Opinião|Concorrência nos mercados digitais


Documento da Fazenda sugere reformas legais para aprovar uma abordagem ‘mais flexível’ a essa concorrência. Mas essa não é uma boa notícia

Por Mario Zúñiga

Em 10 de outubro de 2024, o Ministério da Fazenda do Brasil publicou seu relatório sobre os aspectos econômicos e competitivos das Plataformas Digitais (o “Relatório”), após um período de consulta pública. Vale a pena analisar cuidadosamente as conclusões do relatório e o contexto da consulta pública.

É justo reconhecer o Ministério da Fazenda por promover um debate aberto e considerar cuidadosamente as diversas opiniões apresentadas. A boa notícia sobre o documento é que ele reconhece que as plataformas digitais contribuem diretamente para o crescimento e a produtividade.

Outro ponto positivo é que o documento não recomenda a aprovação de uma regulação ex-ante, como a Lei Europeia dos Mercados Digitais. Mesmo que o documento não endosse uma regulação extensiva dos mercados digitais, ele adota algumas das suas premissas. Os mercados digitais apresentam “características especiais”, como network effects, mercados de múltiplos lados e uso intensivo de dados, que os tornam propensos ao monopólio. Mercados onde “o vencedor leva tudo”, segundo a narrativa. Essas características são reais, mas, embora de fato ofereçam algumas vantagens aos incumbentes, não constituem barreiras intransponíveis à entrada. Evidências empíricas sugerem que a concorrência é possível e, em alguns casos, é realmente muito intensa nesses mercados.

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Seguindo essas (discutíveis) premissas, o documento sugere reformas legais para aprovar uma abordagem “mais flexível”, um regime híbrido semelhante às regras já existentes no Japão, na Alemanha e ao Digital Markets Competition Consumers Act (DMCCA) do Reino Unido.

Essa não é uma boa notícia. Em relação à regulamentação ex-ante, essa abordagem “mais flexível” parece melhor no sentido de que, supostamente, incorporaria mais informações sobre danos específicos à concorrência e aos consumidores antes de intervir. No entanto, essa abordagem também envolve alguns riscos. As agências e autoridades de concorrência que a administram teriam ampla discricionariedade para impor remédios comportamentais e estruturais amplos, com padrões menos rigorosos. Não seria necessário provar condutas anticoncorrenciais específicas ou danos específicos à concorrência e aos consumidores; e seria suficiente identificar de forma geral um “efeito adverso sobre a concorrência” ou “barreiras à concorrência”.

A Comissão de Concorrência da África do Sul, por exemplo, recomendou em 2023, após sua Investigação de Mercado das Plataformas de Intermediação Online, que empresas de e-commerce “separem sua divisão de varejo de suas operações de marketplace”. Esse tipo de remédio estrutural é mais razoável para mercados com características de monopólio natural (como distribuição de água ou eletricidade) do que para o mercado de e-commerce, altamente competitivo. De forma semelhante, no México, uma unidade de investigação de mercado da Comissão Federal de Concorrência Econômica (Cofece) recomendou que a Amazon e o Mercado Livre desagreguem seus serviços de streaming e tornem suas plataformas “interoperáveis” com serviços logísticos de terceiros. Esses remédios poderiam prejudicar os consumidores, em vez de beneficiá-los, pois proibiriam integrações que, em geral, significam preços mais baixos e melhor distribuição.

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Esse alto grau de discricionariedade não é uma falha menor, especialmente em países sem um histórico exemplar de Estado de Direito (como ocorre na América Latina).

A aplicação do direito da concorrência “tradicional” (proibição de abuso de posição dominante com efeitos de exclusão) é, reconhecidamente, mais lenta e difícil para as agências. Isso ocorre porque elas precisam comprovar a posição dominante (o que implica a definição de mercados relevantes) e, em seguida, a presença de conduta anticompetitiva que prejudique consumidores e a concorrência.

As agências de concorrência e os tribunais, de modo geral, deveriam contar com mais recursos, e procedimentos mais rápidos, para julgar casos antes que as estruturas e dinâmicas de mercado mudem, tornando qualquer remédio potencial ineficaz. No entanto, a complexidade dos casos de abuso de posição dominante traz alguns benefícios: a definição de mercados relevantes e a avaliação de posições dominantes funcionam como filtros que permitem às agências alocar melhor seus recursos e intervir apenas em casos em que as empresas têm uma chance real de prejudicar a concorrência.

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A análise de custo-benefício realizada para determinar se uma prática comercial é realmente anticompetitiva permite que as agências separem o joio do trigo e intervenham apenas contra condutas que prejudicam os consumidores. Remédios amplos, por outro lado, acabam por capturar condutas que beneficiam os consumidores.

