Opinião|Governo digital para quem?


O caminho para políticas digitais eficientes, tanto em qualidade como em quantidade, passa pela participação social e cuidado

Por Maria Luciano

O debate sobre infraestruturas públicas digitais – isto é, as capacidades digitais necessárias à interação entre governo e sociedade – continua a todo vapor. E o Brasil segue liderando mundialmente o tema com iniciativas como o Pix e o Gov.br, que têm promovido a inclusão financeira e o acesso da população a serviços públicos.

Nesse cenário, é animadora a recém-publicada Estratégia Federal de Governo Digital, que lista as ações concretas que irão nortear a atuação da administração pública federal em governo digital até 2027. Mas para um plano de ação que se propõe a tratar da governança digital do governo, assim como a Estratégia Nacional de Governo Digital, a nova estratégia diz pouco sobre um elemento-chave de qualquer modelo de governança democrático: a participação de todas as pessoas, setores e atores afetados por essas políticas.

Se as recomendações a respeito da coordenação entre diferentes níveis federativos e entre órgãos e entidades de um mesmo nível federativo têm sido robustas, a atuação de entidades da sociedade civil e cidadãos, setor privado, instituições acadêmicas e organizações internacionais, apesar de ter a sua importância reconhecida pelo governo, ainda carece de mais atenção.

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A participação social é, para além de um requisito democrático, também um requisito à eficiência das políticas digitais. E, por isso, ela precisa acontecer ao longo de todo o ciclo de vida dessas políticas, para além do mero papel de supervisão tradicionalmente reservado à sociedade civil – e que, apesar de mínimo, ainda é muitas vezes negado.

A exigência de dados biométricos para a criação de contas prata e ouro do Gov.br, por exemplo, contraria a crescente preocupação da população quanto ao uso desses dados pelo governo e instituições financeiras, além de desconsiderar a maior suscetibilidade de falhas no reconhecimento facial de populações vulnerabilizadas, como pessoas negras e trans. Já o pouco diálogo com a sociedade na implementação do Pix tem contribuído para a ineficiência do Mecanismo Especial de Devolução (MED), recurso criado para reembolsar consumidores que tenham sido vítimas de fraudes no Pix: nove em cada dez brasileiros não sabem o que é o MED nem como ele funciona. Também tem dificultado a resolução dos problemas que surgem com o tempo, como o uso do Pix para comunicação por mensagens, que passou a viabilizar também práticas de assédio.

Casos como esses indicam a necessidade de uma abordagem holística, humanizada e de cuidado, focada no impacto que essas políticas digitais têm na vida das pessoas, muito além da interação delas com os aplicativos e plataformas do governo – a chamada “experiência do usuário”, também foco do Banco Central. Afinal, antes mesmo de acessar esses sistemas e tornar-se “usuária”, uma pessoa, além de aprender a utilizá-los, teve que enfrentar, por exemplo, os custos e tempo de deslocamento até um computador, dispositivo ou acesso à internet; ou precisou deixar sua criança em uma escola ou aos cuidados de outra pessoa para fazê-lo.

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A vergonha pública pela falta de conhecimento ou situação de vulnerabilidade, às vezes reforçadas pelo próprio tratamento recebido por parte da administração pública, também merecem consideração. Esse fenômeno, que já havia sido observado entre pessoas beneficiárias do Programa Bolsa Família e pessoas adultas sem documentos no processo de emissão de certidões de nascimento, também tem sido associado ao desincentivo na busca por reparação dos prejuízos advindos de golpes do Pix.

Como garantir, então, políticas públicas que deem conta das demandas e necessidades da população de forma eficiente? Com modelos de governança inclusivos e participativos.

Se, por um lado, a adoção acrítica de tecnologias pode agravar desigualdades estruturais já existentes, por outro, ignorar os potenciais benefícios que a tecnologia pode apresentar à população arriscaria desincentivar a inovação.

