O governo brasileiro encaminhou recentemente ao Congresso Nacional um projeto de lei (PL) complementar prevendo a regulamentação do transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos de quatro rodas. O texto foi resultado de intensas e frutíferas negociações entre as empresas que operam aplicativos, os motoristas e o Ministério do Trabalho e Emprego. No entanto, uma das perguntas mais ouvidas no dia do anúncio foi: “E os entregadores?”.
É preciso entender os motivos pelos quais os trabalhadores que fazem entregas de alimentos e mercadorias não foram incluídos nesse PL. Entre eles, ressalte-se, não estão a falta de diálogo ou de empenho das empresas para negociar.
O trabalho intermediado por plataformas digitais é caracterizado pela autonomia do trabalhador para decidir quando ele ou ela quer exercer a atividade e por quanto tempo. Desta forma, para que seja discutida a efetividade de qualquer proposta de regulamentação da atividade, é preciso entender que as dinâmicas de engajamento de motoristas e entregadores são completamente diferentes.
Que fique claro: as empresas que integram a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) sempre foram a favor da construção de uma regulamentação do trabalho intermediado por aplicativos tanto para motoristas quanto para entregadores.
Foi com esse espírito que participamos do grupo de trabalho tripartite e de outras reuniões bilaterais após sua conclusão. Buscamos uma legislação que garanta autonomia e direitos sociais aos trabalhadores, enquanto possibilite segurança jurídica às empresas que operam os aplicativos.
Contudo, alguns fatos são vitais para entender por que o consenso alcançado entre plataformas de transporte individual de passageiros, motoristas e governo não pode ser automaticamente aplicado ao setor de entregas.
A realidade da atividade de delivery tem particularidades. Dados do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) mostram que o engajamento médio nos aplicativos dos profissionais de entregas é de 13 horas a 17 horas por semana, menor do que o verificado entre os motoristas de transporte remunerado privado individual de passageiros. Isso significa, na prática, rendimentos mensais menores. Portanto, incluir os entregadores no regime público de previdência social com as mesmas alíquotas propostas para os motoristas vai onerá-los demasiadamente.
Atualmente, os entregadores podem contribuir para a previdência como Microempreendedor Individual (MEI), arcando com uma alíquota de 5% sobre o valor do salário mínimo (R$ 70,60). Ainda assim, pesquisas como a do Datafolha Futuro do Trabalho mostram que há um déficit de inclusão previdenciária, pois esses profissionais entendem que esse é um custo excessivo. O que dirão de alíquotas superiores? De acordo com o levantamento, 72% dos entregadores conhecem, mas não contribuem como MEI. A principal razão apontada por eles deve-se ao fato de que os rendimentos variam mês a mês.
É preciso ter em mente também que o porcentual de entregadores que utilizam as plataformas como complemento de renda é maior em relação aos motoristas: 48% desses profissionais usam o aplicativo de entrega como uma fonte alternativa de obtenção de renda, além da atividade principal, enquanto para motoristas esse número é de 37%, de acordo com dados do Cebrap.
As plataformas de entregas associadas à Amobitec também não se furtaram a discutir ganhos mínimos. Ao contrário, apresentaram proposta que representava mais de 200% do salário mínimo ao Ministério do Trabalho e Emprego. Por razões óbvias, tendo em vista que as propostas da Amobitec consideravam uma parcela de ganhos líquidos acrescidos de custos com as atividades (como combustível e manutenção), os valores ofertados para motoristas e entregadores eram distintos: os entregadores têm um custo com a atividade consideravelmente menor.
Porém, sem encarar a questão previdenciária, que é especialmente relevante na discussão de entregadores, o debate fica prejudicado. É preciso manter o diálogo. E mais: é preciso um gesto do governo para com essa categoria de trabalhadores menos privilegiada. Precisamos adotar um modelo de inclusão previdenciária que privilegie a progressividade: quem ganha menos deve pagar menos. A se manter a lógica estabelecida pelo governo, os entregadores pagarão o dobro de contribuição previdenciária em relação aos motoristas. Essa distorção precisa ser corrigida.
Trata-se da realidade de um setor que proporciona renda para mais de 300 mil famílias e que tende a crescer cada dia mais impulsionado pela comodidade, valorizada pelo consumidor, de poder pedir o que quiser sem sair de sua residência. Nós podemos pedir comidas ou produtos. Podemos utilizar um aplicativo de entrega, o WhatsApp, um site ou até mesmo, à moda antiga, o telefone. Mas uma coisa não muda: é o entregador que vai chegar ao destino com o produto. É para este trabalhador que devemos olhar quando pensamos na regulamentação das entregas intermediadas por aplicativos.
Seguimos dispostos a continuar as negociações com governo, trabalhadores e Congresso Nacional. Temos a forte crença de que por meio do diálogo conseguiremos chegar a um consenso para o setor de entregas, assim como ocorreu com o transporte individual de passageiros. As dificuldades encontradas até o momento não diminuem nossa crença de que é possível conciliar avanço tecnológico e direitos sociais.
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É DIRETOR-EXECUTIVO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE MOBILIDADE E TECNOLOGIA (AMOBITEC)