Opinião|Das candidaturas fictícias às cotas fictícias para mulheres na política


Texto final do novo Código Eleitoral abre brechas para o aprofundamento das enormes desigualdades de gênero e raça que marcam a política brasileira

Por Clara Araújo, Ligia Fabris e Michelle Ferreti

Às vésperas das eleições municipais e com um plenário esvaziado, o Senado Federal está se movimentando para votar, com urgência, o projeto de um novo Código Eleitoral (Projeto de Lei Complementar 112/2021) sem participação social ou debate público. Trata-se de um expressivo conjunto de regras relativas ao sistema político brasileiro, traduzidas em cerca de 900 artigos que impactam o arcabouço legal para o funcionamento dos partidos políticos e a maneira como escolhemos nossos representantes. Não necessariamente para melhor.

O texto inicial já havia sido levado ao plenário da Câmara dos Deputados sem um debate mais amplo, como necessário: não passou por comissões da Casa e só foi discutido com a sociedade por meio de poucos eventos virtuais durante a pandemia de covid-19. Ainda assim, incorporou pontos importantes em prol da participação política das mulheres. Depois de mais de dois anos adormecido, seu conteúdo sofreu novas alterações recém-apresentadas pelo relator Marcelo Castro na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, com a intenção de ser votado até o final de abril. O texto final abre brechas para o aprofundamento das enormes desigualdades de gênero e raça que marcam a política brasileira, ampliando o abismo de representatividade das maiorias sociais nos espaços de poder do nosso país.

O “novo” Código Eleitoral em análise no Senado ratifica alguns aspectos importantes do projeto votado pela Câmara, mas, em outros, representa um verdadeiro retrocesso. O texto atual retira dos partidos a obrigação de garantir a presença de pelo menos 30% de mulheres nas suas listas de candidaturas para as eleições legislativas proporcionais. Isso significa retornar à legislação de cotas de 1997 que gerou poucos avanços práticos, pois, naquele momento, predominou a conveniente interpretação de que seria suficiente reservar 30% das vagas para as mulheres, sem a obrigatoriedade de necessariamente preenchê-las. Foram 12 anos de pressão para corrigir essa distorção e, apenas em 2009, a Lei das Eleições foi alterada para explicitar que os partidos deveriam efetivamente lançar 30% de candidatas mulheres.

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Desde então, a proporção de candidaturas femininas nas chapas cresceu, ainda que acompanhadas de medidas insuficientes para uma competição menos desigual na corrida eleitoral. Foi possível também incorporar parâmetros para fiscalizar as fraudes às cotas de gênero nos pleitos e avançar em dispositivos que asseguram a destinação de recursos proporcionais para as campanhas de mulheres, negros e indígenas.

Segundo dados do Observatório da Mulher na Política da Câmara dos Deputados, as mulheres seguiram ampliando a sua participação política e seu sucesso eleitoral, passando de 16,5% das candidaturas competitivas para 30,5% entre 2018 e 2022. No mesmo período, sua votação cresceu de 16% para 21% do total. Em relação às candidaturas fictícias, resta dizer que não houve sequer uma mulher sem votos em 2022. Esses dados parecem ser desconhecidos do relator, que argumenta, em seu relatório final, que tais mudanças evitariam “candidaturas desnecessárias”, que só serviriam para “cumprir a cota”. Soma-se a isso, a proposta de suprimir a possibilidade de cassação de chapas pelo descumprimento das ações afirmativas de gênero, o que instituiria completa impunidade.

Enquanto diferentes países europeus e latino-americanos estipularam cotas rumo à paridade de gênero e raça em seus parlamentos, de forma a cumprir com diferentes tratados e compromissos internacionais, o Brasil segue nas últimas posições do ranking global de participação política de mulheres, com índices ainda piores se considerados os marcadores raciais. E, ao invés de aliar-se às melhores práticas já testadas por outras nações, o Legislativo brasileiro se ampara na ocorrência de candidaturas fictícias para propor a implementação de cotas fictícias para as mulheres. Há um princípio jurídico que estabelece: “Ninguém pode se beneficiar de sua própria torpeza”. Ou seja, não se pode usar a prática de uma conduta ilegal (candidaturas fictícias) para justificar, em proveito próprio, o fim das cotas para mulheres.

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Numa democracia, não cabe retrocessos em termos de direitos fundamentais conquistados. É fundamental que essa discussão seja conduzida de forma republicana e democrática, envolvendo o Parlamento, os partidos políticos, o sistema de Justiça, os movimentos de mulheres e a sociedade em geral. Não se constrói uma democracia forte sem a diversidade de vozes no poder.

*

PESQUISADORAS DO OBSERVATÓRIO NACIONAL DA MULHER NA POLÍTICA DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSORA DA PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO E COORDENADORA ACADÊMICA DO NÚCLEO DE ESTUDOS SOBRE DESIGUALDADES CONTEMPORÂNEAS; PROFESSORA VISITANTE DA UNIVERSIDADE DE YALE E PROFESSORA LICENCIADA DA FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS DIREITO RIO; E DIRETORA DO INSTITUTO ALZIRAS

Às vésperas das eleições municipais e com um plenário esvaziado, o Senado Federal está se movimentando para votar, com urgência, o projeto de um novo Código Eleitoral (Projeto de Lei Complementar 112/2021) sem participação social ou debate público. Trata-se de um expressivo conjunto de regras relativas ao sistema político brasileiro, traduzidas em cerca de 900 artigos que impactam o arcabouço legal para o funcionamento dos partidos políticos e a maneira como escolhemos nossos representantes. Não necessariamente para melhor.

