Opinião|Liberdade acadêmica e partidarismo


Delação e ameaça a professores subverte completamente o processo pedagógico

Por MARIA PAULA DALLARI BUCCI

A eleição terminou e o respeito à democracia obriga a reconhecer o resultado e os vencedores do pleito. O eleitor é soberano. Passado esse momento, há uma questão emergente, que fermentou no caldo da campanha e começa a transbordar, envenenando precocemente o cenário do novo governo. São as investidas contra a autonomia universitária e a liberdade de cátedra.

Na semana que antecedeu as eleições, uma ação coordenada dos Tribunais Regionais Eleitorais, a pretexto de garantir a neutralidade no uso do espaço das instituições públicas no período pré-eleitoral, proibiu debates e mandou retirar faixas colocadas nas faculdades que debatiam o autoritarismo ou se pronunciavam contra ele. A ofensa à Constituição contida nessas medidas era evidente e a Procuradoria-Geral da República propôs a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 548/2018, visando a “evitar e reparar lesão a preceitos fundamentais” que delas resultassem, além de proteger de interferências “aulas, palestras, debates ou atos congêneres”, rejeitando ainda “a inquirição de docentes, discentes e de outros cidadãos que estejam em local definido como universidade pública ou privada”. Segundo a petição, isso ocorrera ou estava em via de ocorrer em 24 instituições de educação superior diferentes.

O Supremo Tribunal Federal (STF) prontamente concedeu liminar, em defesa da autonomia das universidades brasileiras, consagrada no artigo 207 da Constituição, “bem como o livre exercício do pensar, da expressão e da manifestação pacífica”, garantidos no artigo 5.º.

continua após a publicidade

Novas agressões a essas liberdades surgem agora, num estímulo à prática de denúncias pelos estudantes contra seus professores acusados de “doutrinação político-partidária” em sala de aula. A recomendação é que os alunos gravem ou filmem os docentes, encaminhando depois o material aos organizadores desse “disque-denúncia”. Uma dessas iniciativas parte de uma deputada recém-eleita pelo PSL-SC, Ana Caroline Campagnolo, que, ainda nem diplomada, usa nas redes sociais linguajar ofensivo e chulo, talvez acreditando estar já no gozo das prerrogativas da imunidade parlamentar.

Mas é importante enfrentar o argumento, para que pessoas de boa-fé não se iludam com essa iniciativa equivocada e nociva à educação.

A justificativa apresentada pelos defensores das denúncias é proteger estudantes de “manifestações político-partidárias ou ideológicas”. Nesse ponto, cumpre lembrar que o proselitismo já é considerado má prática acadêmica, como está expresso, por exemplo, no Código de Ética da Universidade de São Paulo (Resolução 4.871/2001), que se inspira em normas semelhantes às de outras instituições do mundo. Diz o artigo 3.º: “A ação da Universidade, respeitadas as opções individuais de seus membros, pautar-se-á pelos seguintes princípios: I – a não adoção de preferências ideológicas (...); II – a não adoção de posições de natureza partidária”.

continua após a publicidade

Mas a universidade é um ambiente de pluralidade de ideias, onde podem ser estudados quaisquer temas, autores e teorias, respeitando as visões diversas. Como afirma o Código de Ética no artigo 4.º, “nas relações entre os membros da Universidade deve ser garantido: I – o intercâmbio de ideias e opiniões, sem preconceitos ou discriminações entre as partes envolvidas; II – o direito à liberdade de expressão dentro de normas de civilidade e sem quaisquer formas de desrespeito”.

A combinação dessas orientações explicita o que é próprio do ambiente acadêmico, a construção do saber e da consciência crítica pelo exercício da contraposição de ideias. Só assim se desenvolvem no estudante as capacidades de compreender argumentos, aceitá-los ou rejeitá-los, formando sua própria consciência e aptidão para pensar por si mesmo. Por essa razão, a liberdade é como o oxigênio para a universidade. Sem liberdade não há educação, mas, quando muito, treinamento para a aplicação de ideias preconcebidas por outros.