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Nesse impasse, empoderar a sociedade e capacitá-la para que vozes diversas e qualificadas sejam ouvidas parece essencial a políticas públicas eficientes. E há bons exemplos para nortear esse caminho: tutorias e treinamentos em ações humanitárias para o uso de tecnologias digitais por idosos ou por aqueles que não estão acostumados com elas; os “quarteirões do cuidado” em Bogotá, que colocam à disposição da população serviços como assistência jurídica e psicossocial, formações profissionais e recreação; ou mesmo o uso inclusivo e participativo de instrumentos há muito tempo existentes, como licitações, relatórios de impacto a direitos, e investimentos e condicionalidades impostas a atores privados para que priorizem e gerem retorno direto à população.

O caminho para políticas digitais eficientes, tanto em qualidade como em quantidade (adoção), passa pela participação social e cuidado. Na linha da filosofia africana de ubuntu: eu sou, porque nós somos.

Caso queira começar a participar, a Organização das Nações Unidas (ONU) está recebendo contribuições no tema e o Centro de Infraestruturas Públicas Digitais (CDPI) organizará um evento em São Paulo no final do mês.

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MEMBRA DO GRUPO DE TRABALHO DA DPI UNIVERSAL SAFEGUARDS (ONU), PROFESSORA DE GOVERNANÇA DE DADOS NO SETOR PÚBLICO (DATA PRIVACY BRASIL), É FELLOW EM GOVERNANÇA PARTICIPATIVA DE DADOS (CONNECTED BY DATA)

O debate sobre infraestruturas públicas digitais – isto é, as capacidades digitais necessárias à interação entre governo e sociedade – continua a todo vapor. E o Brasil segue liderando mundialmente o tema com iniciativas como o Pix e o Gov.br, que têm promovido a inclusão financeira e o acesso da população a serviços públicos.

Nesse cenário, é animadora a recém-publicada Estratégia Federal de Governo Digital, que lista as ações concretas que irão nortear a atuação da administração pública federal em governo digital até 2027. Mas para um plano de ação que se propõe a tratar da governança digital do governo, assim como a Estratégia Nacional de Governo Digital, a nova estratégia diz pouco sobre um elemento-chave de qualquer modelo de governança democrático: a participação de todas as pessoas, setores e atores afetados por essas políticas.

Se as recomendações a respeito da coordenação entre diferentes níveis federativos e entre órgãos e entidades de um mesmo nível federativo têm sido robustas, a atuação de entidades da sociedade civil e cidadãos, setor privado, instituições acadêmicas e organizações internacionais, apesar de ter a sua importância reconhecida pelo governo, ainda carece de mais atenção.

A participação social é, para além de um requisito democrático, também um requisito à eficiência das políticas digitais. E, por isso, ela precisa acontecer ao longo de todo o ciclo de vida dessas políticas, para além do mero papel de supervisão tradicionalmente reservado à sociedade civil – e que, apesar de mínimo, ainda é muitas vezes negado.

A exigência de dados biométricos para a criação de contas prata e ouro do Gov.br, por exemplo, contraria a crescente preocupação da população quanto ao uso desses dados pelo governo e instituições financeiras, além de desconsiderar a maior suscetibilidade de falhas no reconhecimento facial de populações vulnerabilizadas, como pessoas negras e trans. Já o pouco diálogo com a sociedade na implementação do Pix tem contribuído para a ineficiência do Mecanismo Especial de Devolução (MED), recurso criado para reembolsar consumidores que tenham sido vítimas de fraudes no Pix: nove em cada dez brasileiros não sabem o que é o MED nem como ele funciona. Também tem dificultado a resolução dos problemas que surgem com o tempo, como o uso do Pix para comunicação por mensagens, que passou a viabilizar também práticas de assédio.

Casos como esses indicam a necessidade de uma abordagem holística, humanizada e de cuidado, focada no impacto que essas políticas digitais têm na vida das pessoas, muito além da interação delas com os aplicativos e plataformas do governo – a chamada “experiência do usuário”, também foco do Banco Central. Afinal, antes mesmo de acessar esses sistemas e tornar-se “usuária”, uma pessoa, além de aprender a utilizá-los, teve que enfrentar, por exemplo, os custos e tempo de deslocamento até um computador, dispositivo ou acesso à internet; ou precisou deixar sua criança em uma escola ou aos cuidados de outra pessoa para fazê-lo.

