Opinião|Falso progressismo na América do Sul


Por SERGIO FAUSTO

Diante da crise que se abate sobre os governos autodenominados “progressistas”, seus partidários adotam uma espécie de resposta-padrão. Ela consiste em atribuir a responsabilidade pela crise a fatores econômicos externos (o fim do superciclo de commodities) e a adversários internos interessados em desestabilizar esses governos. A fábula ganha ares épicos ao alertar sobre os riscos do retorno de forças de direita ao poder. A épica farsesca varia, em estilo e intensidade, conforme se encene no Brasil, na Argentina, até recentemente, ou na Venezuela, onde alcança as raias do delírio.

Basta alguma isenção para concluir que as razões fundamentais da crise foram produzidas pelos próprios governos agora em apuros. É suficiente dizer que países vizinhos igualmente prejudicados pelas mesmas mudanças no ambiente econômico internacional não experimentam nada parecido com a crise que se abate sobre Brasil, Argentina e Venezuela, tenham eles governos de centro-esquerda, como o Chile, ou de centro, como a Colômbia, para não falar da Bolívia.

Tão falso quanto é atribuir a aguda crise política a ações desestabilizadoras de grupos internos de elite empenhados em apear governos “progressistas” do poder por vias não democráticas. De novo a realidade mostra o contrário. Nos três casos, as oposições têm jogado dentro das regras do jogo, mesmo quando elas são, como flagrantemente ocorre na Venezuela, torcidas e distorcidas em favor do governo. A verdade é que nesses países as oposições representam hoje o sentimento de mudança da maioria da população e do eleitorado, como se comprovou na Argentina.

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Não apenas os grupos políticos dominantes nos últimos vários anos estão sendo derrotados, pela ineficiência de seus governos, mas as suas próprias credenciais “progressistas” são questionadas, pelos níveis elevados de partidarização do Estado, por favorecimento de empresas amigas, cooptação da sociedade civil e corrupção da vida pública que os caracteriza, quando não a sistemática violação dos direitos humanos, a exemplo do que acontece na Venezuela.

Seria de “direita” quem se opõe a esse estado de coisas? E “progressista” quem o defende? Mereceriam esse adjetivo de conotação positiva o lulopetismo, o kirchnerismo e o chavismo? E a qualificação “de direita” as coalizões e os programas políticos que levaram Mauricio Macri a vencer as eleições presidenciais na Argentina, Aécio Neves a quase vencê-las no Brasil e a Mesa da Unidade Democrática a conquistar a maioria da Assembleia Nacional na Venezuela?

Se o lulopetismo e o kirchnerismo tiveram elementos progressistas – compromisso com a redução da pobreza, ampliação dos direitos civis e esclarecimento cabal das violações de direitos humanos nas respectivas ditaduras militares –, eles os perderam à medida que enveredaram pelos descaminhos acima apontados. Nesse passo, favoreceram novas e velhas minorias sob a ilusão de cuidar dos interesses das maiorias com políticas distributivistas de efeito temporário e, ao mesmo tempo, debilitaram as instituições e os valores republicanos e democráticos. Já o chavismo desde cedo mal disfarçava sua vocação autoritária e militarista.

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Caídos do altar do “progressismo”, resta-lhes acenar com o fantasma do retrocesso. Sob novas vestes, a direita autoritária, ultraliberal e moralmente conservadora estaria prestes a aproveitar-se da crise para, “por las buenas o por las malas”, retomar as rédeas do poder. Acontece que os personagens reais que lideram as oposições aos governos em declínio não se encaixam no papel que lhes foi designado nessa trama farsesca. Eles não representam uma volta ao passado, e sim os processos coletivos de aprendizagem e mudança que se deram na América do Sul a partir do final das ditaduras militares.

Macri fez toda a sua vida política em democracia. Não reivindica o “neoliberalismo” do período Menem nem fez da eliminação de programas assistenciais a sua bandeira. Tampouco é expressão da direita católica argentina (aliás, tradicional aliada do peronismo). Verdade que seu partido votou contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, projeto do governo anterior, afinal aprovado. Mas agora já reconhece que, também nesse tema, a sociedade mudou.

O recém-empossado governo argentino é expressão, ainda por se consolidar, de um novo centro democrático, que aposta na superação de um estilo danoso de fazer política (“nós” contra “eles”) e na construção de um consenso social que gravite em torno das lições das últimas três décadas: democracia representativa, que pode e deve ser aperfeiçoada por formas de democracia direta e deliberativa, mas não substituída por elas; estabilidade econômica, que requer equilíbrio fiscal como condição necessária; economia de mercado regulada e capaz de participar da competição global; um Estado Democrático de Direito eficiente para mitigar as falhas de mercado e as falhas de governo e comprometido com a expansão da cidadania.

