Opinião|Faculdades judiciais de (não) cumprimento da lei


Mesmo se podendo concordar com a ideia de que a aplicação rigorosa do artigo 395 do CPP tem potencial revolucionário, há poucas razões para acreditar que ela vá acontecer

Por Ruiz Ritter

O artigo Aplicar a lei pode ser uma revolução, escrito pelo advogado Nicolau da Rocha Cavalcanti e publicado neste espaço (23/10/2024), toca corajosamente num problema grave do sistema de Justiça criminal brasileiro, que é a má aplicação da lei pelos juízes criminais, tendo como enfoque o artigo 395 do Código de Processo Penal (CPP), base legal contra processos judiciais originados de denúncias ilegais, infundadas ou inconsistentes, na linguagem jurídica “ineptas, sem pressupostos processuais ou sem justa causa”.

Diante de casos tais, como explicado naquele texto, prescreveu o legislador ao juiz o dever de rejeitar prontamente a denúncia, evitando, assim, a instauração de um processo judicial indevido ou inviável contra alguém, com todos os reflexos indesejados decorrentes dessa situação, especialmente ao acusado, mas também ao funcionamento do sistema de Justiça, inclusive no que se refere ao papel do próprio Poder Judiciário – afinal, um processo iniciado nessas condições naturalmente será objeto de habeas corpus (HC) aos tribunais, literalmente se multiplicando, em detrimento do já expressivo volume de processos judiciais tramitando no País e da eficiência da prestação jurisdicional.

Deixando de lado os imensos prejuízos – emocionais, financeiros e reputacionais – impostos a quem se vê obrigado a suportar uma acusação criminal descabida, é particularmente interessante notar que essa consequência institucionalmente adversa inerente ao descumprimento judicial da norma prevista no referido artigo 395 do CPP não apenas não tem sido confrontada pelas instâncias judiciárias superiores – Superior Tribunal de Justiça (STJ)/Supremo Tribunal Federal (STF) –, como também, ao contrário, tem sido sistematicamente estimulada, se não diretamente, por meio de decisões que colateralmente a consolidam e a agravam.

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É esse o caso, por exemplo, do entendimento firmado tanto no Supremo Tribunal Federal quanto no Superior Tribunal de Justiça sobre a dispensabilidade de enfrentamento “exaustivo” pelo juiz das teses defensivas apresentadas na resposta à acusação, essa, sublinhe-se, a primeira oportunidade de contestação da denúncia no processo judicial (por exemplo: STF, Agravo Regimental (AgR) no HC n.º 233.314; STJ, Agravo Regimental (AgRg) no Recurso em Habeas Corpus (RHC) n.º 89.393). Na prática forense, tal “flexibilidade” comumente resulta em inobservância arbitrária do aludido filtro normativo contra denúncias ilegais, nada obstante os reclames da defesa do acusado nessa manifestação preliminar, cujo exame se autoriza então “conciso”, leia-se genérico e superficial.

Também o é das reiteradas decisões proferidas no STF e no STJ afirmando a legitimidade das denominadas “denúncias gerais” em casos de suposta autoria coletiva de fatos, em tese, criminosos (por exemplo: STF, AgR no HC n.º 186.849; STJ, RHC n.º 77.238), admitindo-se, contrariamente à prescrição do artigo 41 do CPP, o processamento de denúncias elaboradas sem a devida individualização das condutas das pessoas acusadas – com a correspondente explicação de como cada uma delas efetivamente participou (se é que participou) da prática delitiva –, “liberalidade” que a um só tempo inviabiliza a filtragem em questão e o exercício do direito de defesa, favorecendo todos os reflexos antes acentuados.

E também o é, para ficar em três exemplos, da validação mais uma vez por ambas as Cortes de Justiça da aplicação da máxima do in dubio pro societate nessas decisões de recebimento ou rejeição da denúncia pelo juiz que primeiro examiná-la – segundo a qual diante de dúvida sobre a plausibilidade das acusações seria aceitável o início do processo “em favor da sociedade” –, invenção jurídica sem respaldo legal (a lógica constitucional é de decisão da dúvida a favor do acusado) disseminada pelos tribunais (por exemplo: STF, AgR no Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) n.º 1.383.756; STJ, AgRg no RHC n.º 130.300), igualmente responsável pelos efeitos acima destacados.