Como outras más práticas que podem atingir a universidade, como o plágio, por exemplo, cada instituição deve ter seus canais para conhecê-las, julgá-las e puni-las, se assim entender. No artigo 6.º do Código de Ética que estamos usando como ilustração, consta: “Constitui dever funcional e acadêmico dos membros da Universidade: III – prevenir e corrigir atos e procedimentos incompatíveis com as normas deste código e demais princípios éticos da Instituição, comunicando-os à Comissão de Ética”.

continua após a publicidade

A “neutralidade”, como sabem aqueles que trabalham pelo desenvolvimento da ciência, é geralmente enganosa, na medida em que se depende de alguém para julgar se a prática é neutra ou não. E quem controlará esse juízo, para saber se ele é realmente neutro? O método científico consagrado baseia-se justamente em desafiar as verdades estabelecidas, sendo para isso indispensável revelar o ponto de vista que está sendo sustentado e suas premissas, de modo a permitir que outros pesquisadores conheçam os argumentos e os derrubem, se for o caso. 

Por fim, o denuncismo proposto em nome da “proteção da universidade” é reprovável. Além de ofender a Constituição, que assegura tanto a autonomia universitária como a liberdade de expressão (artigos 207 e 5.º), conforme decidiu o STF, é uma atitude que contraria as noções educacionais mais básicas. A educação que cultiva os valores da boa convivência em sociedade e do respeito não pode admitir a delação e a ameaça contra os professores. Isso, além de desvalorizá-los, subverte completamente o processo pedagógico, passando os alunos a decidir o que aprovam ou não no ambiente de ensino. É, no mínimo, incoerente que aqueles que dizem defender a restauração da autoridade do professor patrocinem denúncias que terminarão por desmoralizar a liderança dele na sala de aula. Dos que dão importância à educação se espera que rejeitem esse maléfico convite, que só trará prejuízos.

*PROFESSORA DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI SECRETÁRIA DE EDUCAÇÃO SUPERIOR E CONSULTORA JURÍDICA DO MEC E PROCURADORA-GERAL DA USP

A eleição terminou e o respeito à democracia obriga a reconhecer o resultado e os vencedores do pleito. O eleitor é soberano. Passado esse momento, há uma questão emergente, que fermentou no caldo da campanha e começa a transbordar, envenenando precocemente o cenário do novo governo. São as investidas contra a autonomia universitária e a liberdade de cátedra.

Na semana que antecedeu as eleições, uma ação coordenada dos Tribunais Regionais Eleitorais, a pretexto de garantir a neutralidade no uso do espaço das instituições públicas no período pré-eleitoral, proibiu debates e mandou retirar faixas colocadas nas faculdades que debatiam o autoritarismo ou se pronunciavam contra ele. A ofensa à Constituição contida nessas medidas era evidente e a Procuradoria-Geral da República propôs a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 548/2018, visando a “evitar e reparar lesão a preceitos fundamentais” que delas resultassem, além de proteger de interferências “aulas, palestras, debates ou atos congêneres”, rejeitando ainda “a inquirição de docentes, discentes e de outros cidadãos que estejam em local definido como universidade pública ou privada”. Segundo a petição, isso ocorrera ou estava em via de ocorrer em 24 instituições de educação superior diferentes.

O Supremo Tribunal Federal (STF) prontamente concedeu liminar, em defesa da autonomia das universidades brasileiras, consagrada no artigo 207 da Constituição, “bem como o livre exercício do pensar, da expressão e da manifestação pacífica”, garantidos no artigo 5.º.

Novas agressões a essas liberdades surgem agora, num estímulo à prática de denúncias pelos estudantes contra seus professores acusados de “doutrinação político-partidária” em sala de aula. A recomendação é que os alunos gravem ou filmem os docentes, encaminhando depois o material aos organizadores desse “disque-denúncia”. Uma dessas iniciativas parte de uma deputada recém-eleita pelo PSL-SC, Ana Caroline Campagnolo, que, ainda nem diplomada, usa nas redes sociais linguajar ofensivo e chulo, talvez acreditando estar já no gozo das prerrogativas da imunidade parlamentar.

