Passei 19 dias no Centro de Terapia Intensiva (CTI) para tratamento de uma grave infecção por covid-19. Os momentos dramáticos dessa experiência me estimulam a comentar algumas percepções que fiz durante esse período de provação.
Inicialmente constatei que também no setor de assistência médico-hospitalar o Brasil está preparado para acompanhar a fronteira do desenvolvimento. O hospital que me atendeu estimula esse comentário.
Minha noção de finitude, natural aos 93 anos, foi exacerbada pelo sofrimento causado pela doença, aumentando a visão grande-angular que a longevidade lúcida de per si nos oferece. Percebi com mais nitidez o que realmente conta em nossas vidas, valorizando adicionalmente o amor para com as filhas, netos, amigos e colaboradores. Tinha razão Dante Alighieri: “L’amor che move il sole e l’altre stelle” (o amor que move o Sol e as outras estrelas).
Assim, comentarei a percepção de algumas iniciativas que nos permitem melhor viver o terceiro ato sob esse enfoque.
Devemos nos preparar para uma realidade inesperada. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a expectativa de vida média que era de 45,5 anos para os nascidos no Brasil em 1940 aumentou progressivamente para atingir 75,5 anos em 2022, ou seja, um acréscimo de quase seis meses por ano.
Dessa forma, a partir dos 60 anos, nos é oferecida uma segunda vida adulta, tornando inadequado o antigo conceito de que a partir dos 50 ou 60 anos entramos em declínio, perdendo progressivamente nossa criatividade e nossa capacidade de pensar. Pelo contrário, esse novo cenário nos oferece a oportunidade inédita de analisar nosso passado e perceber o quanto fomos influenciados por terceiros desde nosso nascimento. Podemos, assim, conferir novos matizes aos anos adicionais que nos são oferecidos, aperfeiçoando nossa capacidade de amar, pensar e produzir. Mais do que isso, permite reconciliarmo-nos com nós mesmos identificando o que realmente somos.
Entretanto, essa possibilidade nos confere uma enorme responsabilidade, uma vez que, principalmente no terceiro ato, nosso comportamento passa a ser um modelo para os mais jovens.
Devemos influir para que façam mais cedo essa avaliação retrospectiva que nós, mais velhos, somente tivemos a oportunidade de fazê-la aos 50/60 anos. Exercendo essa influência, estaremos sugerindo um atalho na sua trajetória de vida, antecipando um benefício ao qual nossa geração teve acesso somente no fim do seu caminho.
Entretanto, essa tarefa não é fácil. Para bem cumpri-la devemos aceitar e compreender o novo mundo em que vivem os jovens de hoje, com sua ânsia por liberdade e resistência a tudo e a todos que lhes pareçam restritivos.
Muito gratificante, porém, é perceber que, se conseguirmos mostrar-lhes esse atalho, seremos aceitos com afeto e respeito, estabelecendo, provavelmente pela primeira vez, um círculo virtuoso entre gerações com cultura e hábitos muito diferentes entre si.
Mais do que isso, ao fazê-lo, nós, longevos, estaremos justificando nossa prolongada permanência entre os mais jovens, ocupando um espaço que há pouco somente a eles pertencia.
A dificuldade respiratória consequente da covid-19 estimulou também uma nova visão retrospectiva de minha vida, da qual desejo comentar alguns aspectos.
Devemos valorizar a vida, vivendo cada um dos dias adicionais do terceiro ato como uma dádiva, sabendo que a muitos foram negados.
Aceitar como inevitável essa percepção de finitude e de solidão que permeia esse acréscimo, transformando-a em estímulo para criatividade.
Definir cuidadosamente nossos objetivos, se possível, de concretização distante. Estava certo Sêneca ao afirmar que não existem ventos favoráveis para o marinheiro que não sabe para onde vai.
Viver intensamente o presente, evitando, porém, a tendência atual de viajar para o futuro num trem-bala sem ver as paisagens que se sucedem ao longo do trajeto.
Tentar alcançar o máximo, lembrando, porém, o ditado: “When flying in intergalactic ecstasy, don’t forget your zip code”, ou seja, enquanto estivermos lutando pelo impossível, não esquecer nossas obrigações cotidianas.
Valorizar que o bom Deus criou nossa condição humana de forma muito generosa. Negando-nos a antevisão do futuro, fez com que fôssemos mais produtivos e desenvolvêssemos esperança, fé e pertinácia. Não saber se seremos ou não bem sucedidos confere um inigualável sabor de aventura ao nosso percurso. Sim!, aventura, cujo verdadeiro significado é a procura do desconhecido.
Saber que tudo o que fizermos terá muito mais valor se for permeado por amor, principalmente para nós médicos, uma vez que o atendimento com caridade representa a verdadeira meta de nossa profissão.
Valorizar o componente emocional de nossas vidas, que com o decorrer do tempo ganha diferentes matizes. Anos atrás, durante uma entrevista ao meu amigo jornalista Roberto D’Avila, disse que, se observarmos o pôr do Sol, veremos que nele aparecem as mesmas cores da aurora: vermelho, rosa, azul e branco – quem sabe com menos luz –, mas sempre desenhando um espetáculo maravilhoso.
Concluindo, cito o filósofo norte-americano Noam Chomsky, que, aos 95 anos, no fim de uma entrevista ao renomado jornalista Piers Morgan, afirmou: “Desejo ser lembrado pela frase ‘He did his best’”.
Eu também estou tentando fazer o meu melhor.
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PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, É MEMBRO DA ACADEMIA NACIONAL DE MEDICINA