Opinião|Falas fora de lugar


Em vez de ‘som e fúria, sem sentido algum’, poderíamos ouvir coisa melhor

Por Eugênio Bucci

Luiz Fux não tem nada em comum com Antônio Palocci. O primeiro integra o Supremo Tribunal Federal (STF), de onde profere julgamentos com base na Constituição federal. O segundo habita uma cela de prisão, de onde se candidata a fechar acordo de delação premiada. Esta semana, entretanto, a voz de um e a de outro soaram juntas no mesmo timbre, um timbre ruim: tanto a voz de Fux como a de Palocci se fizeram ouvir em falas fora de lugar.

O episódio merece atenção porque, se há um traço característico dos debates públicos que se esboroam (como vem ocorrendo no Brasil), esse traço é exatamente as falas fora de lugar – e de tempo. Os papéis dos agentes se embaralham e os discursos se extraviam. É mais ou menos como se, numa peça teatral, os personagens trocassem aleatoriamente suas falas uns com os outros, a ponto de a plateia não entender o que se passa no palco. É assim na cena nacional. Os diálogos se esvaziam de sentido, o público se confunde ainda mais e as instituições que deveriam servir de âncoras da democracia – como o Poder Judiciário e os partidos políticos – se perdem de seu propósito. Sem bom senso, prudência e equilíbrio, resta a casa da mãe Joana.

Fixemo-nos no que se passou esta semana. Na terça-feira o ministro Luiz Fux, ao votar pelo afastamento Aécio Neves do Senado Federal (no julgamento da Primeira Turma do STF que, por 3 votos a 2, suspendeu o exercício do mandato do senador), falou como se fosse analista político e se permitiu pontificar sobre qual seria o “gesto de grandeza” recomendado a um senador. Com seu comentário, fugiu à liturgia e ao logos que deveriam orientar o juízo de um magistrado. Pergunta-se: a Constituição federal, por acaso, confere poderes para os juízes da Corte Suprema atuarem no ramo de aconselhamento político a senadores?

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Do outro lado do País, Antônio Palocci, na mesma terça-feira, após ser informado de que fora instaurado contra ele processo disciplinar dentro do Partido dos Trabalhadores (PT) ameaçando-o de expulsão, divulgou carta endereçada à presidente da sigla em que pede sua desfiliação e recomenda ao partido que faça uma autocrítica. Pergunta-se: Palocci, sendo réu no maior escândalo de corrupção da nossa era, já tendo confessado vários “ilícitos” (palavra reincidente em seu vocabulário), teria credibilidade para prescrever condutas éticas a uma agremiação partidária? Com que autoridade moral ele adota essa fala? Basta-lhe a autoridade de réu confesso?

Por certo, as duas falas deslocadas são bem diferentes entre si, mas são equivalentes no desserviço que prestam ao não esclarecerem a opinião pública. A primeira, de Luiz Fux, pode ser lida como um descuido oral, um excesso verbal, quase um lapso – que, no entanto, provoca efeitos deletérios, pois reforça a imagem da Justiça como um instrumento a serviço da opinião pessoal daquele que enverga a toga. A segunda, de Palocci, pode ser entendida como uma manifestação extemporânea, ou mesmo anacrônica (se queria mesmo sanear as práticas de seu partido, por que o ex-ministro só resolveu falar agora, quando é tarde demais para todo mundo?), que do mesmo modo convulsiona ainda mais esse assunto já por demais conturbado que é a ética na política.

A carta de Palocci é legítima, por certo. Seu autor tem direito de divulgá-la – e é bom que o faça, antes tarde do que nunca –, mas ela dificilmente vai mudar (ou sanear) o PT. Só o que vai acarretar é mais ódio (ódio contra ele mesmo, Palocci, dentro do PT; ódio contra Lula, fora do PT). Enfim, é mais uma fala fora de lugar, isto é, Palocci não está no melhor lugar para dar receitas de moralidade, de verdade e de transparência – e isso embanana todo o resto.

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Sigamos adiante. Leiamos um trecho da manifestação de Fux durante o julgamento: “Muito se elogia (Aécio Neves) por ter saído da presidência do partido. Ele seria mais elogiado se tivesse se despedido ali do mandato. Já que ele não teve esse gesto de grandeza, nós vamos auxiliá-lo a pedir uma licença para sair do Senado Federal, para que ele possa comprovar à sociedade a sua ausência de culpa no episódio que marcou de maneira dramática sua carreira política”. Ou bem Fux acredita que sua manifestação tem amparo na Constituição (crença bastante improvável, posto que a Constituição não incumbe o Judiciário de “auxiliar” senadores), ou ele foi simplesmente irônico, o que é pior ainda. Pergunta-se: em que esse voto fora de lugar ajuda a educar a sociedade sobre o papel da Justiça?