Mas é importante enfrentar o argumento, para que pessoas de boa-fé não se iludam com essa iniciativa equivocada e nociva à educação.

A justificativa apresentada pelos defensores das denúncias é proteger estudantes de “manifestações político-partidárias ou ideológicas”. Nesse ponto, cumpre lembrar que o proselitismo já é considerado má prática acadêmica, como está expresso, por exemplo, no Código de Ética da Universidade de São Paulo (Resolução 4.871/2001), que se inspira em normas semelhantes às de outras instituições do mundo. Diz o artigo 3.º: “A ação da Universidade, respeitadas as opções individuais de seus membros, pautar-se-á pelos seguintes princípios: I – a não adoção de preferências ideológicas (...); II – a não adoção de posições de natureza partidária”.

Mas a universidade é um ambiente de pluralidade de ideias, onde podem ser estudados quaisquer temas, autores e teorias, respeitando as visões diversas. Como afirma o Código de Ética no artigo 4.º, “nas relações entre os membros da Universidade deve ser garantido: I – o intercâmbio de ideias e opiniões, sem preconceitos ou discriminações entre as partes envolvidas; II – o direito à liberdade de expressão dentro de normas de civilidade e sem quaisquer formas de desrespeito”.

A combinação dessas orientações explicita o que é próprio do ambiente acadêmico, a construção do saber e da consciência crítica pelo exercício da contraposição de ideias. Só assim se desenvolvem no estudante as capacidades de compreender argumentos, aceitá-los ou rejeitá-los, formando sua própria consciência e aptidão para pensar por si mesmo. Por essa razão, a liberdade é como o oxigênio para a universidade. Sem liberdade não há educação, mas, quando muito, treinamento para a aplicação de ideias preconcebidas por outros.

Como outras más práticas que podem atingir a universidade, como o plágio, por exemplo, cada instituição deve ter seus canais para conhecê-las, julgá-las e puni-las, se assim entender. No artigo 6.º do Código de Ética que estamos usando como ilustração, consta: “Constitui dever funcional e acadêmico dos membros da Universidade: III – prevenir e corrigir atos e procedimentos incompatíveis com as normas deste código e demais princípios éticos da Instituição, comunicando-os à Comissão de Ética”.

A “neutralidade”, como sabem aqueles que trabalham pelo desenvolvimento da ciência, é geralmente enganosa, na medida em que se depende de alguém para julgar se a prática é neutra ou não. E quem controlará esse juízo, para saber se ele é realmente neutro? O método científico consagrado baseia-se justamente em desafiar as verdades estabelecidas, sendo para isso indispensável revelar o ponto de vista que está sendo sustentado e suas premissas, de modo a permitir que outros pesquisadores conheçam os argumentos e os derrubem, se for o caso. 

Por fim, o denuncismo proposto em nome da “proteção da universidade” é reprovável. Além de ofender a Constituição, que assegura tanto a autonomia universitária como a liberdade de expressão (artigos 207 e 5.º), conforme decidiu o STF, é uma atitude que contraria as noções educacionais mais básicas. A educação que cultiva os valores da boa convivência em sociedade e do respeito não pode admitir a delação e a ameaça contra os professores. Isso, além de desvalorizá-los, subverte completamente o processo pedagógico, passando os alunos a decidir o que aprovam ou não no ambiente de ensino. É, no mínimo, incoerente que aqueles que dizem defender a restauração da autoridade do professor patrocinem denúncias que terminarão por desmoralizar a liderança dele na sala de aula. Dos que dão importância à educação se espera que rejeitem esse maléfico convite, que só trará prejuízos.