Em resumo, a legislação antitruste é mais flexível e precisa do que a chamada estratégia “mais flexível.” Acredito que vale a pena dar-lhe uma outra chance antes de seguir por outro caminho.

*

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SENIOR SCHOLAR NO INTERNATIONAL CENTER FOR LAW & ECONOMICS

Em 10 de outubro de 2024, o Ministério da Fazenda do Brasil publicou seu relatório sobre os aspectos econômicos e competitivos das Plataformas Digitais (o “Relatório”), após um período de consulta pública. Vale a pena analisar cuidadosamente as conclusões do relatório e o contexto da consulta pública.

É justo reconhecer o Ministério da Fazenda por promover um debate aberto e considerar cuidadosamente as diversas opiniões apresentadas. A boa notícia sobre o documento é que ele reconhece que as plataformas digitais contribuem diretamente para o crescimento e a produtividade.

Outro ponto positivo é que o documento não recomenda a aprovação de uma regulação ex-ante, como a Lei Europeia dos Mercados Digitais. Mesmo que o documento não endosse uma regulação extensiva dos mercados digitais, ele adota algumas das suas premissas. Os mercados digitais apresentam “características especiais”, como network effects, mercados de múltiplos lados e uso intensivo de dados, que os tornam propensos ao monopólio. Mercados onde “o vencedor leva tudo”, segundo a narrativa. Essas características são reais, mas, embora de fato ofereçam algumas vantagens aos incumbentes, não constituem barreiras intransponíveis à entrada. Evidências empíricas sugerem que a concorrência é possível e, em alguns casos, é realmente muito intensa nesses mercados.

Seguindo essas (discutíveis) premissas, o documento sugere reformas legais para aprovar uma abordagem “mais flexível”, um regime híbrido semelhante às regras já existentes no Japão, na Alemanha e ao Digital Markets Competition Consumers Act (DMCCA) do Reino Unido.

Essa não é uma boa notícia. Em relação à regulamentação ex-ante, essa abordagem “mais flexível” parece melhor no sentido de que, supostamente, incorporaria mais informações sobre danos específicos à concorrência e aos consumidores antes de intervir. No entanto, essa abordagem também envolve alguns riscos. As agências e autoridades de concorrência que a administram teriam ampla discricionariedade para impor remédios comportamentais e estruturais amplos, com padrões menos rigorosos. Não seria necessário provar condutas anticoncorrenciais específicas ou danos específicos à concorrência e aos consumidores; e seria suficiente identificar de forma geral um “efeito adverso sobre a concorrência” ou “barreiras à concorrência”.

A Comissão de Concorrência da África do Sul, por exemplo, recomendou em 2023, após sua Investigação de Mercado das Plataformas de Intermediação Online, que empresas de e-commerce “separem sua divisão de varejo de suas operações de marketplace”. Esse tipo de remédio estrutural é mais razoável para mercados com características de monopólio natural (como distribuição de água ou eletricidade) do que para o mercado de e-commerce, altamente competitivo. De forma semelhante, no México, uma unidade de investigação de mercado da Comissão Federal de Concorrência Econômica (Cofece) recomendou que a Amazon e o Mercado Livre desagreguem seus serviços de streaming e tornem suas plataformas “interoperáveis” com serviços logísticos de terceiros. Esses remédios poderiam prejudicar os consumidores, em vez de beneficiá-los, pois proibiriam integrações que, em geral, significam preços mais baixos e melhor distribuição.

Esse alto grau de discricionariedade não é uma falha menor, especialmente em países sem um histórico exemplar de Estado de Direito (como ocorre na América Latina).

A aplicação do direito da concorrência “tradicional” (proibição de abuso de posição dominante com efeitos de exclusão) é, reconhecidamente, mais lenta e difícil para as agências. Isso ocorre porque elas precisam comprovar a posição dominante (o que implica a definição de mercados relevantes) e, em seguida, a presença de conduta anticompetitiva que prejudique consumidores e a concorrência.

As agências de concorrência e os tribunais, de modo geral, deveriam contar com mais recursos, e procedimentos mais rápidos, para julgar casos antes que as estruturas e dinâmicas de mercado mudem, tornando qualquer remédio potencial ineficaz. No entanto, a complexidade dos casos de abuso de posição dominante traz alguns benefícios: a definição de mercados relevantes e a avaliação de posições dominantes funcionam como filtros que permitem às agências alocar melhor seus recursos e intervir apenas em casos em que as empresas têm uma chance real de prejudicar a concorrência.

A análise de custo-benefício realizada para determinar se uma prática comercial é realmente anticompetitiva permite que as agências separem o joio do trigo e intervenham apenas contra condutas que prejudicam os consumidores. Remédios amplos, por outro lado, acabam por capturar condutas que beneficiam os consumidores.

