Opinião|Ilusões do vício e da fraqueza


Se não se progride com a democracia, sugere Lamounier, se regride. Qualquer deslize hoje pode ser o início de um longo deslizamento à tirania amanhã.

Por Marcelo Consentino

À primeira vista, o livro do cientista político Bolívar Lamounier Imagens da Virtude e do Poder parece estranho, como o deus romano de duas cabeças Jano, a quem é dedicado. Seus pedaços parecem forjados no calor da hora, entregues quentes ao prelo. As “imagens”, parafraseando o autor, se sucedem como um “indecifrável caleidoscópio”: da guerra na Ucrânia à república romana; Donald Trump, a Paz de Westphalia, Aristóteles, Auschwitz, a Argentina, Max Weber, Jair Bolsonaro... Só no capítulo final se vislumbra o fio de Ariadne que costura esse périplo, na forma de uma interrogação: “Reforma política: qual, como, para quê?”

A resposta foi dada em pedaços, mas eles estão lá, como gemas valiosas a serem recolhidas pelo leitor em suas meditações. Retroativamente, descortina-se “a progressiva configuração de uma ideia de virtude, ou seja, o estabelecimento, mediante acordos políticos e pressões mútuas (...) de uma complexa teia institucional”.

Roma é evocada como a promessa fracassada de “uma monarquia constitucional e parlamentar, antecipando quase 2 mil anos de invenção da democracia”. É prova da sagacidade de Lamounier, que, entre as centenas de “causas” compiladas pelos historiadores para a “queda” de Roma, ele sugira esse malogro como a principal, como a dizer: Roma morreu na praia da democracia. Dos escombros desse naufrágio – após a imersão na Idade Média, “um mundo iluminado apenas pelo fogo” (o material, mas também o místico) – o homem moderno construirá seu universo político.

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O “fio condutor para a modernidade é a transição do absolutismo ao Estado constitucional e o progressivo entendimento de que este não teria como se esgotar no mero estabelecimento de uma nova ‘ordem’. Sua aspiração haveria de ser a busca de uma nova Virtude, uma forma de organização que correspondesse às novidades históricas da soberania popular, do pressuposto de que os governos haveriam de ser legitimados pelo voto popular, e de que os contendores se respeitariam mutuamente nos pleitos”.

É tentador ver a história moderna como a sedimentação irreversível da democracia. Mas Lamounier não nutre essa ilusão. “Se o Império Romano teve seus dementes – Nero, Calígula, Cômodo –, o século 20 teve Hitler, Stalin, Mao Tsé-tung, Pol Pot e outros, que extrapolaram o limite da brutalidade”.

Sua leitura histórica não se dá em chave épica, mas dramática: não um encadeamento de eventos a um observador desinteressado, mas o acúmulo de “acordos” e “pressões” que impõe aos protagonistas – nós – uma escolha. A depender dela, os horrores do Holocausto ou do Holodomor podem restar sepultados no passado ou ressuscitarem mais medonhos amanhã.

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Os horrores que ameaçam o Brasil são menos espetaculares e agudos, mas são horrendos e não estão sepultados. Pense na massa de famélicos perpetrada pelo estado falimentar da República no “celeiro do mundo”. Assim, das questões sobre a reforma política, a mais fácil de responder é a última: “Para quê”? Menos simples são as outras: “Qual” e “como”?

“Tivéssemos cabeça, nos abalançaríamos a uma reforma política incisiva, cuja pedra angular haveria de ser a implantação do sistema parlamentarista.” Ao fim, o livro nada mais é que a justificativa dessa proposta. Na sua visão, “o acoplamento do sistema presidencial a esse enorme balaio de siglas é a pior invenção que se poderia ter concebido”. De um lado, um Executivo incapaz de conduzir o Legislativo a aprovar reformas estruturantes, de outro, um Legislativo incapaz de destituir um chefe de governo inapto para o cargo, exceto pelo complexo e perigoso processo de impeachment. As acomodações de parte a parte aprisionam o País numa “armadilha”, um sistema “incapaz de impulsionar o crescimento da economia, uma melhor distribuição de recursos e oportunidades e a melhoria das condições de vida”.

