Há alguns anos, visitei a província de Quebec, no Canadá. Das lembranças que ficaram dessa viagem, o lema da capital me marcou. Je me souviens. Em livre tradução, “eu me lembro”. Presente em todos os pontos turísticos e nas placas de veículos, a frase desperta imediata curiosidade sobre o que deve ser lembrado.
O slogan foi uma iniciativa de Eugène-Étienne Taché, arquiteto responsável pela construção do edifício-sede do Parlamento. Ele jamais explicou o que queria dizer com a frase que encravou na entrada principal da Assembleia Nacional. Como ela está embaixo do brasão de Quebec, ladeada por estátuas de personalidades da cidade, supõe-se que eram essas pessoas que ele gostaria que fossem lembradas.
Na versão que pegou, a frase é uma homenagem àqueles que lutaram nas batalhas pelo domínio da região. A França perdeu a guerra, o Canadá passou a fazer parte do Império Britânico, mas os québécois mantiveram o brio e muitos de seus costumes, entre os quais o uso do idioma.
É um bom exemplo de como funcionam os processos de construção da memória de um povo. Há, afinal, muito a ser lembrado – mais do que o arquiteto almejava. Pensei nessa história recentemente, quando recebi alguns amigos de São Paulo em minha casa, em Brasília, e fizemos uma visita ao Congresso Nacional.
Imponente por fora, grandioso por dentro, não há quem não se impressione ao observar o Congresso. Ícone da arquitetura modernista, o edifício conta com um acervo de obras de artistas como Athos Bulcão, Alfredo Ceschiatti, Burle Marx, Di Cavalcanti e Marianne Peretti. É o meu edifício favorito em Brasília, o que tornou especialmente doloroso assistir ao ataque a que ele foi submetido no episódio de 8 de Janeiro.
Nove meses após esse evento, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) encerrou seus trabalhos sem trazer muitas novidades sobre o caso, mas cumpriu um relevante papel: não negou fatos. Não permitiu, como alguns gostariam, que o acontecimento fosse tratado como mero ato de vandalismo.
O Supremo Tribunal Federal (STF) começou a punir os executores, e espera-se que identifique e responsabilize seus financiadores e organizadores. Mas há algo que a Justiça não pode fazer, e que cabe a nós, como sociedade, cumprir no que diz respeito a esse episódio: não permitir que ele seja apagado de nossa história.
Foi, no entanto, com essa impressão que fiquei após visitar o Congresso no fim de setembro. Vidraças e carpetes foram substituídos, obras de arte foram restauradas. De alguma forma, é até simbólico: o Congresso, como instituição, resistiu. O que me incomodou é que parece não ter havido sequelas, quando sabemos que houve.
Estive inúmeras vezes no Congresso antes do 8 de Janeiro. Havia peças decorativas e móveis trazidos das antigas sedes no Legislativo no Rio de Janeiro, estantes com presentes doados por autoridades, uma maquete com a estrutura da Câmara e do Senado. Eles não estão mais lá, e parece que nunca estiveram.
Ao passar pela chapelaria, não há como ignorar que foi por ali que se iniciou a invasão ao Congresso. Na passagem entre o salão verde e o salão azul, não há como não lembrar que foi ali que os policiais legislativos tentaram impedir que a turba que havia tomado conta da Câmara avançasse rumo ao Senado. Caminhar pelo túnel do tempo em direção à biblioteca, aos gabinetes e às comissões permanentes é recordar que essas estruturas foram salvas porque a barbárie foi contida exatamente naquele ponto.
Nada disso foi mencionado na minha última visita ao Congresso. Os guias descrevem detalhadamente os edifícios e o acervo cultural que eles abrigam, mas não falam do 8 de Janeiro, o que, para mim, é estarrecedor. Procurei a Câmara e o Senado em busca de explicações. Recebi, como resposta, que os monitores falam sobre o tema, desde que questionados. Segundo a Câmara, os visitantes têm perguntado cada vez menos sobre o episódio.
Hoje, a memória do 8 de Janeiro está viva na cabeça de todos. Até quando será assim? Saí de lá com a impressão de que este lamentável episódio da história brasileira poderá ser esquecido, a exemplo de outros fatos igualmente vergonhosos e apagados de nosso passado.
Pacificar um país polarizado não pode ser motivo para fingir que nada aconteceu. Parte dessa reconciliação passa por encarar e relatar os fatos. Se não conseguimos nem mesmo falar abertamente sobre os bens materiais perdidos naquele dia, como poderemos falar sobre o significado histórico do que aconteceu em 8 de Janeiro?
O Senado realizou uma exposição com fotografias da destruição da Casa, hoje à disposição apenas em seu site. Parece-me pouco diante da iniciativa do STF, que, igualmente atacado, criou o projeto Pontos de Memória, mostra em caráter permanente com alguns itens do que restou daquele dia, como um exemplar da Constituição queimado.
Não se trata de revanchismo, mas de registro histórico e de memória. Penso novamente no lema de Quebec e digo, como eles dizem, que eu me lembro. O Congresso também não pode esquecer. Lembrar o 8 de Janeiro é, também, defender o Congresso e a democracia.
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JORNALISTA