O texto inicial já havia sido levado ao plenário da Câmara dos Deputados sem um debate mais amplo, como necessário: não passou por comissões da Casa e só foi discutido com a sociedade por meio de poucos eventos virtuais durante a pandemia de covid-19. Ainda assim, incorporou pontos importantes em prol da participação política das mulheres. Depois de mais de dois anos adormecido, seu conteúdo sofreu novas alterações recém-apresentadas pelo relator Marcelo Castro na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, com a intenção de ser votado até o final de abril. O texto final abre brechas para o aprofundamento das enormes desigualdades de gênero e raça que marcam a política brasileira, ampliando o abismo de representatividade das maiorias sociais nos espaços de poder do nosso país.

O “novo” Código Eleitoral em análise no Senado ratifica alguns aspectos importantes do projeto votado pela Câmara, mas, em outros, representa um verdadeiro retrocesso. O texto atual retira dos partidos a obrigação de garantir a presença de pelo menos 30% de mulheres nas suas listas de candidaturas para as eleições legislativas proporcionais. Isso significa retornar à legislação de cotas de 1997 que gerou poucos avanços práticos, pois, naquele momento, predominou a conveniente interpretação de que seria suficiente reservar 30% das vagas para as mulheres, sem a obrigatoriedade de necessariamente preenchê-las. Foram 12 anos de pressão para corrigir essa distorção e, apenas em 2009, a Lei das Eleições foi alterada para explicitar que os partidos deveriam efetivamente lançar 30% de candidatas mulheres.

Desde então, a proporção de candidaturas femininas nas chapas cresceu, ainda que acompanhadas de medidas insuficientes para uma competição menos desigual na corrida eleitoral. Foi possível também incorporar parâmetros para fiscalizar as fraudes às cotas de gênero nos pleitos e avançar em dispositivos que asseguram a destinação de recursos proporcionais para as campanhas de mulheres, negros e indígenas.

Segundo dados do Observatório da Mulher na Política da Câmara dos Deputados, as mulheres seguiram ampliando a sua participação política e seu sucesso eleitoral, passando de 16,5% das candidaturas competitivas para 30,5% entre 2018 e 2022. No mesmo período, sua votação cresceu de 16% para 21% do total. Em relação às candidaturas fictícias, resta dizer que não houve sequer uma mulher sem votos em 2022. Esses dados parecem ser desconhecidos do relator, que argumenta, em seu relatório final, que tais mudanças evitariam “candidaturas desnecessárias”, que só serviriam para “cumprir a cota”. Soma-se a isso, a proposta de suprimir a possibilidade de cassação de chapas pelo descumprimento das ações afirmativas de gênero, o que instituiria completa impunidade.

Enquanto diferentes países europeus e latino-americanos estipularam cotas rumo à paridade de gênero e raça em seus parlamentos, de forma a cumprir com diferentes tratados e compromissos internacionais, o Brasil segue nas últimas posições do ranking global de participação política de mulheres, com índices ainda piores se considerados os marcadores raciais. E, ao invés de aliar-se às melhores práticas já testadas por outras nações, o Legislativo brasileiro se ampara na ocorrência de candidaturas fictícias para propor a implementação de cotas fictícias para as mulheres. Há um princípio jurídico que estabelece: “Ninguém pode se beneficiar de sua própria torpeza”. Ou seja, não se pode usar a prática de uma conduta ilegal (candidaturas fictícias) para justificar, em proveito próprio, o fim das cotas para mulheres.

Numa democracia, não cabe retrocessos em termos de direitos fundamentais conquistados. É fundamental que essa discussão seja conduzida de forma republicana e democrática, envolvendo o Parlamento, os partidos políticos, o sistema de Justiça, os movimentos de mulheres e a sociedade em geral. Não se constrói uma democracia forte sem a diversidade de vozes no poder.

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PESQUISADORAS DO OBSERVATÓRIO NACIONAL DA MULHER NA POLÍTICA DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSORA DA PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO E COORDENADORA ACADÊMICA DO NÚCLEO DE ESTUDOS SOBRE DESIGUALDADES CONTEMPORÂNEAS; PROFESSORA VISITANTE DA UNIVERSIDADE DE YALE E PROFESSORA LICENCIADA DA FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS DIREITO RIO; E DIRETORA DO INSTITUTO ALZIRAS

Às vésperas das eleições municipais e com um plenário esvaziado, o Senado Federal está se movimentando para votar, com urgência, o projeto de um novo Código Eleitoral (Projeto de Lei Complementar 112/2021) sem participação social ou debate público. Trata-se de um expressivo conjunto de regras relativas ao sistema político brasileiro, traduzidas em cerca de 900 artigos que impactam o arcabouço legal para o funcionamento dos partidos políticos e a maneira como escolhemos nossos representantes. Não necessariamente para melhor.