Mais do que uma resposta a questões teoréticas, o livro é uma convocação a “reformas” que “devem contar com toda a contribuição relevante que o Congresso possa mobilizar de fora para dentro”. Isso pede lucidez sobre os obstáculos, como a falta de “um verdadeiro núcleo de centro”.

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Pode parecer um anticlímax que esse giro pela História mundial se feche como uma discussão, a um tempo, abstrata, sobre regimes políticos, e restrita, sobre a República brasileira. Mas, como mostra a invasão do Capitólio norte-americano, o coração da democracia mais longeva e poderosa do planeta, invasões bárbaras podem estar mais próximas do que parecem. Se não se progride com a democracia, sugere Lamounier, se regride. Qualquer deslize hoje pode ser o início de um longo deslizamento à tirania amanhã. Roma não foi destruída em um dia.

Janus é o deus do tempo, das transições e reinícios. Por isso tutela o primeiro mês: Januarius. Com uma cabeça, ele olha o passado; com a outra, o futuro. Se Lamounier nos convida a um longo olhar ao passado, é para nos preparar para a longa construção de um futuro. Como diz Jesus Cristo, “quem de vocês, querendo construir uma torre, primeiro não senta e calcula os custos, para ver se tem recursos para completá-la?”.

*

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É JORNALISTA E DOUTOR EM FILOSOFIA DA RELIGIÃO PELA PUC-SP

À primeira vista, o livro do cientista político Bolívar Lamounier Imagens da Virtude e do Poder parece estranho, como o deus romano de duas cabeças Jano, a quem é dedicado. Seus pedaços parecem forjados no calor da hora, entregues quentes ao prelo. As “imagens”, parafraseando o autor, se sucedem como um “indecifrável caleidoscópio”: da guerra na Ucrânia à república romana; Donald Trump, a Paz de Westphalia, Aristóteles, Auschwitz, a Argentina, Max Weber, Jair Bolsonaro... Só no capítulo final se vislumbra o fio de Ariadne que costura esse périplo, na forma de uma interrogação: “Reforma política: qual, como, para quê?”

A resposta foi dada em pedaços, mas eles estão lá, como gemas valiosas a serem recolhidas pelo leitor em suas meditações. Retroativamente, descortina-se “a progressiva configuração de uma ideia de virtude, ou seja, o estabelecimento, mediante acordos políticos e pressões mútuas (...) de uma complexa teia institucional”.

Roma é evocada como a promessa fracassada de “uma monarquia constitucional e parlamentar, antecipando quase 2 mil anos de invenção da democracia”. É prova da sagacidade de Lamounier, que, entre as centenas de “causas” compiladas pelos historiadores para a “queda” de Roma, ele sugira esse malogro como a principal, como a dizer: Roma morreu na praia da democracia. Dos escombros desse naufrágio – após a imersão na Idade Média, “um mundo iluminado apenas pelo fogo” (o material, mas também o místico) – o homem moderno construirá seu universo político.

O “fio condutor para a modernidade é a transição do absolutismo ao Estado constitucional e o progressivo entendimento de que este não teria como se esgotar no mero estabelecimento de uma nova ‘ordem’. Sua aspiração haveria de ser a busca de uma nova Virtude, uma forma de organização que correspondesse às novidades históricas da soberania popular, do pressuposto de que os governos haveriam de ser legitimados pelo voto popular, e de que os contendores se respeitariam mutuamente nos pleitos”.

É tentador ver a história moderna como a sedimentação irreversível da democracia. Mas Lamounier não nutre essa ilusão. “Se o Império Romano teve seus dementes – Nero, Calígula, Cômodo –, o século 20 teve Hitler, Stalin, Mao Tsé-tung, Pol Pot e outros, que extrapolaram o limite da brutalidade”.

Sua leitura histórica não se dá em chave épica, mas dramática: não um encadeamento de eventos a um observador desinteressado, mas o acúmulo de “acordos” e “pressões” que impõe aos protagonistas – nós – uma escolha. A depender dela, os horrores do Holocausto ou do Holodomor podem restar sepultados no passado ou ressuscitarem mais medonhos amanhã.

Os horrores que ameaçam o Brasil são menos espetaculares e agudos, mas são horrendos e não estão sepultados. Pense na massa de famélicos perpetrada pelo estado falimentar da República no “celeiro do mundo”. Assim, das questões sobre a reforma política, a mais fácil de responder é a última: “Para quê”? Menos simples são as outras: “Qual” e “como”?

