O fim da guerra fria trouxe ao mundo, ao menos para alguns, a esperança de uma paz kantiana. Mas a realidade confrontou a esperança.
A ascensão da China e o surgimento de vários outros atores, tanto estatais quanto não estatais, vêm modificando o sistema internacional e o equilíbrio de poder.
Estamos num mundo multipolar. Por definição, é um mundo complexo, incerto, volátil e ambíguo. Os inúmeros conflitos, em tantos lugares e de intensidades distintas, certificam essas características. Mudanças virão neste novo contexto.
Elas ocorrerão no meio de três grandes desafios de alcance global: as mudanças climáticas, com suas consequências para a vida no planeta; o fim do paradigma fordista do trabalho, precarizando e diminuindo os empregos; e a disputa pela hegemonia política, entre a democracia e o “sistema chinês”.
Diante desse cenário, é incumbência da sociedade brasileira, em última instância, definir seu destino e o papel que o Brasil deve desempenhar no sistema internacional.
Acredito que o melhor caminho seria adotar a neutralidade em relação aos blocos de poder internacionais. Essa atitude de equidistância poderia permitir que o Brasil ganhasse credibilidade e confiança das outras nações, assumindo o papel de uma ponte entre países, ajudando na preservação da estabilidade mundial.
Ser neutro implica não ter alinhamentos automáticos, mantendo boas relações com todos os países, independentemente de ideologia política e sistemas de governo.
Para alcançar essa neutralidade, o País precisa, antes, ter condições de mantê-la. Caso contrário, seria uma neutralidade enviesada que coincidiria com os interesses de outras potências. Lembremo-nos do diálogo de Melos: os fortes fazem o que podem, e os fracos sofrem o que devem.
O Brasil tem dois grandes trunfos que poderiam ajudar a alcançar essa condição. Somos uma sociedade multicultural e, por enquanto, estamos longe dos focos de tensão internacional. Essas características são importantes, mas não são suficientes. Precisamos mobilizar todos os campos de poder do Estado para resistir a pressões de terceiros.
O PIB do Brasil tem oscilado nos últimos anos entre o 6.º e o 12.º lugares no mundo. Nossa produção de riqueza está ligada a serviços, ao agronegócio e à extração mineral. Participamos pouco das cadeias produtivas globais, especialmente as de alto valor agregado, que se beneficiam da tecnologia de ponta. Sem uma mudança de rumo nas estruturas produtivas, nosso futuro é inseguro.
A sociedade brasileira, em seus diplomas legais, atribui às Forças Armadas a missão de defender a Pátria, ou seja, impedir que forças de outros países ofendam nossa soberania com intenções ou ações.
Além do princípio primário de defender nosso território, valores, tradições e desejos justos e naturais de nosso povo, ao fazer defesa garantimos que a sociedade brasileira possa tomar suas decisões com total autonomia.
No entanto, os recursos disponíveis para as Forças Armadas não são suficientes para cumprir essa missão. Elas têm efetivos reduzidos, equipamentos insuficientes ou tecnologicamente defasados.
É um padrão internacional que os gastos militares girem em torno de 2% do PIB para manter um aparato de defesa razoável. De acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri), os dispêndios do Brasil com a área de defesa vêm diminuindo gradualmente e de forma contínua. Com a moeda estável do real, tornou-se mais fácil mensurar. A curva aponta um declínio de quase 44%. Em 1995, o orçamento destinava cerca de 1,86% do PIB, enquanto em 2022 foi de apenas 1,05%.
O porcentual acima claramente não atende às demandas do País e reflete o pouco interesse da sociedade brasileira pelo tema. Como soldado, é meu dever e minha missão alertar a sociedade: talvez, quando a necessidade se tornar premente, seja tarde demais para corrigir o descaso.
Poder tecnológico e militar diferenciado e autóctone possibilitará ao Brasil construir um escudo que suporte pressões internacionais. Isso só será alcançado com investimento e planejamento na área da indústria de defesa.
A dimensão, localização e postura do Brasil revelam-se importantes na construção da estabilidade no novo cenário que se desenha com o reposicionamento dos polos hegemônicos da geopolítica mundial. E, sem rodeios, essa estabilidade poderá exigir ação.
Quando a ultima ratio regum, o uso da força, se mostrar necessária em nome de nossos interesses, repito, só seremos ouvidos se a ameaça de acender a mecha do canhão, iniciando o rastilho de pólvora, estiver clara aos antagonistas.
Precisamos decidir o que queremos para o futuro, que legado deixaremos para nossos filhos e netos: ser um país fraco e vulnerável a pressões, onde a sociedade é arrastada para um lado ou outro de acordo com a vontade de outros países; ou ser uma sociedade que tenha autonomia decisória, que possa determinar seus próprios rumos e, com isso, manter um padrão de equidistância e neutralidade internacional que a capacite a ser até mesmo uma facilitadora da paz mundial.
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GENERAL DE EXÉRCITO, É CHEFE DO ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO