O mundo vem acompanhando com preocupação as declarações recentes do presidente Donald Trump sobre manobras geopolíticas no entorno estratégico norte-americano. Trump tem declarado interesse em tomar o controle da Groenlândia e do Canal do Panamá, inclusive com uso militar, por entender que esses territórios são vitais para a segurança do seu país. Além disso, Trump tem sugerido que o Canadá se torne o “51.º Estado” dos EUA.
Para além da retórica midiática inerente à comunicação do republicano, tais declarações parecem revelar sinais dissonantes daquilo que se espera de uma potência dominante; afinal, do poder hegemônico se espera a manutenção do status quo e da estabilidade do sistema. Podemos compreender essa dissonância considerando a própria trajetória geopolítica dos EUA. Para tanto, dividiremos, de forma muito simplificada, o expansionismo geopolítico norte-americano em três fases: 1) a marcha para o oeste, ao longo do século 19; 2) a construção do império, na virada do século 19 para o século 20; e 3) a potência global, especialmente a partir da Segunda Guerra.
A primeira fase corresponde a um país recém-independente que, marchando para o oeste, realizava o seu “destino manifesto” de consolidação territorial, após a incorporação dos territórios no litoral do Pacífico. A segunda fase do expansionismo norte-americano corresponde à Doutrina Monroe (a América para os americanos), que passa a constituir um princípio de sua política externa. Além disso, inspirados pelas ideias do almirante Alfred Mahan (1840-1914), os EUA se lançam a mares distantes, em busca do domínio de rotas marítimas e do controle de pontos estratégicos, como as ilhas do Caribe e o Havaí, por exemplo. Nessas condições, o Canal do Panamá passa a exercer função vital, na medida em que permite aos EUA conectar sua condição bioceânica, alargando sua esfera de influência para além do entorno continental e estabelecendo uma nova linha de defesa mais avançada. É nessa fase que surge a ideia de “construção do hemisfério”, eufemismo para definir o expansionismo norte-americano por todo o continente.
O terceiro salto expansionista consolida os EUA como potência global. Ganha força no pós-Segunda Guerra e atinge seu ápice com a dissolução da União Soviética. Nesse contexto, os EUA estabelecem a sua primeira linha de defesa no entorno da Eurásia, conforme a sugestão geopolítica de Nicholas Spykman (1893-1943). Na condição de potência global, os EUA deveriam ser capazes de intervir em qualquer parte do tabuleiro internacional sempre que houvesse ameaças aos seus interesses nacionais. Nesse esforço, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e outras parcerias estratégicas no entorno da Eurásia eram peças fundamentais para a defesa norte-americana. O último grande geopolítico e conselheiro norte-americano, Zbigniew Brzezinski (1928-2017), compartilhava dessa ideia de que à potência mais importante do mundo não caberia a opção isolacionista. Afinal, com o fim da bipolaridade, os EUA emergiam como árbitro e polícia das relações de poder em todo o mundo.
O desafio geopolítico central para quem ocupa a posição que os EUA têm assumido nas últimas décadas diz respeito ao ônus de ser o “número um”. Em Ascensão e Queda das Grandes Potências, escrito ainda nos anos 1980, o historiador britânico Paul Kennedy já alertava para o fato de que os EUA poderiam estar vivendo o desafio da “excessiva extensão imperial”, ou seja, a dura realidade na qual a soma dos interesses e obrigações mundiais se tornam superiores à capacidade dessas potências de defendê-las. Assim, o autor descreve a sua tese: “Um dilema comum aos países que já foram ‘número um’ é o fato de que, mesmo quando sua força econômica relativa está diminuindo, os crescentes desafios estrangeiros à sua posição os forçam a designar mais e mais recursos ao setor militar, o que por sua vez reduz o investimento produtivo e, com o tempo, leva a uma espiral descendente de crescimento mais lento, enfraquecimento de sua capacidade de arcar com ônus da defesa”.
Essa realidade pode estar por trás das declarações de Trump. O tabuleiro global começa a ficar pesado demais. Parece já não ser possível sustentar tamanha ambição geopolítica. Afinal, a posição de liderança envolve custos e não permite a escolha dos embates. Mas Trump não parece disposto a assumir esse ônus. Pelo contrário, tem deixado claro que não pagará essa conta quando considera, por exemplo, retirar os EUA da Otan. Outra evidência nesse sentido foi a primeira reação do republicano quando da derrubada do regime de Bashar al-Assad na Síria. Imediatamente, ele postou no “X” que os Estados Unidos não deveriam se envolver com o que estava acontecendo: “Esta não é a nossa luta”.
Dito isso, nos questionamos: as declarações de Trump a respeito do controle territorial dos EUA denotam mais fortaleza ou recuo geopolítico? Há uma frase atribuída a Sêneca que parece aqui adequada: “Toda crueldade provém da fraqueza”. Não se trata aqui de fraqueza absoluta, mas relativa. Os EUA dispõem de insumos incalculáveis de poder e continuarão a ser a maior potência do mundo, mas sua hegemonia parece contestada. A imagem da retirada desastrosa das tropas norte-americanas do Afeganistão em agosto de 2021 parece ser sinal disso.
O fato é que as declarações de Trump parecem emitir sinais de limite do poder hegemônico e de recuo a seu espaço vital. Lembram menos a postura de uma potência global e mais a de uma potência regional, preocupada em fortificar a sua linha de defesa no entorno de seu próprio território.
Paul Kennedy entendia que a verdadeira ameaça aos interesses dos EUA poderia vir de sua incapacidade de ajustar-se sensatamente a essa nova ordem mundial. Assim, para ele, o desafio dos estadistas americanos seria administrar a erosão relativa da posição dos Estados Unidos para que ela ocorresse de forma lenta e suave, e não fosse acelerada por políticas que proporcionassem apenas vantagens a curto prazo. Quanto à sensatez das declarações de Trump, caberá à História julgar.
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CORONEL DA RESERVA DO EXÉRCITO, DOUTOR EM CIÊNCIA POLÍTICA PELA USP, É PROFESSOR DE GEOPOLÍTICA NA ESCOLA SUPERIOR DE DEFESA (ESD)