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Não tenho dúvida de que mais cedo ou mais tarde o Brasil se moverá na mesma direção.

Mais difícil é a situação da Venezuela, por óbvias razões. Também lá se pinta a oposição como se “de direita” fosse. Mas tanto Leopoldo López, preso há 20 meses e cujo partido é filiado à Internacional Socialista, como Henrique Capriles, líder do partido Primero Justicia, agremiação que tem sua origem na mobilização de estudantes e intelectuais, antes mesmo do chavismo, pelo fim de uma sociedade de privilégios, são expressão de um novo centro democrático em formação.

Ao convocar fantasmas do passado para auxiliá-los a impedir a mudança que se avizinha, as forças políticas dominantes na América do Sul ao longo deste ainda curto século 21 revelam ter-se transformado no oposto do que alegavam ou prometiam ser. Se um dia foram progressistas, elas se tornaram conservadoras, quando não reacionárias.

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* SERGIO FAUSTO É SUPERINTENDENTE EXECUTIVO DO iFHC, COLABORADOR DO LATIN AMERICAN PROGRAM DO BAKER INSTITUTE OF PUBLIC POLICY DA RICE UNIVERSITY, É MEMBRO DO GACINT-USP. E-MAIL: SFAUSTO40@HOTMAIL.COM

Diante da crise que se abate sobre os governos autodenominados “progressistas”, seus partidários adotam uma espécie de resposta-padrão. Ela consiste em atribuir a responsabilidade pela crise a fatores econômicos externos (o fim do superciclo de commodities) e a adversários internos interessados em desestabilizar esses governos. A fábula ganha ares épicos ao alertar sobre os riscos do retorno de forças de direita ao poder. A épica farsesca varia, em estilo e intensidade, conforme se encene no Brasil, na Argentina, até recentemente, ou na Venezuela, onde alcança as raias do delírio.

Basta alguma isenção para concluir que as razões fundamentais da crise foram produzidas pelos próprios governos agora em apuros. É suficiente dizer que países vizinhos igualmente prejudicados pelas mesmas mudanças no ambiente econômico internacional não experimentam nada parecido com a crise que se abate sobre Brasil, Argentina e Venezuela, tenham eles governos de centro-esquerda, como o Chile, ou de centro, como a Colômbia, para não falar da Bolívia.

Tão falso quanto é atribuir a aguda crise política a ações desestabilizadoras de grupos internos de elite empenhados em apear governos “progressistas” do poder por vias não democráticas. De novo a realidade mostra o contrário. Nos três casos, as oposições têm jogado dentro das regras do jogo, mesmo quando elas são, como flagrantemente ocorre na Venezuela, torcidas e distorcidas em favor do governo. A verdade é que nesses países as oposições representam hoje o sentimento de mudança da maioria da população e do eleitorado, como se comprovou na Argentina.

Não apenas os grupos políticos dominantes nos últimos vários anos estão sendo derrotados, pela ineficiência de seus governos, mas as suas próprias credenciais “progressistas” são questionadas, pelos níveis elevados de partidarização do Estado, por favorecimento de empresas amigas, cooptação da sociedade civil e corrupção da vida pública que os caracteriza, quando não a sistemática violação dos direitos humanos, a exemplo do que acontece na Venezuela.

Seria de “direita” quem se opõe a esse estado de coisas? E “progressista” quem o defende? Mereceriam esse adjetivo de conotação positiva o lulopetismo, o kirchnerismo e o chavismo? E a qualificação “de direita” as coalizões e os programas políticos que levaram Mauricio Macri a vencer as eleições presidenciais na Argentina, Aécio Neves a quase vencê-las no Brasil e a Mesa da Unidade Democrática a conquistar a maioria da Assembleia Nacional na Venezuela?

Se o lulopetismo e o kirchnerismo tiveram elementos progressistas – compromisso com a redução da pobreza, ampliação dos direitos civis e esclarecimento cabal das violações de direitos humanos nas respectivas ditaduras militares –, eles os perderam à medida que enveredaram pelos descaminhos acima apontados. Nesse passo, favoreceram novas e velhas minorias sob a ilusão de cuidar dos interesses das maiorias com políticas distributivistas de efeito temporário e, ao mesmo tempo, debilitaram as instituições e os valores republicanos e democráticos. Já o chavismo desde cedo mal disfarçava sua vocação autoritária e militarista.

Caídos do altar do “progressismo”, resta-lhes acenar com o fantasma do retrocesso. Sob novas vestes, a direita autoritária, ultraliberal e moralmente conservadora estaria prestes a aproveitar-se da crise para, “por las buenas o por las malas”, retomar as rédeas do poder. Acontece que os personagens reais que lideram as oposições aos governos em declínio não se encaixam no papel que lhes foi designado nessa trama farsesca. Eles não representam uma volta ao passado, e sim os processos coletivos de aprendizagem e mudança que se deram na América do Sul a partir do final das ditaduras militares.

Macri fez toda a sua vida política em democracia. Não reivindica o “neoliberalismo” do período Menem nem fez da eliminação de programas assistenciais a sua bandeira. Tampouco é expressão da direita católica argentina (aliás, tradicional aliada do peronismo). Verdade que seu partido votou contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, projeto do governo anterior, afinal aprovado. Mas agora já reconhece que, também nesse tema, a sociedade mudou.

O recém-empossado governo argentino é expressão, ainda por se consolidar, de um novo centro democrático, que aposta na superação de um estilo danoso de fazer política (“nós” contra “eles”) e na construção de um consenso social que gravite em torno das lições das últimas três décadas: democracia representativa, que pode e deve ser aperfeiçoada por formas de democracia direta e deliberativa, mas não substituída por elas; estabilidade econômica, que requer equilíbrio fiscal como condição necessária; economia de mercado regulada e capaz de participar da competição global; um Estado Democrático de Direito eficiente para mitigar as falhas de mercado e as falhas de governo e comprometido com a expansão da cidadania.

Não tenho dúvida de que mais cedo ou mais tarde o Brasil se moverá na mesma direção.

Mais difícil é a situação da Venezuela, por óbvias razões. Também lá se pinta a oposição como se “de direita” fosse. Mas tanto Leopoldo López, preso há 20 meses e cujo partido é filiado à Internacional Socialista, como Henrique Capriles, líder do partido Primero Justicia, agremiação que tem sua origem na mobilização de estudantes e intelectuais, antes mesmo do chavismo, pelo fim de uma sociedade de privilégios, são expressão de um novo centro democrático em formação.

Ao convocar fantasmas do passado para auxiliá-los a impedir a mudança que se avizinha, as forças políticas dominantes na América do Sul ao longo deste ainda curto século 21 revelam ter-se transformado no oposto do que alegavam ou prometiam ser. Se um dia foram progressistas, elas se tornaram conservadoras, quando não reacionárias.

* SERGIO FAUSTO É SUPERINTENDENTE EXECUTIVO DO iFHC, COLABORADOR DO LATIN AMERICAN PROGRAM DO BAKER INSTITUTE OF PUBLIC POLICY DA RICE UNIVERSITY, É MEMBRO DO GACINT-USP. E-MAIL: SFAUSTO40@HOTMAIL.COM

Diante da crise que se abate sobre os governos autodenominados “progressistas”, seus partidários adotam uma espécie de resposta-padrão. Ela consiste em atribuir a responsabilidade pela crise a fatores econômicos externos (o fim do superciclo de commodities) e a adversários internos interessados em desestabilizar esses governos. A fábula ganha ares épicos ao alertar sobre os riscos do retorno de forças de direita ao poder. A épica farsesca varia, em estilo e intensidade, conforme se encene no Brasil, na Argentina, até recentemente, ou na Venezuela, onde alcança as raias do delírio.

Basta alguma isenção para concluir que as razões fundamentais da crise foram produzidas pelos próprios governos agora em apuros. É suficiente dizer que países vizinhos igualmente prejudicados pelas mesmas mudanças no ambiente econômico internacional não experimentam nada parecido com a crise que se abate sobre Brasil, Argentina e Venezuela, tenham eles governos de centro-esquerda, como o Chile, ou de centro, como a Colômbia, para não falar da Bolívia.

Tão falso quanto é atribuir a aguda crise política a ações desestabilizadoras de grupos internos de elite empenhados em apear governos “progressistas” do poder por vias não democráticas. De novo a realidade mostra o contrário. Nos três casos, as oposições têm jogado dentro das regras do jogo, mesmo quando elas são, como flagrantemente ocorre na Venezuela, torcidas e distorcidas em favor do governo. A verdade é que nesses países as oposições representam hoje o sentimento de mudança da maioria da população e do eleitorado, como se comprovou na Argentina.