A vergonha pública pela falta de conhecimento ou situação de vulnerabilidade, às vezes reforçadas pelo próprio tratamento recebido por parte da administração pública, também merecem consideração. Esse fenômeno, que já havia sido observado entre pessoas beneficiárias do Programa Bolsa Família e pessoas adultas sem documentos no processo de emissão de certidões de nascimento, também tem sido associado ao desincentivo na busca por reparação dos prejuízos advindos de golpes do Pix.

Como garantir, então, políticas públicas que deem conta das demandas e necessidades da população de forma eficiente? Com modelos de governança inclusivos e participativos.

Se, por um lado, a adoção acrítica de tecnologias pode agravar desigualdades estruturais já existentes, por outro, ignorar os potenciais benefícios que a tecnologia pode apresentar à população arriscaria desincentivar a inovação.

Nesse impasse, empoderar a sociedade e capacitá-la para que vozes diversas e qualificadas sejam ouvidas parece essencial a políticas públicas eficientes. E há bons exemplos para nortear esse caminho: tutorias e treinamentos em ações humanitárias para o uso de tecnologias digitais por idosos ou por aqueles que não estão acostumados com elas; os “quarteirões do cuidado” em Bogotá, que colocam à disposição da população serviços como assistência jurídica e psicossocial, formações profissionais e recreação; ou mesmo o uso inclusivo e participativo de instrumentos há muito tempo existentes, como licitações, relatórios de impacto a direitos, e investimentos e condicionalidades impostas a atores privados para que priorizem e gerem retorno direto à população.

O caminho para políticas digitais eficientes, tanto em qualidade como em quantidade (adoção), passa pela participação social e cuidado. Na linha da filosofia africana de ubuntu: eu sou, porque nós somos.

Caso queira começar a participar, a Organização das Nações Unidas (ONU) está recebendo contribuições no tema e o Centro de Infraestruturas Públicas Digitais (CDPI) organizará um evento em São Paulo no final do mês.

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MEMBRA DO GRUPO DE TRABALHO DA DPI UNIVERSAL SAFEGUARDS (ONU), PROFESSORA DE GOVERNANÇA DE DADOS NO SETOR PÚBLICO (DATA PRIVACY BRASIL), É FELLOW EM GOVERNANÇA PARTICIPATIVA DE DADOS (CONNECTED BY DATA)

O debate sobre infraestruturas públicas digitais – isto é, as capacidades digitais necessárias à interação entre governo e sociedade – continua a todo vapor. E o Brasil segue liderando mundialmente o tema com iniciativas como o Pix e o Gov.br, que têm promovido a inclusão financeira e o acesso da população a serviços públicos.

Nesse cenário, é animadora a recém-publicada Estratégia Federal de Governo Digital, que lista as ações concretas que irão nortear a atuação da administração pública federal em governo digital até 2027. Mas para um plano de ação que se propõe a tratar da governança digital do governo, assim como a Estratégia Nacional de Governo Digital, a nova estratégia diz pouco sobre um elemento-chave de qualquer modelo de governança democrático: a participação de todas as pessoas, setores e atores afetados por essas políticas.

Se as recomendações a respeito da coordenação entre diferentes níveis federativos e entre órgãos e entidades de um mesmo nível federativo têm sido robustas, a atuação de entidades da sociedade civil e cidadãos, setor privado, instituições acadêmicas e organizações internacionais, apesar de ter a sua importância reconhecida pelo governo, ainda carece de mais atenção.

A participação social é, para além de um requisito democrático, também um requisito à eficiência das políticas digitais. E, por isso, ela precisa acontecer ao longo de todo o ciclo de vida dessas políticas, para além do mero papel de supervisão tradicionalmente reservado à sociedade civil – e que, apesar de mínimo, ainda é muitas vezes negado.