“Tivéssemos cabeça, nos abalançaríamos a uma reforma política incisiva, cuja pedra angular haveria de ser a implantação do sistema parlamentarista.” Ao fim, o livro nada mais é que a justificativa dessa proposta. Na sua visão, “o acoplamento do sistema presidencial a esse enorme balaio de siglas é a pior invenção que se poderia ter concebido”. De um lado, um Executivo incapaz de conduzir o Legislativo a aprovar reformas estruturantes, de outro, um Legislativo incapaz de destituir um chefe de governo inapto para o cargo, exceto pelo complexo e perigoso processo de impeachment. As acomodações de parte a parte aprisionam o País numa “armadilha”, um sistema “incapaz de impulsionar o crescimento da economia, uma melhor distribuição de recursos e oportunidades e a melhoria das condições de vida”.

Mais do que uma resposta a questões teoréticas, o livro é uma convocação a “reformas” que “devem contar com toda a contribuição relevante que o Congresso possa mobilizar de fora para dentro”. Isso pede lucidez sobre os obstáculos, como a falta de “um verdadeiro núcleo de centro”.

Pode parecer um anticlímax que esse giro pela História mundial se feche como uma discussão, a um tempo, abstrata, sobre regimes políticos, e restrita, sobre a República brasileira. Mas, como mostra a invasão do Capitólio norte-americano, o coração da democracia mais longeva e poderosa do planeta, invasões bárbaras podem estar mais próximas do que parecem. Se não se progride com a democracia, sugere Lamounier, se regride. Qualquer deslize hoje pode ser o início de um longo deslizamento à tirania amanhã. Roma não foi destruída em um dia.

Janus é o deus do tempo, das transições e reinícios. Por isso tutela o primeiro mês: Januarius. Com uma cabeça, ele olha o passado; com a outra, o futuro. Se Lamounier nos convida a um longo olhar ao passado, é para nos preparar para a longa construção de um futuro. Como diz Jesus Cristo, “quem de vocês, querendo construir uma torre, primeiro não senta e calcula os custos, para ver se tem recursos para completá-la?”.

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É JORNALISTA E DOUTOR EM FILOSOFIA DA RELIGIÃO PELA PUC-SP

À primeira vista, o livro do cientista político Bolívar Lamounier Imagens da Virtude e do Poder parece estranho, como o deus romano de duas cabeças Jano, a quem é dedicado. Seus pedaços parecem forjados no calor da hora, entregues quentes ao prelo. As “imagens”, parafraseando o autor, se sucedem como um “indecifrável caleidoscópio”: da guerra na Ucrânia à república romana; Donald Trump, a Paz de Westphalia, Aristóteles, Auschwitz, a Argentina, Max Weber, Jair Bolsonaro... Só no capítulo final se vislumbra o fio de Ariadne que costura esse périplo, na forma de uma interrogação: “Reforma política: qual, como, para quê?”

A resposta foi dada em pedaços, mas eles estão lá, como gemas valiosas a serem recolhidas pelo leitor em suas meditações. Retroativamente, descortina-se “a progressiva configuração de uma ideia de virtude, ou seja, o estabelecimento, mediante acordos políticos e pressões mútuas (...) de uma complexa teia institucional”.

Roma é evocada como a promessa fracassada de “uma monarquia constitucional e parlamentar, antecipando quase 2 mil anos de invenção da democracia”. É prova da sagacidade de Lamounier, que, entre as centenas de “causas” compiladas pelos historiadores para a “queda” de Roma, ele sugira esse malogro como a principal, como a dizer: Roma morreu na praia da democracia. Dos escombros desse naufrágio – após a imersão na Idade Média, “um mundo iluminado apenas pelo fogo” (o material, mas também o místico) – o homem moderno construirá seu universo político.

O “fio condutor para a modernidade é a transição do absolutismo ao Estado constitucional e o progressivo entendimento de que este não teria como se esgotar no mero estabelecimento de uma nova ‘ordem’. Sua aspiração haveria de ser a busca de uma nova Virtude, uma forma de organização que correspondesse às novidades históricas da soberania popular, do pressuposto de que os governos haveriam de ser legitimados pelo voto popular, e de que os contendores se respeitariam mutuamente nos pleitos”.

