O século 20 testemunhou a existência de Estados grandes, de natureza totalitária. Após a Primeira Guerra, muitas nações passaram a flertar com modelos de governo autoritários e centralizadores. Independentemente se à esquerda ou à direita, acreditava-se, naquele contexto, ser o Estado o estágio mais elevado da civilização sob o qual se consolidariam as “necessárias” revoluções. Assim ocorreu com o socialismo na União Soviética e com o nazismo na Alemanha. Mesmo em nações democráticas e liberais, como os Estados Unidos, o Estado era chamado a exercer papel fundamental. A resposta à crise do liberalismo no pós-Primeira Guerra Mundial, por exemplo, deu-se por meio de políticas de promoção do bem-estar social, proporcionadas pelo Welfare State.
O Brasil viveu boa parte do século 20 sob modelos autoritários e centralizadores, tendo como pano de fundo a bandeira do nacional-desenvolvimentismo. Naquele contexto, malgrado o déficit democrático, sobressaía a centralidade do Estado, por sua capacidade de planejamento de longo prazo e de conduzir políticas complexas e de elevado custo, como a construção de grandes obras de infraestrutura, por exemplo.
A partir dos anos 1980 e, especialmente nos anos 1990, com a derrocada do socialismo soviético e supremacia de modelos neoliberais, aquela crença no Estado como bastião de projeto nacional perdeu força. No Brasil, o processo de redemocratização, cujo ápice é a promulgação da Constituição Cidadã, de 1988, tem por base um conjunto de princípios democráticos e de conquistas sociais que, de forma resumida, podem ser expressos pela emancipação do sujeito de um lado e pelo desmonte do Estado autoritário do outro. Esse não foi um fenômeno exclusivo do Brasil, mas envolveu diversos países que realizavam a transição de regimes autoritários, especialmente na América Latina, aquilo que Samuel Huntington intitulou de “a terceira onda de democratização”.
Naquele contexto buscava-se, de forma categórica, reduzir o grau de intervenção estatal nas diversas dimensões da sociedade. As recomendações por desestatização abrangiam desde o desmantelamento de serviços de inteligências até sugestões sobre política econômica, cujo exemplo mais notório foi o chamado “Consenso de Washington”.
Não obstante os benefícios políticos e econômicos advindos dessa reestruturação, o fato é que há uma sensação de mal-estar em relação ao funcionamento das instituições estatais que vão além do famigerado grau de corrupção que tem assolado a gestão pública. Passados quase quatro décadas da redemocratização no Brasil, compartilhamos uma sensação de incompletude. Assim, diante dos desafios relacionados a vulnerabilidades sociais e debilidades institucionais presentes em nosso país, nos perguntamos em que podemos ter falhado.
A resposta pode estar na debilidade de nossas instituições. As instituições, sejam elas normas ou organizações, são fundamentais para o funcionamento e a estabilidade de uma sociedade na medida em que moldam as expectativas e orientam as ações das pessoas, contribuindo para a ordem e a coesão social, garantindo direitos de propriedade, igualdade de oportunidades e o respeito às leis. Recentemente, este jornal publicou um interessante editorial a respeito da entrega do Prêmio Nobel de Economia a um grupo de economistas por terem “demonstrado a importância de instituições sociais para a prosperidade de um país” (Um Nobel à prosperidade, 16/10/24). A tese dos autores é a de que são prósperos os países capazes de promover a formação de instituições sólidas, fonte de estabilidade e previsibilidade. Em termos políticos, o amparo legítimo das instituições sociais exige Estados fortes. Talvez não tenhamos atentado tanto para o fato de que, embora os Estados precisassem ser reduzidos em determinadas áreas, eles necessitavam, ao mesmo tempo, de fortalecimento em outras. No livro Construção de Estados: Governo e Organização no século 21, Francis Fukuyama nos lembra de que a agenda da construção do Estado não tem recebido a mesma ênfase quanto a sua redução. O que nos ensinam os institucionalistas é que não haverá sociedade democraticamente viável sem um Estado forte. Aqui, não devemos confundir “Estado forte” com “Estado grande”, “inchado”. Não se trata de escopo ampliado, mas da firmeza da autoridade legitimada.
Não há como avançar no enfrentamento de nossos grandes desafios nacionais – como a desigualdade, a violência social, a emergência climática, dentre outros – sem colocar o Estado e suas instituições no centro de seus processos de resolução. Para tanto, faz-se necessário um profundo debate sobre os limites do escopo e das funções do Estado. Certamente há muito espaço para reestruturação da burocracia estatal. O contexto atual exige dos governos adaptações que respondam a demandas complexas para as quais muitas de suas estruturas têm se mostrado débeis ou disfuncionais.
O grande desafio das democracias, portanto, será preservar e, em alguns casos, fortalecer a capacidade institucional do Estado sem que isso redunde em ampliação de seu escopo ou – o que é pior – em tentações autoritárias. Em um contexto marcado por ataques às instituições democráticas, faz-se necessário reafirmar que a fortaleza estatal é condição essencial para a prosperidade de uma nação.
Não há outro caminho à sociedade brasileira a não ser a busca pelo fortalecimento, de forma democrática, da capacidade institucional do Estado, fonte legítima de estabilidade e justiça social. Afinal, não é possível uma democracia plena sem um Estado forte.
*
DOUTOR EM CIÊNCIA POLÍTICA PELA USP, É PROFESSOR DE GEOPOLÍTICA NA ESCOLA SUPERIOR DE DEFESA E DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO UNICEUB