*PROFESSORA DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI SECRETÁRIA DE EDUCAÇÃO SUPERIOR E CONSULTORA JURÍDICA DO MEC E PROCURADORA-GERAL DA USP

A eleição terminou e o respeito à democracia obriga a reconhecer o resultado e os vencedores do pleito. O eleitor é soberano. Passado esse momento, há uma questão emergente, que fermentou no caldo da campanha e começa a transbordar, envenenando precocemente o cenário do novo governo. São as investidas contra a autonomia universitária e a liberdade de cátedra.

Na semana que antecedeu as eleições, uma ação coordenada dos Tribunais Regionais Eleitorais, a pretexto de garantir a neutralidade no uso do espaço das instituições públicas no período pré-eleitoral, proibiu debates e mandou retirar faixas colocadas nas faculdades que debatiam o autoritarismo ou se pronunciavam contra ele. A ofensa à Constituição contida nessas medidas era evidente e a Procuradoria-Geral da República propôs a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 548/2018, visando a “evitar e reparar lesão a preceitos fundamentais” que delas resultassem, além de proteger de interferências “aulas, palestras, debates ou atos congêneres”, rejeitando ainda “a inquirição de docentes, discentes e de outros cidadãos que estejam em local definido como universidade pública ou privada”. Segundo a petição, isso ocorrera ou estava em via de ocorrer em 24 instituições de educação superior diferentes.

O Supremo Tribunal Federal (STF) prontamente concedeu liminar, em defesa da autonomia das universidades brasileiras, consagrada no artigo 207 da Constituição, “bem como o livre exercício do pensar, da expressão e da manifestação pacífica”, garantidos no artigo 5.º.

Novas agressões a essas liberdades surgem agora, num estímulo à prática de denúncias pelos estudantes contra seus professores acusados de “doutrinação político-partidária” em sala de aula. A recomendação é que os alunos gravem ou filmem os docentes, encaminhando depois o material aos organizadores desse “disque-denúncia”. Uma dessas iniciativas parte de uma deputada recém-eleita pelo PSL-SC, Ana Caroline Campagnolo, que, ainda nem diplomada, usa nas redes sociais linguajar ofensivo e chulo, talvez acreditando estar já no gozo das prerrogativas da imunidade parlamentar.

Mas é importante enfrentar o argumento, para que pessoas de boa-fé não se iludam com essa iniciativa equivocada e nociva à educação.

A justificativa apresentada pelos defensores das denúncias é proteger estudantes de “manifestações político-partidárias ou ideológicas”. Nesse ponto, cumpre lembrar que o proselitismo já é considerado má prática acadêmica, como está expresso, por exemplo, no Código de Ética da Universidade de São Paulo (Resolução 4.871/2001), que se inspira em normas semelhantes às de outras instituições do mundo. Diz o artigo 3.º: “A ação da Universidade, respeitadas as opções individuais de seus membros, pautar-se-á pelos seguintes princípios: I – a não adoção de preferências ideológicas (...); II – a não adoção de posições de natureza partidária”.

Mas a universidade é um ambiente de pluralidade de ideias, onde podem ser estudados quaisquer temas, autores e teorias, respeitando as visões diversas. Como afirma o Código de Ética no artigo 4.º, “nas relações entre os membros da Universidade deve ser garantido: I – o intercâmbio de ideias e opiniões, sem preconceitos ou discriminações entre as partes envolvidas; II – o direito à liberdade de expressão dentro de normas de civilidade e sem quaisquer formas de desrespeito”.

A combinação dessas orientações explicita o que é próprio do ambiente acadêmico, a construção do saber e da consciência crítica pelo exercício da contraposição de ideias. Só assim se desenvolvem no estudante as capacidades de compreender argumentos, aceitá-los ou rejeitá-los, formando sua própria consciência e aptidão para pensar por si mesmo. Por essa razão, a liberdade é como o oxigênio para a universidade. Sem liberdade não há educação, mas, quando muito, treinamento para a aplicação de ideias preconcebidas por outros.