É tentador ver a história moderna como a sedimentação irreversível da democracia. Mas Lamounier não nutre essa ilusão. “Se o Império Romano teve seus dementes – Nero, Calígula, Cômodo –, o século 20 teve Hitler, Stalin, Mao Tsé-tung, Pol Pot e outros, que extrapolaram o limite da brutalidade”.

Sua leitura histórica não se dá em chave épica, mas dramática: não um encadeamento de eventos a um observador desinteressado, mas o acúmulo de “acordos” e “pressões” que impõe aos protagonistas – nós – uma escolha. A depender dela, os horrores do Holocausto ou do Holodomor podem restar sepultados no passado ou ressuscitarem mais medonhos amanhã.

Os horrores que ameaçam o Brasil são menos espetaculares e agudos, mas são horrendos e não estão sepultados. Pense na massa de famélicos perpetrada pelo estado falimentar da República no “celeiro do mundo”. Assim, das questões sobre a reforma política, a mais fácil de responder é a última: “Para quê”? Menos simples são as outras: “Qual” e “como”?

“Tivéssemos cabeça, nos abalançaríamos a uma reforma política incisiva, cuja pedra angular haveria de ser a implantação do sistema parlamentarista.” Ao fim, o livro nada mais é que a justificativa dessa proposta. Na sua visão, “o acoplamento do sistema presidencial a esse enorme balaio de siglas é a pior invenção que se poderia ter concebido”. De um lado, um Executivo incapaz de conduzir o Legislativo a aprovar reformas estruturantes, de outro, um Legislativo incapaz de destituir um chefe de governo inapto para o cargo, exceto pelo complexo e perigoso processo de impeachment. As acomodações de parte a parte aprisionam o País numa “armadilha”, um sistema “incapaz de impulsionar o crescimento da economia, uma melhor distribuição de recursos e oportunidades e a melhoria das condições de vida”.

Mais do que uma resposta a questões teoréticas, o livro é uma convocação a “reformas” que “devem contar com toda a contribuição relevante que o Congresso possa mobilizar de fora para dentro”. Isso pede lucidez sobre os obstáculos, como a falta de “um verdadeiro núcleo de centro”.

Pode parecer um anticlímax que esse giro pela História mundial se feche como uma discussão, a um tempo, abstrata, sobre regimes políticos, e restrita, sobre a República brasileira. Mas, como mostra a invasão do Capitólio norte-americano, o coração da democracia mais longeva e poderosa do planeta, invasões bárbaras podem estar mais próximas do que parecem. Se não se progride com a democracia, sugere Lamounier, se regride. Qualquer deslize hoje pode ser o início de um longo deslizamento à tirania amanhã. Roma não foi destruída em um dia.

Janus é o deus do tempo, das transições e reinícios. Por isso tutela o primeiro mês: Januarius. Com uma cabeça, ele olha o passado; com a outra, o futuro. Se Lamounier nos convida a um longo olhar ao passado, é para nos preparar para a longa construção de um futuro. Como diz Jesus Cristo, “quem de vocês, querendo construir uma torre, primeiro não senta e calcula os custos, para ver se tem recursos para completá-la?”.

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É JORNALISTA E DOUTOR EM FILOSOFIA DA RELIGIÃO PELA PUC-SP

À primeira vista, o livro do cientista político Bolívar Lamounier Imagens da Virtude e do Poder parece estranho, como o deus romano de duas cabeças Jano, a quem é dedicado. Seus pedaços parecem forjados no calor da hora, entregues quentes ao prelo. As “imagens”, parafraseando o autor, se sucedem como um “indecifrável caleidoscópio”: da guerra na Ucrânia à república romana; Donald Trump, a Paz de Westphalia, Aristóteles, Auschwitz, a Argentina, Max Weber, Jair Bolsonaro... Só no capítulo final se vislumbra o fio de Ariadne que costura esse périplo, na forma de uma interrogação: “Reforma política: qual, como, para quê?”

A resposta foi dada em pedaços, mas eles estão lá, como gemas valiosas a serem recolhidas pelo leitor em suas meditações. Retroativamente, descortina-se “a progressiva configuração de uma ideia de virtude, ou seja, o estabelecimento, mediante acordos políticos e pressões mútuas (...) de uma complexa teia institucional”.