Voltemos à carta de Palocci. No texto ele diz estranhar que seja julgado pelo partido não por ter incorrido em “ilícitos”, mas simplesmente por ter exposto a imagem do ex-presidente Lula. Palocci tem absoluta razão nesse ponto – e em vários outros. Coerentemente, ele pergunta: “Somos partido político sob a liderança de pessoas de carne e osso ou somos uma seita guiada por uma pretensa divindade?”.

Em outras passagens, o documento perde força. Quando o ex-ministro acusa diretamente Lula de “sucumbir ao pior da política no melhor dos momentos de seu governo”, não apresenta evidências novas. Ainda que fatos já conhecidos (como o recebimento de presentes de altíssimo valor pelo ex-presidente) corroborem a acusação, faltam provas. A fatídica epístola de Palocci aos petistas não supera o caos presente, apenas incendeia ainda mais a guerra de acusações ensandecidas a que se reduziu o debate partidário. Para piorar, a resposta dos petistas é outra fala fora de lugar, que não qualifica a instituição partidária, não oferece autocrítica, não aposta na transparência e apenas idolatra a figura de Lula (no que, involuntária e pateticamente, dá razão a Palocci).

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Para ultrapassar a guerra acusatória precisamos de falas bem postas, conscientes das instituições que representam. Em vez de “som e fúria, sem sentido algum”, poderíamos ouvir coisa melhor.

*Jornalista, é professor da ECA-USP

Luiz Fux não tem nada em comum com Antônio Palocci. O primeiro integra o Supremo Tribunal Federal (STF), de onde profere julgamentos com base na Constituição federal. O segundo habita uma cela de prisão, de onde se candidata a fechar acordo de delação premiada. Esta semana, entretanto, a voz de um e a de outro soaram juntas no mesmo timbre, um timbre ruim: tanto a voz de Fux como a de Palocci se fizeram ouvir em falas fora de lugar.

O episódio merece atenção porque, se há um traço característico dos debates públicos que se esboroam (como vem ocorrendo no Brasil), esse traço é exatamente as falas fora de lugar – e de tempo. Os papéis dos agentes se embaralham e os discursos se extraviam. É mais ou menos como se, numa peça teatral, os personagens trocassem aleatoriamente suas falas uns com os outros, a ponto de a plateia não entender o que se passa no palco. É assim na cena nacional. Os diálogos se esvaziam de sentido, o público se confunde ainda mais e as instituições que deveriam servir de âncoras da democracia – como o Poder Judiciário e os partidos políticos – se perdem de seu propósito. Sem bom senso, prudência e equilíbrio, resta a casa da mãe Joana.

Fixemo-nos no que se passou esta semana. Na terça-feira o ministro Luiz Fux, ao votar pelo afastamento Aécio Neves do Senado Federal (no julgamento da Primeira Turma do STF que, por 3 votos a 2, suspendeu o exercício do mandato do senador), falou como se fosse analista político e se permitiu pontificar sobre qual seria o “gesto de grandeza” recomendado a um senador. Com seu comentário, fugiu à liturgia e ao logos que deveriam orientar o juízo de um magistrado. Pergunta-se: a Constituição federal, por acaso, confere poderes para os juízes da Corte Suprema atuarem no ramo de aconselhamento político a senadores?

Do outro lado do País, Antônio Palocci, na mesma terça-feira, após ser informado de que fora instaurado contra ele processo disciplinar dentro do Partido dos Trabalhadores (PT) ameaçando-o de expulsão, divulgou carta endereçada à presidente da sigla em que pede sua desfiliação e recomenda ao partido que faça uma autocrítica. Pergunta-se: Palocci, sendo réu no maior escândalo de corrupção da nossa era, já tendo confessado vários “ilícitos” (palavra reincidente em seu vocabulário), teria credibilidade para prescrever condutas éticas a uma agremiação partidária? Com que autoridade moral ele adota essa fala? Basta-lhe a autoridade de réu confesso?

Por certo, as duas falas deslocadas são bem diferentes entre si, mas são equivalentes no desserviço que prestam ao não esclarecerem a opinião pública. A primeira, de Luiz Fux, pode ser lida como um descuido oral, um excesso verbal, quase um lapso – que, no entanto, provoca efeitos deletérios, pois reforça a imagem da Justiça como um instrumento a serviço da opinião pessoal daquele que enverga a toga. A segunda, de Palocci, pode ser entendida como uma manifestação extemporânea, ou mesmo anacrônica (se queria mesmo sanear as práticas de seu partido, por que o ex-ministro só resolveu falar agora, quando é tarde demais para todo mundo?), que do mesmo modo convulsiona ainda mais esse assunto já por demais conturbado que é a ética na política.