Em resumo, a legislação antitruste é mais flexível e precisa do que a chamada estratégia “mais flexível.” Acredito que vale a pena dar-lhe uma outra chance antes de seguir por outro caminho.

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Em 10 de outubro de 2024, o Ministério da Fazenda do Brasil publicou seu relatório sobre os aspectos econômicos e competitivos das Plataformas Digitais (o “Relatório”), após um período de consulta pública. Vale a pena analisar cuidadosamente as conclusões do relatório e o contexto da consulta pública.

É justo reconhecer o Ministério da Fazenda por promover um debate aberto e considerar cuidadosamente as diversas opiniões apresentadas. A boa notícia sobre o documento é que ele reconhece que as plataformas digitais contribuem diretamente para o crescimento e a produtividade.

Outro ponto positivo é que o documento não recomenda a aprovação de uma regulação ex-ante, como a Lei Europeia dos Mercados Digitais. Mesmo que o documento não endosse uma regulação extensiva dos mercados digitais, ele adota algumas das suas premissas. Os mercados digitais apresentam “características especiais”, como network effects, mercados de múltiplos lados e uso intensivo de dados, que os tornam propensos ao monopólio. Mercados onde “o vencedor leva tudo”, segundo a narrativa. Essas características são reais, mas, embora de fato ofereçam algumas vantagens aos incumbentes, não constituem barreiras intransponíveis à entrada. Evidências empíricas sugerem que a concorrência é possível e, em alguns casos, é realmente muito intensa nesses mercados.

Seguindo essas (discutíveis) premissas, o documento sugere reformas legais para aprovar uma abordagem “mais flexível”, um regime híbrido semelhante às regras já existentes no Japão, na Alemanha e ao Digital Markets Competition Consumers Act (DMCCA) do Reino Unido.

Essa não é uma boa notícia. Em relação à regulamentação ex-ante, essa abordagem “mais flexível” parece melhor no sentido de que, supostamente, incorporaria mais informações sobre danos específicos à concorrência e aos consumidores antes de intervir. No entanto, essa abordagem também envolve alguns riscos. As agências e autoridades de concorrência que a administram teriam ampla discricionariedade para impor remédios comportamentais e estruturais amplos, com padrões menos rigorosos. Não seria necessário provar condutas anticoncorrenciais específicas ou danos específicos à concorrência e aos consumidores; e seria suficiente identificar de forma geral um “efeito adverso sobre a concorrência” ou “barreiras à concorrência”.

A Comissão de Concorrência da África do Sul, por exemplo, recomendou em 2023, após sua Investigação de Mercado das Plataformas de Intermediação Online, que empresas de e-commerce “separem sua divisão de varejo de suas operações de marketplace”. Esse tipo de remédio estrutural é mais razoável para mercados com características de monopólio natural (como distribuição de água ou eletricidade) do que para o mercado de e-commerce, altamente competitivo. De forma semelhante, no México, uma unidade de investigação de mercado da Comissão Federal de Concorrência Econômica (Cofece) recomendou que a Amazon e o Mercado Livre desagreguem seus serviços de streaming e tornem suas plataformas “interoperáveis” com serviços logísticos de terceiros. Esses remédios poderiam prejudicar os consumidores, em vez de beneficiá-los, pois proibiriam integrações que, em geral, significam preços mais baixos e melhor distribuição.

Esse alto grau de discricionariedade não é uma falha menor, especialmente em países sem um histórico exemplar de Estado de Direito (como ocorre na América Latina).

A aplicação do direito da concorrência “tradicional” (proibição de abuso de posição dominante com efeitos de exclusão) é, reconhecidamente, mais lenta e difícil para as agências. Isso ocorre porque elas precisam comprovar a posição dominante (o que implica a definição de mercados relevantes) e, em seguida, a presença de conduta anticompetitiva que prejudique consumidores e a concorrência.

As agências de concorrência e os tribunais, de modo geral, deveriam contar com mais recursos, e procedimentos mais rápidos, para julgar casos antes que as estruturas e dinâmicas de mercado mudem, tornando qualquer remédio potencial ineficaz. No entanto, a complexidade dos casos de abuso de posição dominante traz alguns benefícios: a definição de mercados relevantes e a avaliação de posições dominantes funcionam como filtros que permitem às agências alocar melhor seus recursos e intervir apenas em casos em que as empresas têm uma chance real de prejudicar a concorrência.

A análise de custo-benefício realizada para determinar se uma prática comercial é realmente anticompetitiva permite que as agências separem o joio do trigo e intervenham apenas contra condutas que prejudicam os consumidores. Remédios amplos, por outro lado, acabam por capturar condutas que beneficiam os consumidores.

Em resumo, a legislação antitruste é mais flexível e precisa do que a chamada estratégia “mais flexível.” Acredito que vale a pena dar-lhe uma outra chance antes de seguir por outro caminho.

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