Roma é evocada como a promessa fracassada de “uma monarquia constitucional e parlamentar, antecipando quase 2 mil anos de invenção da democracia”. É prova da sagacidade de Lamounier, que, entre as centenas de “causas” compiladas pelos historiadores para a “queda” de Roma, ele sugira esse malogro como a principal, como a dizer: Roma morreu na praia da democracia. Dos escombros desse naufrágio – após a imersão na Idade Média, “um mundo iluminado apenas pelo fogo” (o material, mas também o místico) – o homem moderno construirá seu universo político.

O “fio condutor para a modernidade é a transição do absolutismo ao Estado constitucional e o progressivo entendimento de que este não teria como se esgotar no mero estabelecimento de uma nova ‘ordem’. Sua aspiração haveria de ser a busca de uma nova Virtude, uma forma de organização que correspondesse às novidades históricas da soberania popular, do pressuposto de que os governos haveriam de ser legitimados pelo voto popular, e de que os contendores se respeitariam mutuamente nos pleitos”.

É tentador ver a história moderna como a sedimentação irreversível da democracia. Mas Lamounier não nutre essa ilusão. “Se o Império Romano teve seus dementes – Nero, Calígula, Cômodo –, o século 20 teve Hitler, Stalin, Mao Tsé-tung, Pol Pot e outros, que extrapolaram o limite da brutalidade”.

Sua leitura histórica não se dá em chave épica, mas dramática: não um encadeamento de eventos a um observador desinteressado, mas o acúmulo de “acordos” e “pressões” que impõe aos protagonistas – nós – uma escolha. A depender dela, os horrores do Holocausto ou do Holodomor podem restar sepultados no passado ou ressuscitarem mais medonhos amanhã.

Os horrores que ameaçam o Brasil são menos espetaculares e agudos, mas são horrendos e não estão sepultados. Pense na massa de famélicos perpetrada pelo estado falimentar da República no “celeiro do mundo”. Assim, das questões sobre a reforma política, a mais fácil de responder é a última: “Para quê”? Menos simples são as outras: “Qual” e “como”?

“Tivéssemos cabeça, nos abalançaríamos a uma reforma política incisiva, cuja pedra angular haveria de ser a implantação do sistema parlamentarista.” Ao fim, o livro nada mais é que a justificativa dessa proposta. Na sua visão, “o acoplamento do sistema presidencial a esse enorme balaio de siglas é a pior invenção que se poderia ter concebido”. De um lado, um Executivo incapaz de conduzir o Legislativo a aprovar reformas estruturantes, de outro, um Legislativo incapaz de destituir um chefe de governo inapto para o cargo, exceto pelo complexo e perigoso processo de impeachment. As acomodações de parte a parte aprisionam o País numa “armadilha”, um sistema “incapaz de impulsionar o crescimento da economia, uma melhor distribuição de recursos e oportunidades e a melhoria das condições de vida”.

Mais do que uma resposta a questões teoréticas, o livro é uma convocação a “reformas” que “devem contar com toda a contribuição relevante que o Congresso possa mobilizar de fora para dentro”. Isso pede lucidez sobre os obstáculos, como a falta de “um verdadeiro núcleo de centro”.

Pode parecer um anticlímax que esse giro pela História mundial se feche como uma discussão, a um tempo, abstrata, sobre regimes políticos, e restrita, sobre a República brasileira. Mas, como mostra a invasão do Capitólio norte-americano, o coração da democracia mais longeva e poderosa do planeta, invasões bárbaras podem estar mais próximas do que parecem. Se não se progride com a democracia, sugere Lamounier, se regride. Qualquer deslize hoje pode ser o início de um longo deslizamento à tirania amanhã. Roma não foi destruída em um dia.

Janus é o deus do tempo, das transições e reinícios. Por isso tutela o primeiro mês: Januarius. Com uma cabeça, ele olha o passado; com a outra, o futuro. Se Lamounier nos convida a um longo olhar ao passado, é para nos preparar para a longa construção de um futuro. Como diz Jesus Cristo, “quem de vocês, querendo construir uma torre, primeiro não senta e calcula os custos, para ver se tem recursos para completá-la?”.

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