Não apenas os grupos políticos dominantes nos últimos vários anos estão sendo derrotados, pela ineficiência de seus governos, mas as suas próprias credenciais “progressistas” são questionadas, pelos níveis elevados de partidarização do Estado, por favorecimento de empresas amigas, cooptação da sociedade civil e corrupção da vida pública que os caracteriza, quando não a sistemática violação dos direitos humanos, a exemplo do que acontece na Venezuela.

Seria de “direita” quem se opõe a esse estado de coisas? E “progressista” quem o defende? Mereceriam esse adjetivo de conotação positiva o lulopetismo, o kirchnerismo e o chavismo? E a qualificação “de direita” as coalizões e os programas políticos que levaram Mauricio Macri a vencer as eleições presidenciais na Argentina, Aécio Neves a quase vencê-las no Brasil e a Mesa da Unidade Democrática a conquistar a maioria da Assembleia Nacional na Venezuela?

Se o lulopetismo e o kirchnerismo tiveram elementos progressistas – compromisso com a redução da pobreza, ampliação dos direitos civis e esclarecimento cabal das violações de direitos humanos nas respectivas ditaduras militares –, eles os perderam à medida que enveredaram pelos descaminhos acima apontados. Nesse passo, favoreceram novas e velhas minorias sob a ilusão de cuidar dos interesses das maiorias com políticas distributivistas de efeito temporário e, ao mesmo tempo, debilitaram as instituições e os valores republicanos e democráticos. Já o chavismo desde cedo mal disfarçava sua vocação autoritária e militarista.

Caídos do altar do “progressismo”, resta-lhes acenar com o fantasma do retrocesso. Sob novas vestes, a direita autoritária, ultraliberal e moralmente conservadora estaria prestes a aproveitar-se da crise para, “por las buenas o por las malas”, retomar as rédeas do poder. Acontece que os personagens reais que lideram as oposições aos governos em declínio não se encaixam no papel que lhes foi designado nessa trama farsesca. Eles não representam uma volta ao passado, e sim os processos coletivos de aprendizagem e mudança que se deram na América do Sul a partir do final das ditaduras militares.

Macri fez toda a sua vida política em democracia. Não reivindica o “neoliberalismo” do período Menem nem fez da eliminação de programas assistenciais a sua bandeira. Tampouco é expressão da direita católica argentina (aliás, tradicional aliada do peronismo). Verdade que seu partido votou contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, projeto do governo anterior, afinal aprovado. Mas agora já reconhece que, também nesse tema, a sociedade mudou.

O recém-empossado governo argentino é expressão, ainda por se consolidar, de um novo centro democrático, que aposta na superação de um estilo danoso de fazer política (“nós” contra “eles”) e na construção de um consenso social que gravite em torno das lições das últimas três décadas: democracia representativa, que pode e deve ser aperfeiçoada por formas de democracia direta e deliberativa, mas não substituída por elas; estabilidade econômica, que requer equilíbrio fiscal como condição necessária; economia de mercado regulada e capaz de participar da competição global; um Estado Democrático de Direito eficiente para mitigar as falhas de mercado e as falhas de governo e comprometido com a expansão da cidadania.

Não tenho dúvida de que mais cedo ou mais tarde o Brasil se moverá na mesma direção.

Mais difícil é a situação da Venezuela, por óbvias razões. Também lá se pinta a oposição como se “de direita” fosse. Mas tanto Leopoldo López, preso há 20 meses e cujo partido é filiado à Internacional Socialista, como Henrique Capriles, líder do partido Primero Justicia, agremiação que tem sua origem na mobilização de estudantes e intelectuais, antes mesmo do chavismo, pelo fim de uma sociedade de privilégios, são expressão de um novo centro democrático em formação.

Ao convocar fantasmas do passado para auxiliá-los a impedir a mudança que se avizinha, as forças políticas dominantes na América do Sul ao longo deste ainda curto século 21 revelam ter-se transformado no oposto do que alegavam ou prometiam ser. Se um dia foram progressistas, elas se tornaram conservadoras, quando não reacionárias.

* SERGIO FAUSTO É SUPERINTENDENTE EXECUTIVO DO iFHC, COLABORADOR DO LATIN AMERICAN PROGRAM DO BAKER INSTITUTE OF PUBLIC POLICY DA RICE UNIVERSITY, É MEMBRO DO GACINT-USP. E-MAIL: SFAUSTO40@HOTMAIL.COM

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