A carta de Palocci é legítima, por certo. Seu autor tem direito de divulgá-la – e é bom que o faça, antes tarde do que nunca –, mas ela dificilmente vai mudar (ou sanear) o PT. Só o que vai acarretar é mais ódio (ódio contra ele mesmo, Palocci, dentro do PT; ódio contra Lula, fora do PT). Enfim, é mais uma fala fora de lugar, isto é, Palocci não está no melhor lugar para dar receitas de moralidade, de verdade e de transparência – e isso embanana todo o resto.

Sigamos adiante. Leiamos um trecho da manifestação de Fux durante o julgamento: “Muito se elogia (Aécio Neves) por ter saído da presidência do partido. Ele seria mais elogiado se tivesse se despedido ali do mandato. Já que ele não teve esse gesto de grandeza, nós vamos auxiliá-lo a pedir uma licença para sair do Senado Federal, para que ele possa comprovar à sociedade a sua ausência de culpa no episódio que marcou de maneira dramática sua carreira política”. Ou bem Fux acredita que sua manifestação tem amparo na Constituição (crença bastante improvável, posto que a Constituição não incumbe o Judiciário de “auxiliar” senadores), ou ele foi simplesmente irônico, o que é pior ainda. Pergunta-se: em que esse voto fora de lugar ajuda a educar a sociedade sobre o papel da Justiça?

Voltemos à carta de Palocci. No texto ele diz estranhar que seja julgado pelo partido não por ter incorrido em “ilícitos”, mas simplesmente por ter exposto a imagem do ex-presidente Lula. Palocci tem absoluta razão nesse ponto – e em vários outros. Coerentemente, ele pergunta: “Somos partido político sob a liderança de pessoas de carne e osso ou somos uma seita guiada por uma pretensa divindade?”.

Em outras passagens, o documento perde força. Quando o ex-ministro acusa diretamente Lula de “sucumbir ao pior da política no melhor dos momentos de seu governo”, não apresenta evidências novas. Ainda que fatos já conhecidos (como o recebimento de presentes de altíssimo valor pelo ex-presidente) corroborem a acusação, faltam provas. A fatídica epístola de Palocci aos petistas não supera o caos presente, apenas incendeia ainda mais a guerra de acusações ensandecidas a que se reduziu o debate partidário. Para piorar, a resposta dos petistas é outra fala fora de lugar, que não qualifica a instituição partidária, não oferece autocrítica, não aposta na transparência e apenas idolatra a figura de Lula (no que, involuntária e pateticamente, dá razão a Palocci).

Para ultrapassar a guerra acusatória precisamos de falas bem postas, conscientes das instituições que representam. Em vez de “som e fúria, sem sentido algum”, poderíamos ouvir coisa melhor.

*Jornalista, é professor da ECA-USP

Luiz Fux não tem nada em comum com Antônio Palocci. O primeiro integra o Supremo Tribunal Federal (STF), de onde profere julgamentos com base na Constituição federal. O segundo habita uma cela de prisão, de onde se candidata a fechar acordo de delação premiada. Esta semana, entretanto, a voz de um e a de outro soaram juntas no mesmo timbre, um timbre ruim: tanto a voz de Fux como a de Palocci se fizeram ouvir em falas fora de lugar.

O episódio merece atenção porque, se há um traço característico dos debates públicos que se esboroam (como vem ocorrendo no Brasil), esse traço é exatamente as falas fora de lugar – e de tempo. Os papéis dos agentes se embaralham e os discursos se extraviam. É mais ou menos como se, numa peça teatral, os personagens trocassem aleatoriamente suas falas uns com os outros, a ponto de a plateia não entender o que se passa no palco. É assim na cena nacional. Os diálogos se esvaziam de sentido, o público se confunde ainda mais e as instituições que deveriam servir de âncoras da democracia – como o Poder Judiciário e os partidos políticos – se perdem de seu propósito. Sem bom senso, prudência e equilíbrio, resta a casa da mãe Joana.