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Com todas essas faculdades interpretativas à disposição do juiz no momento crucial de análise da admissibilidade das ações criminais à luz das proscrições estabelecidas pelo artigo 395 do CPP, em nada surpreende a cultura judiciária de tolerância com o prosseguimento de acusações indevidas, sob argumentos padronizados de que “a defesa terá oportunidade de comprovar a inocência do acusado durante o processo”, e o impacto severo dela decorrente, seja no volume de processos e na morosidade da prestação jurisdicional, seja na qualidade do trabalho da polícia e do Ministério Público (satisfeitos com menos do que a lei exige), seja na vida de tantas pessoas injustamente acusadas na era das redes sociais e da instantaneidade do fluxo de informações.

Por isso que, mesmo se podendo concordar com a ideia de que a aplicação rigorosa do artigo 395 do CPP tem potencial revolucionário em relação a essas disfuncionalidades do sistema de Justiça – produzidas, em parte, justamente pelo seu descumprimento –, há poucas razões para acreditar que ela vá realmente acontecer. Aliás, por mais paradoxal que possa parecer, se o ato revolucionário esperado do Judiciário é o mero cumprimento da lei, é porque longe estamos da revolução.

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ADVOGADO CRIMINALISTA, É DOUTOR EM DIREITO CRIMINAL PELA PUC-RS

O artigo Aplicar a lei pode ser uma revolução, escrito pelo advogado Nicolau da Rocha Cavalcanti e publicado neste espaço (23/10/2024), toca corajosamente num problema grave do sistema de Justiça criminal brasileiro, que é a má aplicação da lei pelos juízes criminais, tendo como enfoque o artigo 395 do Código de Processo Penal (CPP), base legal contra processos judiciais originados de denúncias ilegais, infundadas ou inconsistentes, na linguagem jurídica “ineptas, sem pressupostos processuais ou sem justa causa”.

Diante de casos tais, como explicado naquele texto, prescreveu o legislador ao juiz o dever de rejeitar prontamente a denúncia, evitando, assim, a instauração de um processo judicial indevido ou inviável contra alguém, com todos os reflexos indesejados decorrentes dessa situação, especialmente ao acusado, mas também ao funcionamento do sistema de Justiça, inclusive no que se refere ao papel do próprio Poder Judiciário – afinal, um processo iniciado nessas condições naturalmente será objeto de habeas corpus (HC) aos tribunais, literalmente se multiplicando, em detrimento do já expressivo volume de processos judiciais tramitando no País e da eficiência da prestação jurisdicional.

Deixando de lado os imensos prejuízos – emocionais, financeiros e reputacionais – impostos a quem se vê obrigado a suportar uma acusação criminal descabida, é particularmente interessante notar que essa consequência institucionalmente adversa inerente ao descumprimento judicial da norma prevista no referido artigo 395 do CPP não apenas não tem sido confrontada pelas instâncias judiciárias superiores – Superior Tribunal de Justiça (STJ)/Supremo Tribunal Federal (STF) –, como também, ao contrário, tem sido sistematicamente estimulada, se não diretamente, por meio de decisões que colateralmente a consolidam e a agravam.

É esse o caso, por exemplo, do entendimento firmado tanto no Supremo Tribunal Federal quanto no Superior Tribunal de Justiça sobre a dispensabilidade de enfrentamento “exaustivo” pelo juiz das teses defensivas apresentadas na resposta à acusação, essa, sublinhe-se, a primeira oportunidade de contestação da denúncia no processo judicial (por exemplo: STF, Agravo Regimental (AgR) no HC n.º 233.314; STJ, Agravo Regimental (AgRg) no Recurso em Habeas Corpus (RHC) n.º 89.393). Na prática forense, tal “flexibilidade” comumente resulta em inobservância arbitrária do aludido filtro normativo contra denúncias ilegais, nada obstante os reclames da defesa do acusado nessa manifestação preliminar, cujo exame se autoriza então “conciso”, leia-se genérico e superficial.

Também o é das reiteradas decisões proferidas no STF e no STJ afirmando a legitimidade das denominadas “denúncias gerais” em casos de suposta autoria coletiva de fatos, em tese, criminosos (por exemplo: STF, AgR no HC n.º 186.849; STJ, RHC n.º 77.238), admitindo-se, contrariamente à prescrição do artigo 41 do CPP, o processamento de denúncias elaboradas sem a devida individualização das condutas das pessoas acusadas – com a correspondente explicação de como cada uma delas efetivamente participou (se é que participou) da prática delitiva –, “liberalidade” que a um só tempo inviabiliza a filtragem em questão e o exercício do direito de defesa, favorecendo todos os reflexos antes acentuados.

E também o é, para ficar em três exemplos, da validação mais uma vez por ambas as Cortes de Justiça da aplicação da máxima do in dubio pro societate nessas decisões de recebimento ou rejeição da denúncia pelo juiz que primeiro examiná-la – segundo a qual diante de dúvida sobre a plausibilidade das acusações seria aceitável o início do processo “em favor da sociedade” –, invenção jurídica sem respaldo legal (a lógica constitucional é de decisão da dúvida a favor do acusado) disseminada pelos tribunais (por exemplo: STF, AgR no Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) n.º 1.383.756; STJ, AgRg no RHC n.º 130.300), igualmente responsável pelos efeitos acima destacados.

Com todas essas faculdades interpretativas à disposição do juiz no momento crucial de análise da admissibilidade das ações criminais à luz das proscrições estabelecidas pelo artigo 395 do CPP, em nada surpreende a cultura judiciária de tolerância com o prosseguimento de acusações indevidas, sob argumentos padronizados de que “a defesa terá oportunidade de comprovar a inocência do acusado durante o processo”, e o impacto severo dela decorrente, seja no volume de processos e na morosidade da prestação jurisdicional, seja na qualidade do trabalho da polícia e do Ministério Público (satisfeitos com menos do que a lei exige), seja na vida de tantas pessoas injustamente acusadas na era das redes sociais e da instantaneidade do fluxo de informações.

Por isso que, mesmo se podendo concordar com a ideia de que a aplicação rigorosa do artigo 395 do CPP tem potencial revolucionário em relação a essas disfuncionalidades do sistema de Justiça – produzidas, em parte, justamente pelo seu descumprimento –, há poucas razões para acreditar que ela vá realmente acontecer. Aliás, por mais paradoxal que possa parecer, se o ato revolucionário esperado do Judiciário é o mero cumprimento da lei, é porque longe estamos da revolução.

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ADVOGADO CRIMINALISTA, É DOUTOR EM DIREITO CRIMINAL PELA PUC-RS

O artigo Aplicar a lei pode ser uma revolução, escrito pelo advogado Nicolau da Rocha Cavalcanti e publicado neste espaço (23/10/2024), toca corajosamente num problema grave do sistema de Justiça criminal brasileiro, que é a má aplicação da lei pelos juízes criminais, tendo como enfoque o artigo 395 do Código de Processo Penal (CPP), base legal contra processos judiciais originados de denúncias ilegais, infundadas ou inconsistentes, na linguagem jurídica “ineptas, sem pressupostos processuais ou sem justa causa”.

Diante de casos tais, como explicado naquele texto, prescreveu o legislador ao juiz o dever de rejeitar prontamente a denúncia, evitando, assim, a instauração de um processo judicial indevido ou inviável contra alguém, com todos os reflexos indesejados decorrentes dessa situação, especialmente ao acusado, mas também ao funcionamento do sistema de Justiça, inclusive no que se refere ao papel do próprio Poder Judiciário – afinal, um processo iniciado nessas condições naturalmente será objeto de habeas corpus (HC) aos tribunais, literalmente se multiplicando, em detrimento do já expressivo volume de processos judiciais tramitando no País e da eficiência da prestação jurisdicional.

