A migração tem se tornado problema em todos os continentes, com significativas populações se deslocando para habitar outras terras, trazendo problemas sociais, mas, ao mesmo tempo, contribuindo para o desenvolvimento dos locais de destino. Hoje, mais de 250 milhões de pessoas estão em outros países como imigrantes regulares ou irregulares, essa é uma questão a ser enfrentada pelo conjunto das nações, como reconhecem os 160 signatários do Pacto Global da Migração, firmado dia 10 de dezembro em Marrakesh, no 70.º aniversário da Declaração dos Direitos Humanos da ONU.
O Brasil e a América Latina tiveram intensa participação na elaboração do Pacto Global da Migração, fruto do trabalho de anos, como explicou Alicia Bárcena, diretora da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal). As cinco comissões econômicas regionais das Nações Unidas ajudaram a compreender as causas e o tamanho das migrações, bem como a característica das pessoas: seus idiomas, habilidades, necessidades de saúde, nutrição e educação.
Assim, foi possível perceber, como se assinala no pacto, a importância da união, do espírito de cooperação, no qual todos ganham, ao se criar uma estrutura juridicamente não vinculativa, fruto do reconhecimento de que nenhum Estado pode abordar a migração por conta própria, dada a natureza intrinsecamente transnacional desse fenômeno.
Conforme António Guterres, secretário-geral da ONU, o Pacto Global de Migração, além de não ser juridicamente vinculativo, tem a natureza de uma cooperação internacional, enraizada num processo intergovernamental de negociação de boa-fé. Dessa maneira, há proteção da soberania de cada nação, preservando-se o direito soberano dos Estados de determinar sua política nacional de migração e a prerrogativa de, dentro de sua jurisdição, distinguir entre o status de migração regular e irregular, levando em consideração diferentes realidades, políticas, prioridades nacionais para entrada, residência e trabalho.
O pacto global, todavia, acentua dever-se respeito ao Estado de Direito, ao devido processo legal e à garantia de acesso à Justiça como elementos fundamentais para impedir discriminações e permitir a concessão de serviços básicos e a viabilidade de inclusão e coesão social. A inclusão começa pela possibilidade de obtenção de prova de identidade legal e documentação adequada, para em seguida poder haver um recrutamento justo e ético de modo a salvaguardar condições de trabalho decente, não similar ao trabalho escravo.
Dois segmentos merecem especial atenção no Pacto Global de Migração: as crianças e as mulheres. Quanto às mulheres, recomenda-se que suas necessidades específicas sejam devidamente compreendidas e abordadas e seja fortalecida a igualdade de gênero. Com relação às crianças, acentua o pacto ser prioritário o atendimento de suas exigências primárias, mormente de meninos e meninas desacompanhados e separados da família.
Em vez da prisão e do envio forçado para o país de origem, propõem-se medidas para facilitar o regresso e a readmissão seguros e dignos.
Mas para buscar promover a migração regular e controlada o pacto sugere prevenir, combater e erradicar, com cooperação, o tráfico de pessoas no contexto internacional, além de gerenciar as fronteiras de forma integrada com os países vizinhos. Em suma, deve haver uma política de governo, pois importa em integrar diversos setores da administração, em linhas vertical e horizontal.
Dois aspectos merecem destaque com referência ao Brasil: primeiramente, a absoluta convergência do texto do Pacto Global de Migração com o teor da nossa legislação, a recente Lei n.º 13.445/17, e a relevante circunstância de sermos hoje tanto um país de imigração como de emigração.
Com efeito, há atualmente cerca de 2 milhões de estrangeiros no Brasil como imigrantes, definidos como pessoa nacional de outro país que trabalha ou reside e se estabelece temporária ou definitivamente no Brasil, aqui estando de forma regular ou irregular. Sucede, todavia, conforme números do Ministério das Relações Exteriores, que há número maior de brasileiros instalados no exterior, ou seja, emigrantes brasileiros estabelecidos temporária ou definitivamente no exterior. Há cerca de 3 milhões de brasileiros nessa condição.
Assim, é de grande interesse para nossos compatriotas, residentes de forma regular ou irregular no estrangeiro, que o Brasil seja signatário do pacto, para os brasileiros receberem, lá fora, os benefícios concedidos pela nossa lei aos imigrantes.
A recente lei, a ser respeitada, consagra, por exemplo, os seguintes princípios em favor dos imigrantes: promoção de entrada regular e de regularização documental, acolhida humanitária, garantia do direito à reunião familiar, inclusão social e laboral para o migrante e seus familiares.
Tais princípios estão em consonância com o proposto pelo Pacto Global de Migração, que, no entanto, tão logo assinado pelo nosso então ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes Ferreira, foi, precipitadamente, anunciado pelo então chanceler indicado do novo governo, pelo Twitter, como a ser denunciado pelo Brasil: “O governo Bolsonaro se desassociará do Pacto Global de Migração por ser um instrumento inadequado para lidar com o problema, pois a imigração não deve ser tratada como questão global, mas sim de acordo com a realidade e a soberania de cada país”.
Importante conclusão do pacto foi no sentido de a questão só poder ser enfrentada em conjunto pelas nações, em cooperação, com boa-fé, sendo esse instrumento não vinculativo e respeitador da soberania dos países. O novel chanceler, curiosamente, diz exatamente o inverso, isolando nosso país no concerto internacional e deixando, no exterior, os brasileiros desassistidos, enquanto nossa lei, aqui, protege os estrangeiros.
*ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA