Opinião|G-20 Brasil: uma oportunidade para definirmos como queremos decidir sobre tecnologia


Presidência do fórum está nas mãos de nações em desenvolvimento. Isso cria janela de oportunidade para questões do Sul Global e as integra em uma agenda comum de interesse público

Por Maria Luciano, Vinay Narayan e Alison Gillwald

À medida que a conectividade continua crescendo, o uso de sistemas de inteligência artificial (IA) se expande e as infraestruturas digitais de governos ganham impulso pelo mundo, começamos a questionar se esses desenvolvimentos são acompanhados por garantias de que eles realmente sirvam às pessoas. Afinal, como são considerados o interesse público e os valores, necessidades e preocupações das comunidades afetadas por essas tecnologias?

A Interface Unificada de Pagamentos – Unified Payments Interface (UPI) –, sistema de pagamento instantâneo ponto a ponto (P2P) e de pessoa para comerciante (P2M) da Índia, é um notável exemplo do que (re)pensar governança pode alcançar. Essa infraestrutura digital pública (DPI) conseguiu promover a inclusão digital no país ao encerrar um monopólio de dados das duas empresas que concentram dados de pagamento em todo o mundo, Visa e Mastercard, e construir um sistema que tecnicamente não está vinculado a um banco ou plataforma específicos.

No entanto, uma vez que as DPIs são apenas um protocolo subjacente sobre o qual sistemas são construídos, esse setor tem vivido uma captura por empresas privadas, com Google Play e PhonePe (de propriedade do Walmart) respondendo por 80% desse mercado em 2022. Criticamente, a falta de regulamentação sobre o uso de dados financeiros conferiu a essas empresas acesso a dados de transações que podem fornecer informações valiosas sobre clientes, ser usados para oferecer outros serviços, e, se combinados com outros dados em poder dessas big techs, construir inteligência de mercado que possa ser usada para responder e até mesmo influenciar clientes em direção a determinados resultados comerciais.

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Além disso, a ampliação do acesso a serviços bancários digitais também trouxe consigo o surgimento de golpes que se aproveitam da plataforma UPI. Ao explorar a falta de compreensão quanto ao espaço digital dos usuários, esses esquemas forjam solicitações de dinheiro e até mesmo sites falsos para facilitar transferências fraudulentas.

Assim como na Índia, o Pix, sistema de pagamentos instantâneos utilizado no Brasil, também facilitou a inclusão financeira, mas esta foi acompanhada de crescentes casos de golpes e prejuízos a usuários no País. Esse cenário estaria relacionado à falta de compreensão a respeito do funcionamento do sistema, e teria contribuído com a crescente desconfiança dos cidadãos a respeito dos riscos que ele pode apresentar.

No papel, DPIs como Pix e UPI oferecem a capacidade de retomar o controle das infraestruturas digitais críticas e colocá-las sob domínio público – possibilitando, assim, a prestação de serviços digitais de maneira transparente e responsável, enquanto realiza seu valor social para promover o desenvolvimento. No entanto, a falta de reflexão em relação às políticas de uso e acesso aos dados limita a capacidade do público de utilizar dados de transações para o bem social mais amplo, permitindo que entidades privadas se beneficiem desses dados. O acesso a dados é crucial para corrigir não apenas o impacto desigual dos danos associados às tecnologias baseadas em dados, mas também a distribuição heterogênea de oportunidades para a criação de valor com eles. Sistemas de inteligência artificial, que exigem grandes quantidades de dados para treinamento visando a melhorar seu desempenho, têm agravado ainda mais essas desigualdades.

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Existe um movimento crescente em prol de um controle mais democrático da tecnologia. Os elementos de um futuro no qual dados e inteligência artificial estão sujeitos à governança pública já estão presentes em muitos setores e regiões do mundo: residentes coletando dados sobre qualidade do ar e poluição sonora para influenciar decisões em nível municipal em Barcelona; processos deliberativos para avaliar o que o público entende como “interesse público” no uso de dados no Reino Unido; gestão comunitária de recursos naturais resultando na restauração de populações animais, criação de empregos e geração de receita na Namíbia; acesso a informações governamentais sobre gastos públicos permitindo à sociedade civil monitorar os gastos do governo no Paraguai; um comitê diverso com 13 membros decidindo em quais casos era legítimo compartilhar dados para além do uso governamental durante a pandemia em Gana; iniciativas dando às comunidades indígenas controle significativo sobre a definição e disseminação de seus dados no Canadá.

Pela primeira vez, a presidência do G-20 está nas mãos de uma série de nações em desenvolvimento – Índia em 2022/2023, Brasil em 2023/2024 e África do Sul em 2024/2025. Isso cria uma janela de oportunidade para questões do Sul Global e as integra em uma agenda comum de interesse público. Nesse contexto, os DPIs podem se mostrar especialmente importantes. Em um ambiente em que as tendências nas transferências de dados transfronteiriças parecem ser dominadas por potências tradicionais e big techs, o sucesso do UPI na Índia o transformou em uma ferramenta poderosa de diplomacia digital para o país, que compartilhou a tecnologia com outras nações, incluindo França, Cingapura e Emirados Árabes Unidos.

A adoção de sistemas de DPI pode proporcionar aos países uma maior autonomia sobre os fluxos de dados envolvendo seus cidadãos, uma vez que a infraestrutura subjacente para serviços públicos essenciais é desenvolvida, construída e controlada dentro do país. Contudo, isso deve endereçar exclusões digitais subjacentes e ser combinado com mecanismos e processos que garantam que tais intervenções tecnológicas verdadeiramente sirvam às pessoas sem serem extrativas. Fazer isso exigirá a participação ativa, para além de práticas participativas ad hoc envolvendo apenas os participantes habituais e se apropriando do debate público com linguagem técnica. Será necessário ir além dos grupos de “titulares de dados” e “consumidores”, reconhecendo as qualidades relacionais e de bem público dos dados – abordagens complementares e que, por meio de mecanismos de dados abertos e de uso comum, podem passar a incluir todas as pessoas e comunidades afetadas nessas conversas.

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A longa e rica história de mobilização coletiva e reparação no Brasil, Índia e África do Sul pode fornecer caminhos sobre como isso pode ser alcançado. O Abalobi na África do Sul é um exemplo. Essa iniciativa, desenvolvida com e para pescadores, é uma cooperativa e plataforma de dados que permite aos pescadores serem coprodutores do conhecimento e proprietários dos dados que coletam, além de oferecer suporte digital às comunidades de pescadores, criar oportunidades de mercado e informar melhor a tomada de decisões públicas. Também ajudou a lançar luz sobre o trabalho das mulheres dentro dessas comunidades.

Um cenário favorável é necessário para garantir a escala e abrangência necessárias para iniciativas desse tipo, e o G-20 é um fórum adequado para isso. Os grupos de engajamento do G-20, como o Civil-20, Science-20 e Think-20, permitem que grupos interessados dos mais diversos contribuam para o processo do G-20, sendo responsabilidade desses grupos fazer com que as vozes das pessoas e comunidades afetadas sejam ouvidas em tal fórum.

Não podemos perder essa oportunidade de redefinir nossa relação com dados e IA, e fazer com que as vozes de todas as pessoas sejam ouvidas.

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*

SÃO, RESPECTIVAMENTE, PESQUISADORA ASSOCIADA NA CONNECTED BY DATA E NO IEA-USP; GERENTE SÊNIOR DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO AAPTI INSTITUTE; E DIRETORA EXECUTIVA NO RESEARCH ICT AFRICA

À medida que a conectividade continua crescendo, o uso de sistemas de inteligência artificial (IA) se expande e as infraestruturas digitais de governos ganham impulso pelo mundo, começamos a questionar se esses desenvolvimentos são acompanhados por garantias de que eles realmente sirvam às pessoas. Afinal, como são considerados o interesse público e os valores, necessidades e preocupações das comunidades afetadas por essas tecnologias?

A Interface Unificada de Pagamentos – Unified Payments Interface (UPI) –, sistema de pagamento instantâneo ponto a ponto (P2P) e de pessoa para comerciante (P2M) da Índia, é um notável exemplo do que (re)pensar governança pode alcançar. Essa infraestrutura digital pública (DPI) conseguiu promover a inclusão digital no país ao encerrar um monopólio de dados das duas empresas que concentram dados de pagamento em todo o mundo, Visa e Mastercard, e construir um sistema que tecnicamente não está vinculado a um banco ou plataforma específicos.

No entanto, uma vez que as DPIs são apenas um protocolo subjacente sobre o qual sistemas são construídos, esse setor tem vivido uma captura por empresas privadas, com Google Play e PhonePe (de propriedade do Walmart) respondendo por 80% desse mercado em 2022. Criticamente, a falta de regulamentação sobre o uso de dados financeiros conferiu a essas empresas acesso a dados de transações que podem fornecer informações valiosas sobre clientes, ser usados para oferecer outros serviços, e, se combinados com outros dados em poder dessas big techs, construir inteligência de mercado que possa ser usada para responder e até mesmo influenciar clientes em direção a determinados resultados comerciais.

Além disso, a ampliação do acesso a serviços bancários digitais também trouxe consigo o surgimento de golpes que se aproveitam da plataforma UPI. Ao explorar a falta de compreensão quanto ao espaço digital dos usuários, esses esquemas forjam solicitações de dinheiro e até mesmo sites falsos para facilitar transferências fraudulentas.

Assim como na Índia, o Pix, sistema de pagamentos instantâneos utilizado no Brasil, também facilitou a inclusão financeira, mas esta foi acompanhada de crescentes casos de golpes e prejuízos a usuários no País. Esse cenário estaria relacionado à falta de compreensão a respeito do funcionamento do sistema, e teria contribuído com a crescente desconfiança dos cidadãos a respeito dos riscos que ele pode apresentar.

No papel, DPIs como Pix e UPI oferecem a capacidade de retomar o controle das infraestruturas digitais críticas e colocá-las sob domínio público – possibilitando, assim, a prestação de serviços digitais de maneira transparente e responsável, enquanto realiza seu valor social para promover o desenvolvimento. No entanto, a falta de reflexão em relação às políticas de uso e acesso aos dados limita a capacidade do público de utilizar dados de transações para o bem social mais amplo, permitindo que entidades privadas se beneficiem desses dados. O acesso a dados é crucial para corrigir não apenas o impacto desigual dos danos associados às tecnologias baseadas em dados, mas também a distribuição heterogênea de oportunidades para a criação de valor com eles. Sistemas de inteligência artificial, que exigem grandes quantidades de dados para treinamento visando a melhorar seu desempenho, têm agravado ainda mais essas desigualdades.

Existe um movimento crescente em prol de um controle mais democrático da tecnologia. Os elementos de um futuro no qual dados e inteligência artificial estão sujeitos à governança pública já estão presentes em muitos setores e regiões do mundo: residentes coletando dados sobre qualidade do ar e poluição sonora para influenciar decisões em nível municipal em Barcelona; processos deliberativos para avaliar o que o público entende como “interesse público” no uso de dados no Reino Unido; gestão comunitária de recursos naturais resultando na restauração de populações animais, criação de empregos e geração de receita na Namíbia; acesso a informações governamentais sobre gastos públicos permitindo à sociedade civil monitorar os gastos do governo no Paraguai; um comitê diverso com 13 membros decidindo em quais casos era legítimo compartilhar dados para além do uso governamental durante a pandemia em Gana; iniciativas dando às comunidades indígenas controle significativo sobre a definição e disseminação de seus dados no Canadá.

Pela primeira vez, a presidência do G-20 está nas mãos de uma série de nações em desenvolvimento – Índia em 2022/2023, Brasil em 2023/2024 e África do Sul em 2024/2025. Isso cria uma janela de oportunidade para questões do Sul Global e as integra em uma agenda comum de interesse público. Nesse contexto, os DPIs podem se mostrar especialmente importantes. Em um ambiente em que as tendências nas transferências de dados transfronteiriças parecem ser dominadas por potências tradicionais e big techs, o sucesso do UPI na Índia o transformou em uma ferramenta poderosa de diplomacia digital para o país, que compartilhou a tecnologia com outras nações, incluindo França, Cingapura e Emirados Árabes Unidos.

A adoção de sistemas de DPI pode proporcionar aos países uma maior autonomia sobre os fluxos de dados envolvendo seus cidadãos, uma vez que a infraestrutura subjacente para serviços públicos essenciais é desenvolvida, construída e controlada dentro do país. Contudo, isso deve endereçar exclusões digitais subjacentes e ser combinado com mecanismos e processos que garantam que tais intervenções tecnológicas verdadeiramente sirvam às pessoas sem serem extrativas. Fazer isso exigirá a participação ativa, para além de práticas participativas ad hoc envolvendo apenas os participantes habituais e se apropriando do debate público com linguagem técnica. Será necessário ir além dos grupos de “titulares de dados” e “consumidores”, reconhecendo as qualidades relacionais e de bem público dos dados – abordagens complementares e que, por meio de mecanismos de dados abertos e de uso comum, podem passar a incluir todas as pessoas e comunidades afetadas nessas conversas.

A longa e rica história de mobilização coletiva e reparação no Brasil, Índia e África do Sul pode fornecer caminhos sobre como isso pode ser alcançado. O Abalobi na África do Sul é um exemplo. Essa iniciativa, desenvolvida com e para pescadores, é uma cooperativa e plataforma de dados que permite aos pescadores serem coprodutores do conhecimento e proprietários dos dados que coletam, além de oferecer suporte digital às comunidades de pescadores, criar oportunidades de mercado e informar melhor a tomada de decisões públicas. Também ajudou a lançar luz sobre o trabalho das mulheres dentro dessas comunidades.

Um cenário favorável é necessário para garantir a escala e abrangência necessárias para iniciativas desse tipo, e o G-20 é um fórum adequado para isso. Os grupos de engajamento do G-20, como o Civil-20, Science-20 e Think-20, permitem que grupos interessados dos mais diversos contribuam para o processo do G-20, sendo responsabilidade desses grupos fazer com que as vozes das pessoas e comunidades afetadas sejam ouvidas em tal fórum.

Não podemos perder essa oportunidade de redefinir nossa relação com dados e IA, e fazer com que as vozes de todas as pessoas sejam ouvidas.

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SÃO, RESPECTIVAMENTE, PESQUISADORA ASSOCIADA NA CONNECTED BY DATA E NO IEA-USP; GERENTE SÊNIOR DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO AAPTI INSTITUTE; E DIRETORA EXECUTIVA NO RESEARCH ICT AFRICA

À medida que a conectividade continua crescendo, o uso de sistemas de inteligência artificial (IA) se expande e as infraestruturas digitais de governos ganham impulso pelo mundo, começamos a questionar se esses desenvolvimentos são acompanhados por garantias de que eles realmente sirvam às pessoas. Afinal, como são considerados o interesse público e os valores, necessidades e preocupações das comunidades afetadas por essas tecnologias?

A Interface Unificada de Pagamentos – Unified Payments Interface (UPI) –, sistema de pagamento instantâneo ponto a ponto (P2P) e de pessoa para comerciante (P2M) da Índia, é um notável exemplo do que (re)pensar governança pode alcançar. Essa infraestrutura digital pública (DPI) conseguiu promover a inclusão digital no país ao encerrar um monopólio de dados das duas empresas que concentram dados de pagamento em todo o mundo, Visa e Mastercard, e construir um sistema que tecnicamente não está vinculado a um banco ou plataforma específicos.

No entanto, uma vez que as DPIs são apenas um protocolo subjacente sobre o qual sistemas são construídos, esse setor tem vivido uma captura por empresas privadas, com Google Play e PhonePe (de propriedade do Walmart) respondendo por 80% desse mercado em 2022. Criticamente, a falta de regulamentação sobre o uso de dados financeiros conferiu a essas empresas acesso a dados de transações que podem fornecer informações valiosas sobre clientes, ser usados para oferecer outros serviços, e, se combinados com outros dados em poder dessas big techs, construir inteligência de mercado que possa ser usada para responder e até mesmo influenciar clientes em direção a determinados resultados comerciais.

Além disso, a ampliação do acesso a serviços bancários digitais também trouxe consigo o surgimento de golpes que se aproveitam da plataforma UPI. Ao explorar a falta de compreensão quanto ao espaço digital dos usuários, esses esquemas forjam solicitações de dinheiro e até mesmo sites falsos para facilitar transferências fraudulentas.

Assim como na Índia, o Pix, sistema de pagamentos instantâneos utilizado no Brasil, também facilitou a inclusão financeira, mas esta foi acompanhada de crescentes casos de golpes e prejuízos a usuários no País. Esse cenário estaria relacionado à falta de compreensão a respeito do funcionamento do sistema, e teria contribuído com a crescente desconfiança dos cidadãos a respeito dos riscos que ele pode apresentar.

No papel, DPIs como Pix e UPI oferecem a capacidade de retomar o controle das infraestruturas digitais críticas e colocá-las sob domínio público – possibilitando, assim, a prestação de serviços digitais de maneira transparente e responsável, enquanto realiza seu valor social para promover o desenvolvimento. No entanto, a falta de reflexão em relação às políticas de uso e acesso aos dados limita a capacidade do público de utilizar dados de transações para o bem social mais amplo, permitindo que entidades privadas se beneficiem desses dados. O acesso a dados é crucial para corrigir não apenas o impacto desigual dos danos associados às tecnologias baseadas em dados, mas também a distribuição heterogênea de oportunidades para a criação de valor com eles. Sistemas de inteligência artificial, que exigem grandes quantidades de dados para treinamento visando a melhorar seu desempenho, têm agravado ainda mais essas desigualdades.

Existe um movimento crescente em prol de um controle mais democrático da tecnologia. Os elementos de um futuro no qual dados e inteligência artificial estão sujeitos à governança pública já estão presentes em muitos setores e regiões do mundo: residentes coletando dados sobre qualidade do ar e poluição sonora para influenciar decisões em nível municipal em Barcelona; processos deliberativos para avaliar o que o público entende como “interesse público” no uso de dados no Reino Unido; gestão comunitária de recursos naturais resultando na restauração de populações animais, criação de empregos e geração de receita na Namíbia; acesso a informações governamentais sobre gastos públicos permitindo à sociedade civil monitorar os gastos do governo no Paraguai; um comitê diverso com 13 membros decidindo em quais casos era legítimo compartilhar dados para além do uso governamental durante a pandemia em Gana; iniciativas dando às comunidades indígenas controle significativo sobre a definição e disseminação de seus dados no Canadá.

Pela primeira vez, a presidência do G-20 está nas mãos de uma série de nações em desenvolvimento – Índia em 2022/2023, Brasil em 2023/2024 e África do Sul em 2024/2025. Isso cria uma janela de oportunidade para questões do Sul Global e as integra em uma agenda comum de interesse público. Nesse contexto, os DPIs podem se mostrar especialmente importantes. Em um ambiente em que as tendências nas transferências de dados transfronteiriças parecem ser dominadas por potências tradicionais e big techs, o sucesso do UPI na Índia o transformou em uma ferramenta poderosa de diplomacia digital para o país, que compartilhou a tecnologia com outras nações, incluindo França, Cingapura e Emirados Árabes Unidos.

A adoção de sistemas de DPI pode proporcionar aos países uma maior autonomia sobre os fluxos de dados envolvendo seus cidadãos, uma vez que a infraestrutura subjacente para serviços públicos essenciais é desenvolvida, construída e controlada dentro do país. Contudo, isso deve endereçar exclusões digitais subjacentes e ser combinado com mecanismos e processos que garantam que tais intervenções tecnológicas verdadeiramente sirvam às pessoas sem serem extrativas. Fazer isso exigirá a participação ativa, para além de práticas participativas ad hoc envolvendo apenas os participantes habituais e se apropriando do debate público com linguagem técnica. Será necessário ir além dos grupos de “titulares de dados” e “consumidores”, reconhecendo as qualidades relacionais e de bem público dos dados – abordagens complementares e que, por meio de mecanismos de dados abertos e de uso comum, podem passar a incluir todas as pessoas e comunidades afetadas nessas conversas.

A longa e rica história de mobilização coletiva e reparação no Brasil, Índia e África do Sul pode fornecer caminhos sobre como isso pode ser alcançado. O Abalobi na África do Sul é um exemplo. Essa iniciativa, desenvolvida com e para pescadores, é uma cooperativa e plataforma de dados que permite aos pescadores serem coprodutores do conhecimento e proprietários dos dados que coletam, além de oferecer suporte digital às comunidades de pescadores, criar oportunidades de mercado e informar melhor a tomada de decisões públicas. Também ajudou a lançar luz sobre o trabalho das mulheres dentro dessas comunidades.

Um cenário favorável é necessário para garantir a escala e abrangência necessárias para iniciativas desse tipo, e o G-20 é um fórum adequado para isso. Os grupos de engajamento do G-20, como o Civil-20, Science-20 e Think-20, permitem que grupos interessados dos mais diversos contribuam para o processo do G-20, sendo responsabilidade desses grupos fazer com que as vozes das pessoas e comunidades afetadas sejam ouvidas em tal fórum.

Não podemos perder essa oportunidade de redefinir nossa relação com dados e IA, e fazer com que as vozes de todas as pessoas sejam ouvidas.

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SÃO, RESPECTIVAMENTE, PESQUISADORA ASSOCIADA NA CONNECTED BY DATA E NO IEA-USP; GERENTE SÊNIOR DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO AAPTI INSTITUTE; E DIRETORA EXECUTIVA NO RESEARCH ICT AFRICA

À medida que a conectividade continua crescendo, o uso de sistemas de inteligência artificial (IA) se expande e as infraestruturas digitais de governos ganham impulso pelo mundo, começamos a questionar se esses desenvolvimentos são acompanhados por garantias de que eles realmente sirvam às pessoas. Afinal, como são considerados o interesse público e os valores, necessidades e preocupações das comunidades afetadas por essas tecnologias?

A Interface Unificada de Pagamentos – Unified Payments Interface (UPI) –, sistema de pagamento instantâneo ponto a ponto (P2P) e de pessoa para comerciante (P2M) da Índia, é um notável exemplo do que (re)pensar governança pode alcançar. Essa infraestrutura digital pública (DPI) conseguiu promover a inclusão digital no país ao encerrar um monopólio de dados das duas empresas que concentram dados de pagamento em todo o mundo, Visa e Mastercard, e construir um sistema que tecnicamente não está vinculado a um banco ou plataforma específicos.

No entanto, uma vez que as DPIs são apenas um protocolo subjacente sobre o qual sistemas são construídos, esse setor tem vivido uma captura por empresas privadas, com Google Play e PhonePe (de propriedade do Walmart) respondendo por 80% desse mercado em 2022. Criticamente, a falta de regulamentação sobre o uso de dados financeiros conferiu a essas empresas acesso a dados de transações que podem fornecer informações valiosas sobre clientes, ser usados para oferecer outros serviços, e, se combinados com outros dados em poder dessas big techs, construir inteligência de mercado que possa ser usada para responder e até mesmo influenciar clientes em direção a determinados resultados comerciais.

Além disso, a ampliação do acesso a serviços bancários digitais também trouxe consigo o surgimento de golpes que se aproveitam da plataforma UPI. Ao explorar a falta de compreensão quanto ao espaço digital dos usuários, esses esquemas forjam solicitações de dinheiro e até mesmo sites falsos para facilitar transferências fraudulentas.

Assim como na Índia, o Pix, sistema de pagamentos instantâneos utilizado no Brasil, também facilitou a inclusão financeira, mas esta foi acompanhada de crescentes casos de golpes e prejuízos a usuários no País. Esse cenário estaria relacionado à falta de compreensão a respeito do funcionamento do sistema, e teria contribuído com a crescente desconfiança dos cidadãos a respeito dos riscos que ele pode apresentar.

No papel, DPIs como Pix e UPI oferecem a capacidade de retomar o controle das infraestruturas digitais críticas e colocá-las sob domínio público – possibilitando, assim, a prestação de serviços digitais de maneira transparente e responsável, enquanto realiza seu valor social para promover o desenvolvimento. No entanto, a falta de reflexão em relação às políticas de uso e acesso aos dados limita a capacidade do público de utilizar dados de transações para o bem social mais amplo, permitindo que entidades privadas se beneficiem desses dados. O acesso a dados é crucial para corrigir não apenas o impacto desigual dos danos associados às tecnologias baseadas em dados, mas também a distribuição heterogênea de oportunidades para a criação de valor com eles. Sistemas de inteligência artificial, que exigem grandes quantidades de dados para treinamento visando a melhorar seu desempenho, têm agravado ainda mais essas desigualdades.