Fixemo-nos no que se passou esta semana. Na terça-feira o ministro Luiz Fux, ao votar pelo afastamento Aécio Neves do Senado Federal (no julgamento da Primeira Turma do STF que, por 3 votos a 2, suspendeu o exercício do mandato do senador), falou como se fosse analista político e se permitiu pontificar sobre qual seria o “gesto de grandeza” recomendado a um senador. Com seu comentário, fugiu à liturgia e ao logos que deveriam orientar o juízo de um magistrado. Pergunta-se: a Constituição federal, por acaso, confere poderes para os juízes da Corte Suprema atuarem no ramo de aconselhamento político a senadores?

Do outro lado do País, Antônio Palocci, na mesma terça-feira, após ser informado de que fora instaurado contra ele processo disciplinar dentro do Partido dos Trabalhadores (PT) ameaçando-o de expulsão, divulgou carta endereçada à presidente da sigla em que pede sua desfiliação e recomenda ao partido que faça uma autocrítica. Pergunta-se: Palocci, sendo réu no maior escândalo de corrupção da nossa era, já tendo confessado vários “ilícitos” (palavra reincidente em seu vocabulário), teria credibilidade para prescrever condutas éticas a uma agremiação partidária? Com que autoridade moral ele adota essa fala? Basta-lhe a autoridade de réu confesso?

Por certo, as duas falas deslocadas são bem diferentes entre si, mas são equivalentes no desserviço que prestam ao não esclarecerem a opinião pública. A primeira, de Luiz Fux, pode ser lida como um descuido oral, um excesso verbal, quase um lapso – que, no entanto, provoca efeitos deletérios, pois reforça a imagem da Justiça como um instrumento a serviço da opinião pessoal daquele que enverga a toga. A segunda, de Palocci, pode ser entendida como uma manifestação extemporânea, ou mesmo anacrônica (se queria mesmo sanear as práticas de seu partido, por que o ex-ministro só resolveu falar agora, quando é tarde demais para todo mundo?), que do mesmo modo convulsiona ainda mais esse assunto já por demais conturbado que é a ética na política.

A carta de Palocci é legítima, por certo. Seu autor tem direito de divulgá-la – e é bom que o faça, antes tarde do que nunca –, mas ela dificilmente vai mudar (ou sanear) o PT. Só o que vai acarretar é mais ódio (ódio contra ele mesmo, Palocci, dentro do PT; ódio contra Lula, fora do PT). Enfim, é mais uma fala fora de lugar, isto é, Palocci não está no melhor lugar para dar receitas de moralidade, de verdade e de transparência – e isso embanana todo o resto.

Sigamos adiante. Leiamos um trecho da manifestação de Fux durante o julgamento: “Muito se elogia (Aécio Neves) por ter saído da presidência do partido. Ele seria mais elogiado se tivesse se despedido ali do mandato. Já que ele não teve esse gesto de grandeza, nós vamos auxiliá-lo a pedir uma licença para sair do Senado Federal, para que ele possa comprovar à sociedade a sua ausência de culpa no episódio que marcou de maneira dramática sua carreira política”. Ou bem Fux acredita que sua manifestação tem amparo na Constituição (crença bastante improvável, posto que a Constituição não incumbe o Judiciário de “auxiliar” senadores), ou ele foi simplesmente irônico, o que é pior ainda. Pergunta-se: em que esse voto fora de lugar ajuda a educar a sociedade sobre o papel da Justiça?

Voltemos à carta de Palocci. No texto ele diz estranhar que seja julgado pelo partido não por ter incorrido em “ilícitos”, mas simplesmente por ter exposto a imagem do ex-presidente Lula. Palocci tem absoluta razão nesse ponto – e em vários outros. Coerentemente, ele pergunta: “Somos partido político sob a liderança de pessoas de carne e osso ou somos uma seita guiada por uma pretensa divindade?”.

Em outras passagens, o documento perde força. Quando o ex-ministro acusa diretamente Lula de “sucumbir ao pior da política no melhor dos momentos de seu governo”, não apresenta evidências novas. Ainda que fatos já conhecidos (como o recebimento de presentes de altíssimo valor pelo ex-presidente) corroborem a acusação, faltam provas. A fatídica epístola de Palocci aos petistas não supera o caos presente, apenas incendeia ainda mais a guerra de acusações ensandecidas a que se reduziu o debate partidário. Para piorar, a resposta dos petistas é outra fala fora de lugar, que não qualifica a instituição partidária, não oferece autocrítica, não aposta na transparência e apenas idolatra a figura de Lula (no que, involuntária e pateticamente, dá razão a Palocci).

Para ultrapassar a guerra acusatória precisamos de falas bem postas, conscientes das instituições que representam. Em vez de “som e fúria, sem sentido algum”, poderíamos ouvir coisa melhor.

*Jornalista, é professor da ECA-USP

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