Deixando de lado os imensos prejuízos – emocionais, financeiros e reputacionais – impostos a quem se vê obrigado a suportar uma acusação criminal descabida, é particularmente interessante notar que essa consequência institucionalmente adversa inerente ao descumprimento judicial da norma prevista no referido artigo 395 do CPP não apenas não tem sido confrontada pelas instâncias judiciárias superiores – Superior Tribunal de Justiça (STJ)/Supremo Tribunal Federal (STF) –, como também, ao contrário, tem sido sistematicamente estimulada, se não diretamente, por meio de decisões que colateralmente a consolidam e a agravam.

É esse o caso, por exemplo, do entendimento firmado tanto no Supremo Tribunal Federal quanto no Superior Tribunal de Justiça sobre a dispensabilidade de enfrentamento “exaustivo” pelo juiz das teses defensivas apresentadas na resposta à acusação, essa, sublinhe-se, a primeira oportunidade de contestação da denúncia no processo judicial (por exemplo: STF, Agravo Regimental (AgR) no HC n.º 233.314; STJ, Agravo Regimental (AgRg) no Recurso em Habeas Corpus (RHC) n.º 89.393). Na prática forense, tal “flexibilidade” comumente resulta em inobservância arbitrária do aludido filtro normativo contra denúncias ilegais, nada obstante os reclames da defesa do acusado nessa manifestação preliminar, cujo exame se autoriza então “conciso”, leia-se genérico e superficial.

Também o é das reiteradas decisões proferidas no STF e no STJ afirmando a legitimidade das denominadas “denúncias gerais” em casos de suposta autoria coletiva de fatos, em tese, criminosos (por exemplo: STF, AgR no HC n.º 186.849; STJ, RHC n.º 77.238), admitindo-se, contrariamente à prescrição do artigo 41 do CPP, o processamento de denúncias elaboradas sem a devida individualização das condutas das pessoas acusadas – com a correspondente explicação de como cada uma delas efetivamente participou (se é que participou) da prática delitiva –, “liberalidade” que a um só tempo inviabiliza a filtragem em questão e o exercício do direito de defesa, favorecendo todos os reflexos antes acentuados.

E também o é, para ficar em três exemplos, da validação mais uma vez por ambas as Cortes de Justiça da aplicação da máxima do in dubio pro societate nessas decisões de recebimento ou rejeição da denúncia pelo juiz que primeiro examiná-la – segundo a qual diante de dúvida sobre a plausibilidade das acusações seria aceitável o início do processo “em favor da sociedade” –, invenção jurídica sem respaldo legal (a lógica constitucional é de decisão da dúvida a favor do acusado) disseminada pelos tribunais (por exemplo: STF, AgR no Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) n.º 1.383.756; STJ, AgRg no RHC n.º 130.300), igualmente responsável pelos efeitos acima destacados.

Com todas essas faculdades interpretativas à disposição do juiz no momento crucial de análise da admissibilidade das ações criminais à luz das proscrições estabelecidas pelo artigo 395 do CPP, em nada surpreende a cultura judiciária de tolerância com o prosseguimento de acusações indevidas, sob argumentos padronizados de que “a defesa terá oportunidade de comprovar a inocência do acusado durante o processo”, e o impacto severo dela decorrente, seja no volume de processos e na morosidade da prestação jurisdicional, seja na qualidade do trabalho da polícia e do Ministério Público (satisfeitos com menos do que a lei exige), seja na vida de tantas pessoas injustamente acusadas na era das redes sociais e da instantaneidade do fluxo de informações.

Por isso que, mesmo se podendo concordar com a ideia de que a aplicação rigorosa do artigo 395 do CPP tem potencial revolucionário em relação a essas disfuncionalidades do sistema de Justiça – produzidas, em parte, justamente pelo seu descumprimento –, há poucas razões para acreditar que ela vá realmente acontecer. Aliás, por mais paradoxal que possa parecer, se o ato revolucionário esperado do Judiciário é o mero cumprimento da lei, é porque longe estamos da revolução.

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Advogado criminalista, é doutor em Direito Criminal pela PUC-RS

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