Existe um movimento crescente em prol de um controle mais democrático da tecnologia. Os elementos de um futuro no qual dados e inteligência artificial estão sujeitos à governança pública já estão presentes em muitos setores e regiões do mundo: residentes coletando dados sobre qualidade do ar e poluição sonora para influenciar decisões em nível municipal em Barcelona; processos deliberativos para avaliar o que o público entende como “interesse público” no uso de dados no Reino Unido; gestão comunitária de recursos naturais resultando na restauração de populações animais, criação de empregos e geração de receita na Namíbia; acesso a informações governamentais sobre gastos públicos permitindo à sociedade civil monitorar os gastos do governo no Paraguai; um comitê diverso com 13 membros decidindo em quais casos era legítimo compartilhar dados para além do uso governamental durante a pandemia em Gana; iniciativas dando às comunidades indígenas controle significativo sobre a definição e disseminação de seus dados no Canadá.

Pela primeira vez, a presidência do G-20 está nas mãos de uma série de nações em desenvolvimento – Índia em 2022/2023, Brasil em 2023/2024 e África do Sul em 2024/2025. Isso cria uma janela de oportunidade para questões do Sul Global e as integra em uma agenda comum de interesse público. Nesse contexto, os DPIs podem se mostrar especialmente importantes. Em um ambiente em que as tendências nas transferências de dados transfronteiriças parecem ser dominadas por potências tradicionais e big techs, o sucesso do UPI na Índia o transformou em uma ferramenta poderosa de diplomacia digital para o país, que compartilhou a tecnologia com outras nações, incluindo França, Cingapura e Emirados Árabes Unidos.

A adoção de sistemas de DPI pode proporcionar aos países uma maior autonomia sobre os fluxos de dados envolvendo seus cidadãos, uma vez que a infraestrutura subjacente para serviços públicos essenciais é desenvolvida, construída e controlada dentro do país. Contudo, isso deve endereçar exclusões digitais subjacentes e ser combinado com mecanismos e processos que garantam que tais intervenções tecnológicas verdadeiramente sirvam às pessoas sem serem extrativas. Fazer isso exigirá a participação ativa, para além de práticas participativas ad hoc envolvendo apenas os participantes habituais e se apropriando do debate público com linguagem técnica. Será necessário ir além dos grupos de “titulares de dados” e “consumidores”, reconhecendo as qualidades relacionais e de bem público dos dados – abordagens complementares e que, por meio de mecanismos de dados abertos e de uso comum, podem passar a incluir todas as pessoas e comunidades afetadas nessas conversas.

A longa e rica história de mobilização coletiva e reparação no Brasil, Índia e África do Sul pode fornecer caminhos sobre como isso pode ser alcançado. O Abalobi na África do Sul é um exemplo. Essa iniciativa, desenvolvida com e para pescadores, é uma cooperativa e plataforma de dados que permite aos pescadores serem coprodutores do conhecimento e proprietários dos dados que coletam, além de oferecer suporte digital às comunidades de pescadores, criar oportunidades de mercado e informar melhor a tomada de decisões públicas. Também ajudou a lançar luz sobre o trabalho das mulheres dentro dessas comunidades.

Um cenário favorável é necessário para garantir a escala e abrangência necessárias para iniciativas desse tipo, e o G-20 é um fórum adequado para isso. Os grupos de engajamento do G-20, como o Civil-20, Science-20 e Think-20, permitem que grupos interessados dos mais diversos contribuam para o processo do G-20, sendo responsabilidade desses grupos fazer com que as vozes das pessoas e comunidades afetadas sejam ouvidas em tal fórum.

Não podemos perder essa oportunidade de redefinir nossa relação com dados e IA, e fazer com que as vozes de todas as pessoas sejam ouvidas.

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