A exigência de dados biométricos para a criação de contas prata e ouro do Gov.br, por exemplo, contraria a crescente preocupação da população quanto ao uso desses dados pelo governo e instituições financeiras, além de desconsiderar a maior suscetibilidade de falhas no reconhecimento facial de populações vulnerabilizadas, como pessoas negras e trans. Já o pouco diálogo com a sociedade na implementação do Pix tem contribuído para a ineficiência do Mecanismo Especial de Devolução (MED), recurso criado para reembolsar consumidores que tenham sido vítimas de fraudes no Pix: nove em cada dez brasileiros não sabem o que é o MED nem como ele funciona. Também tem dificultado a resolução dos problemas que surgem com o tempo, como o uso do Pix para comunicação por mensagens, que passou a viabilizar também práticas de assédio.

Casos como esses indicam a necessidade de uma abordagem holística, humanizada e de cuidado, focada no impacto que essas políticas digitais têm na vida das pessoas, muito além da interação delas com os aplicativos e plataformas do governo – a chamada “experiência do usuário”, também foco do Banco Central. Afinal, antes mesmo de acessar esses sistemas e tornar-se “usuária”, uma pessoa, além de aprender a utilizá-los, teve que enfrentar, por exemplo, os custos e tempo de deslocamento até um computador, dispositivo ou acesso à internet; ou precisou deixar sua criança em uma escola ou aos cuidados de outra pessoa para fazê-lo.

A vergonha pública pela falta de conhecimento ou situação de vulnerabilidade, às vezes reforçadas pelo próprio tratamento recebido por parte da administração pública, também merecem consideração. Esse fenômeno, que já havia sido observado entre pessoas beneficiárias do Programa Bolsa Família e pessoas adultas sem documentos no processo de emissão de certidões de nascimento, também tem sido associado ao desincentivo na busca por reparação dos prejuízos advindos de golpes do Pix.

Como garantir, então, políticas públicas que deem conta das demandas e necessidades da população de forma eficiente? Com modelos de governança inclusivos e participativos.

Se, por um lado, a adoção acrítica de tecnologias pode agravar desigualdades estruturais já existentes, por outro, ignorar os potenciais benefícios que a tecnologia pode apresentar à população arriscaria desincentivar a inovação.

Nesse impasse, empoderar a sociedade e capacitá-la para que vozes diversas e qualificadas sejam ouvidas parece essencial a políticas públicas eficientes. E há bons exemplos para nortear esse caminho: tutorias e treinamentos em ações humanitárias para o uso de tecnologias digitais por idosos ou por aqueles que não estão acostumados com elas; os “quarteirões do cuidado” em Bogotá, que colocam à disposição da população serviços como assistência jurídica e psicossocial, formações profissionais e recreação; ou mesmo o uso inclusivo e participativo de instrumentos há muito tempo existentes, como licitações, relatórios de impacto a direitos, e investimentos e condicionalidades impostas a atores privados para que priorizem e gerem retorno direto à população.

O caminho para políticas digitais eficientes, tanto em qualidade como em quantidade (adoção), passa pela participação social e cuidado. Na linha da filosofia africana de ubuntu: eu sou, porque nós somos.

Caso queira começar a participar, a Organização das Nações Unidas (ONU) está recebendo contribuições no tema e o Centro de Infraestruturas Públicas Digitais (CDPI) organizará um evento em São Paulo no final do mês.

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MEMBRA DO GRUPO DE TRABALHO DA DPI UNIVERSAL SAFEGUARDS (ONU), PROFESSORA DE GOVERNANÇA DE DADOS NO SETOR PÚBLICO (DATA PRIVACY BRASIL), É FELLOW EM GOVERNANÇA PARTICIPATIVA DE DADOS (CONNECTED BY DATA)

Opinião por Maria Luciano

Membra do grupo de trabalho da DPI Universal Safeguards (ONU), professora de Governança de Dados no Setor Público (Data Privacy Brasil), é fellow em Governança Participativa de Dados (Connected by Data)

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