O texto inicial já havia sido levado ao plenário da Câmara dos Deputados sem um debate mais amplo, como necessário: não passou por comissões da Casa e só foi discutido com a sociedade por meio de poucos eventos virtuais durante a pandemia de covid-19. Ainda assim, incorporou pontos importantes em prol da participação política das mulheres. Depois de mais de dois anos adormecido, seu conteúdo sofreu novas alterações recém-apresentadas pelo relator Marcelo Castro na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, com a intenção de ser votado até o final de abril. O texto final abre brechas para o aprofundamento das enormes desigualdades de gênero e raça que marcam a política brasileira, ampliando o abismo de representatividade das maiorias sociais nos espaços de poder do nosso país.

O “novo” Código Eleitoral em análise no Senado ratifica alguns aspectos importantes do projeto votado pela Câmara, mas, em outros, representa um verdadeiro retrocesso. O texto atual retira dos partidos a obrigação de garantir a presença de pelo menos 30% de mulheres nas suas listas de candidaturas para as eleições legislativas proporcionais. Isso significa retornar à legislação de cotas de 1997 que gerou poucos avanços práticos, pois, naquele momento, predominou a conveniente interpretação de que seria suficiente reservar 30% das vagas para as mulheres, sem a obrigatoriedade de necessariamente preenchê-las. Foram 12 anos de pressão para corrigir essa distorção e, apenas em 2009, a Lei das Eleições foi alterada para explicitar que os partidos deveriam efetivamente lançar 30% de candidatas mulheres.

Desde então, a proporção de candidaturas femininas nas chapas cresceu, ainda que acompanhadas de medidas insuficientes para uma competição menos desigual na corrida eleitoral. Foi possível também incorporar parâmetros para fiscalizar as fraudes às cotas de gênero nos pleitos e avançar em dispositivos que asseguram a destinação de recursos proporcionais para as campanhas de mulheres, negros e indígenas.

Segundo dados do Observatório da Mulher na Política da Câmara dos Deputados, as mulheres seguiram ampliando a sua participação política e seu sucesso eleitoral, passando de 16,5% das candidaturas competitivas para 30,5% entre 2018 e 2022. No mesmo período, sua votação cresceu de 16% para 21% do total. Em relação às candidaturas fictícias, resta dizer que não houve sequer uma mulher sem votos em 2022. Esses dados parecem ser desconhecidos do relator, que argumenta, em seu relatório final, que tais mudanças evitariam “candidaturas desnecessárias”, que só serviriam para “cumprir a cota”. Soma-se a isso, a proposta de suprimir a possibilidade de cassação de chapas pelo descumprimento das ações afirmativas de gênero, o que instituiria completa impunidade.

Enquanto diferentes países europeus e latino-americanos estipularam cotas rumo à paridade de gênero e raça em seus parlamentos, de forma a cumprir com diferentes tratados e compromissos internacionais, o Brasil segue nas últimas posições do ranking global de participação política de mulheres, com índices ainda piores se considerados os marcadores raciais. E, ao invés de aliar-se às melhores práticas já testadas por outras nações, o Legislativo brasileiro se ampara na ocorrência de candidaturas fictícias para propor a implementação de cotas fictícias para as mulheres. Há um princípio jurídico que estabelece: “Ninguém pode se beneficiar de sua própria torpeza”. Ou seja, não se pode usar a prática de uma conduta ilegal (candidaturas fictícias) para justificar, em proveito próprio, o fim das cotas para mulheres.

Numa democracia, não cabe retrocessos em termos de direitos fundamentais conquistados. É fundamental que essa discussão seja conduzida de forma republicana e democrática, envolvendo o Parlamento, os partidos políticos, o sistema de Justiça, os movimentos de mulheres e a sociedade em geral. Não se constrói uma democracia forte sem a diversidade de vozes no poder.

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PESQUISADORAS DO OBSERVATÓRIO NACIONAL DA MULHER NA POLÍTICA DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSORA DA PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO E COORDENADORA ACADÊMICA DO NÚCLEO DE ESTUDOS SOBRE DESIGUALDADES CONTEMPORÂNEAS; PROFESSORA VISITANTE DA UNIVERSIDADE DE YALE E PROFESSORA LICENCIADA DA FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS DIREITO RIO; E DIRETORA DO INSTITUTO ALZIRAS

Opinião por Clara Araújo

Professora da pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, coordenadora acadêmica do Núcleo de Estudos sobre Desigualdades Contemporâneas, é pesquisadora do Observatório Nacional da Mulher na Política da Câmara dos Deputados

Ligia Fabris

Professora visitante da Universidade de Yale, professora licenciada da Fundação Getulio Vargas Direito Rio, é pesquisadora do Observatório Nacional da Mulher na Política da Câmara dos Deputados

Michelle Ferreti

Diretora do Instituto Alziras, é pesquisadora do Observatório Nacional da Mulher na Política da Câmara dos Deputados

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