Como outras más práticas que podem atingir a universidade, como o plágio, por exemplo, cada instituição deve ter seus canais para conhecê-las, julgá-las e puni-las, se assim entender. No artigo 6.º do Código de Ética que estamos usando como ilustração, consta: “Constitui dever funcional e acadêmico dos membros da Universidade: III – prevenir e corrigir atos e procedimentos incompatíveis com as normas deste código e demais princípios éticos da Instituição, comunicando-os à Comissão de Ética”.

A “neutralidade”, como sabem aqueles que trabalham pelo desenvolvimento da ciência, é geralmente enganosa, na medida em que se depende de alguém para julgar se a prática é neutra ou não. E quem controlará esse juízo, para saber se ele é realmente neutro? O método científico consagrado baseia-se justamente em desafiar as verdades estabelecidas, sendo para isso indispensável revelar o ponto de vista que está sendo sustentado e suas premissas, de modo a permitir que outros pesquisadores conheçam os argumentos e os derrubem, se for o caso. 

Por fim, o denuncismo proposto em nome da “proteção da universidade” é reprovável. Além de ofender a Constituição, que assegura tanto a autonomia universitária como a liberdade de expressão (artigos 207 e 5.º), conforme decidiu o STF, é uma atitude que contraria as noções educacionais mais básicas. A educação que cultiva os valores da boa convivência em sociedade e do respeito não pode admitir a delação e a ameaça contra os professores. Isso, além de desvalorizá-los, subverte completamente o processo pedagógico, passando os alunos a decidir o que aprovam ou não no ambiente de ensino. É, no mínimo, incoerente que aqueles que dizem defender a restauração da autoridade do professor patrocinem denúncias que terminarão por desmoralizar a liderança dele na sala de aula. Dos que dão importância à educação se espera que rejeitem esse maléfico convite, que só trará prejuízos.

*PROFESSORA DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI SECRETÁRIA DE EDUCAÇÃO SUPERIOR E CONSULTORA JURÍDICA DO MEC E PROCURADORA-GERAL DA USP

A eleição terminou e o respeito à democracia obriga a reconhecer o resultado e os vencedores do pleito. O eleitor é soberano. Passado esse momento, há uma questão emergente, que fermentou no caldo da campanha e começa a transbordar, envenenando precocemente o cenário do novo governo. São as investidas contra a autonomia universitária e a liberdade de cátedra.

Na semana que antecedeu as eleições, uma ação coordenada dos Tribunais Regionais Eleitorais, a pretexto de garantir a neutralidade no uso do espaço das instituições públicas no período pré-eleitoral, proibiu debates e mandou retirar faixas colocadas nas faculdades que debatiam o autoritarismo ou se pronunciavam contra ele. A ofensa à Constituição contida nessas medidas era evidente e a Procuradoria-Geral da República propôs a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 548/2018, visando a “evitar e reparar lesão a preceitos fundamentais” que delas resultassem, além de proteger de interferências “aulas, palestras, debates ou atos congêneres”, rejeitando ainda “a inquirição de docentes, discentes e de outros cidadãos que estejam em local definido como universidade pública ou privada”. Segundo a petição, isso ocorrera ou estava em via de ocorrer em 24 instituições de educação superior diferentes.

O Supremo Tribunal Federal (STF) prontamente concedeu liminar, em defesa da autonomia das universidades brasileiras, consagrada no artigo 207 da Constituição, “bem como o livre exercício do pensar, da expressão e da manifestação pacífica”, garantidos no artigo 5.º.

Novas agressões a essas liberdades surgem agora, num estímulo à prática de denúncias pelos estudantes contra seus professores acusados de “doutrinação político-partidária” em sala de aula. A recomendação é que os alunos gravem ou filmem os docentes, encaminhando depois o material aos organizadores desse “disque-denúncia”. Uma dessas iniciativas parte de uma deputada recém-eleita pelo PSL-SC, Ana Caroline Campagnolo, que, ainda nem diplomada, usa nas redes sociais linguajar ofensivo e chulo, talvez acreditando estar já no gozo das prerrogativas da imunidade parlamentar.

