As notícias sobre corrupção sempre transitaram na vida política brasileira. Mesmo na República Velha se reconhecia que, se individualmente os homens públicos eram honestos, o sistema era totalmente viciado para manutenção das elites no poder com o controle absoluto das juntas de votação e de apuração.
O propalado mar de lama do governo democrático de Getúlio Vargas girava em volta do financiamento do jornal Última Hora, do jornalista Samuel Wainer, pelo Banco do Brasil, ligado ao presidente, para desgosto dos concorrentes. Samuel Wainer finaliza sua importante autobiografia com o relato do início da construção de Brasília, destacando entrar, nessa oportunidade, na política brasileira um personagem que dela não mais sairia: o empreiteiro.
Com efeito, espalha-se o mal do conluio entre o prestador de serviços e o contratante, o governante, que deixa de atuar pelo interesse público para agir em benefício próprio, ao contratar mediante recebimento de vantagem adrede combinada, que será embutida no preço e, portanto, pago pelo poder público.
Essa prática se disseminou, sem partido, sem ideologia, para fins de campanha ou em proveito pessoal, no fornecimento de infraestrutura ou de bens culturais. Os volumes da corrupção passaram a ser imensos. Chegou-se ao cúmulo de ex-ministro da Fazenda da ditadura, símbolo da repressão, unir-se a ex-ministro da Fazenda do PT para arquitetarem recebimento de propina!
Fatores diferenciam, todavia, o que hoje ocorre do sucedido no passado quando denúncias de corrupção vieram à tona.
Primeiro, a corrupção sistêmica. Não apenas o aproveitamento de A ou B, mas um modo de ser do exercício da política no Brasil e em especial no governo federal. Com o PT, a corrupção passou a ser uma estratégia de manutenção do poder não apenas para irrigar o partido com meios para pagar marqueteiros e financiar eleições, mas para comprar parlamentares, cimentar alianças, garantir maiorias.
Até em municípios passou a haver a compra de vereadores pelo Executivo com a oferta de cargos em comissão a serem ocupados por apaniguados dos edis, com os quais os indicados dividiriam seus salários sem o dever de comparecer ao trabalho.
O processo do mensalão desnudou uma artimanha financeira sofisticada que levou os principais líderes do partido do governo, banqueiros e publicitários à prisão, mostrando uma combinação que extrapolava a jogada individual de levar vantagem para caracterizar uma organização criminosa.
O petrolão mostrou a reincidência, com a participação da maioria das grandes empreiteiras e industriais, comprometendo as grandes figuras da República. E ainda por cima se descobre a corrupção num Conselho de Contribuintes para amenizar ou perdoar dívidas tributárias de empresas de respeitabilidade. Até surgiu sobrepreço na administração de crédito consignado destinado a funcionários públicos aposentados, porcentual esse dividido entre ministro de Estado e o PT.
É um quadro desolador de amoralidade dominante no Brasil, a revelar a falência do interesse público. Brota a certeza de que se vai ao poder para dele usufruir em causa própria, e não para agir em prol do bem comum. Ocupa-se, com reconhecidas exceções, um cargo para tirar proveito econômico, nem mesmo por vaidade ou por ambição de inscrever o nome na História. Não: apenas o subalterno fim financeiro de enriquecer ilicitamente de forma oculta, com contas no exterior.
Mas, em contrapartida, há uma reação da sociedade jamais antes vista. Esta resposta da população nas ruas das principais cidades do Brasil, mobilizando milhões de pessoas a exigir combate à corrupção e moralização da política, é inusitada. Se os movimentos que conduziram multidões às ruas sabem não querer a corrupção, é preciso, todavia, que saibam como lutar contra ela. Por fim, cumpre decidir qual sistema eleitoral e qual regime de governo tornam viável maior controle sobre os agentes políticos.
Há medidas preventivas e repressivas diante da corrupção. Nos processos contra os corruptos é de exigir, contudo, o respeito ao devido processo legal, ou seja, ao estabelecido nas regras processuais, para não se transformar essa persecução em caça às bruxas. Nesse sentido, os processos da Lava Jato, com o cuidado tomado por seus condutores, têm respeitado os direitos de defesa, que não podem ser postergados em nome de uma justiça material moralista, com adoção de medidas com cor de vingança.
No plano da prevenção, compliance e transparência nos órgãos públicos e nos partidos políticos, bem como a criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos, são medidas positivas.
Deve-se cuidar para não demonizar a política, culpando a democracia pelos males da corrupção. Na ditadura houve vários escândalos, como o Coroa-Brastel, que ficaram debaixo do tapete e não havia liberdade de ir às ruas. A luta contra a corrupção não é de direita nem de esquerda. É pressuposto da democracia com justiça social.
O interesse público deve ser a única diretriz. Dessa forma é possível promover o bem da população com a aplicação da fortuna desviada, por exemplo, do atendimento à saúde dos mais pobres. Assim, se combater a corrupção alivia a alma, por outro lado alimenta o espírito público poder empreender programa de destinar o bilhão surrupiado à instalação de unidades básicas de saúde.
Por fim, há que saber, como já sublinhado, o modo de aprimorar a democracia. Na pauta, o voto distrital, a cláusula de barreira para os partidos, o semipresidencialismo ou o parlamentarismo. Há muito a fazer.
Combater a corrupção é o primeiro desafio e o impeachment de Dilma, um passo importante para a moralização da política, por ter anuído conscientemente com os malfeitos nas estatais e o descontrole das contas públicas.
*Miguel Reale Júnior é advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e foi ministro da Justiça