer ou ignorância, não abrem mão de fumar. E tragicamente, sob o espectro da volta de Donald Trump, eles podem ser uma maioria, indiferente ao sofrimento que causam ao planeta e a centenas de milhões de pessoas.

Abrir mão do bom (e, mais do que isso, do necessário) em favor do imperfeito, mas possível, pode ser um sinal de dolorosa capitulação. A menos que seja a alternativa viável, e da qual se possa tirar proveito.

Exploradas suas possibilidades nesse campo, o Brasil, mesmo sem abrir mão de suas reservas de petróleo e gás, pode se tornar um país positivo em carbono, em biodiversidade e em serviços ecossistêmicos. Pode-se, pois, cogitar de um entendimento possível, com a perspectiva de resultados socioambientais concretos.

Afora essa hipótese (e mesmo a despeito dela), a sociedade civil, por si ou pelos Ministério e Defensoria Públicos, em favor da atual e das futuras gerações, provocará a intervenção do Judiciário, inclusive sob o prisma dos direitos humanos. Veremos, então, crescer exponencialmente números que já impressionam: segundo dados do Supremo Tribunal Federal (STF), até abril de 2024, contavam-se no mundo 3.279 litígios climáticos, 82 dos quais no Brasil. Talvez haja ainda meios de evitar essa proliferação de ações judiciais, que “terceirizará” uma solução que ainda está ao alcance das principais partes interessadas: governo, sociedade civil e setor produtivo. O tempo que precede a COP-30, no Pará, pode ser a hora e a vez dessa oportunidade.

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ADVOGADO, É PROFESSOR DE DIREITO AMBIENTAL DA PUC-RIO

Opinião por Oscar Graça Couto

Advogado, é professor de Direito Ambiental da PUC-Rio

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