Mas é importante enfrentar o argumento, para que pessoas de boa-fé não se iludam com essa iniciativa equivocada e nociva à educação.

A justificativa apresentada pelos defensores das denúncias é proteger estudantes de “manifestações político-partidárias ou ideológicas”. Nesse ponto, cumpre lembrar que o proselitismo já é considerado má prática acadêmica, como está expresso, por exemplo, no Código de Ética da Universidade de São Paulo (Resolução 4.871/2001), que se inspira em normas semelhantes às de outras instituições do mundo. Diz o artigo 3.º: “A ação da Universidade, respeitadas as opções individuais de seus membros, pautar-se-á pelos seguintes princípios: I – a não adoção de preferências ideológicas (...); II – a não adoção de posições de natureza partidária”.

Mas a universidade é um ambiente de pluralidade de ideias, onde podem ser estudados quaisquer temas, autores e teorias, respeitando as visões diversas. Como afirma o Código de Ética no artigo 4.º, “nas relações entre os membros da Universidade deve ser garantido: I – o intercâmbio de ideias e opiniões, sem preconceitos ou discriminações entre as partes envolvidas; II – o direito à liberdade de expressão dentro de normas de civilidade e sem quaisquer formas de desrespeito”.

A combinação dessas orientações explicita o que é próprio do ambiente acadêmico, a construção do saber e da consciência crítica pelo exercício da contraposição de ideias. Só assim se desenvolvem no estudante as capacidades de compreender argumentos, aceitá-los ou rejeitá-los, formando sua própria consciência e aptidão para pensar por si mesmo. Por essa razão, a liberdade é como o oxigênio para a universidade. Sem liberdade não há educação, mas, quando muito, treinamento para a aplicação de ideias preconcebidas por outros.

Como outras más práticas que podem atingir a universidade, como o plágio, por exemplo, cada instituição deve ter seus canais para conhecê-las, julgá-las e puni-las, se assim entender. No artigo 6.º do Código de Ética que estamos usando como ilustração, consta: “Constitui dever funcional e acadêmico dos membros da Universidade: III – prevenir e corrigir atos e procedimentos incompatíveis com as normas deste código e demais princípios éticos da Instituição, comunicando-os à Comissão de Ética”.

A “neutralidade”, como sabem aqueles que trabalham pelo desenvolvimento da ciência, é geralmente enganosa, na medida em que se depende de alguém para julgar se a prática é neutra ou não. E quem controlará esse juízo, para saber se ele é realmente neutro? O método científico consagrado baseia-se justamente em desafiar as verdades estabelecidas, sendo para isso indispensável revelar o ponto de vista que está sendo sustentado e suas premissas, de modo a permitir que outros pesquisadores conheçam os argumentos e os derrubem, se for o caso. 

Por fim, o denuncismo proposto em nome da “proteção da universidade” é reprovável. Além de ofender a Constituição, que assegura tanto a autonomia universitária como a liberdade de expressão (artigos 207 e 5.º), conforme decidiu o STF, é uma atitude que contraria as noções educacionais mais básicas. A educação que cultiva os valores da boa convivência em sociedade e do respeito não pode admitir a delação e a ameaça contra os professores. Isso, além de desvalorizá-los, subverte completamente o processo pedagógico, passando os alunos a decidir o que aprovam ou não no ambiente de ensino. É, no mínimo, incoerente que aqueles que dizem defender a restauração da autoridade do professor patrocinem denúncias que terminarão por desmoralizar a liderança dele na sala de aula. Dos que dão importância à educação se espera que rejeitem esse maléfico convite, que só trará prejuízos.

*PROFESSORA DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI SECRETÁRIA DE EDUCAÇÃO SUPERIOR E CONSULTORA JURÍDICA DO MEC E PROCURADORA-GERAL DA USP

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.