“Jornalismo independente é aquele que expressa sua opinião livre de qualquer pressão”Julio de Mesquita Neto
Democracia é um bem mais frágil do que aparenta. Sem cuidado e proteção da sociedade ela pode fenecer. É mais comum, aliás, que definhe aos poucos do que de uma vez só. E quando a democracia começa a ser asfixiada, em geral, segue um roteiro que começa com direitos de defesa sendo cassados, jornalistas e opositores sendo censurados, coagidos ou ameaçados.
No best-seller Como as Democracias Morrem, os professores de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt identificam alguns pontos comuns para a ascensão de um regime autoritário. Um deles é a “propensão a restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia”. Mas não devemos esquecer as outras características apontadas pelos autores: rejeição das regras democráticas do jogo (ou compromisso débil com elas), negação da legitimidade dos oponentes políticos, tolerância ou encorajamento à violência.
Pois no dia 10 de março nos deparamos com algo muito grave. Uma acusação falsa contra a repórter Constança Rezende, profissional de O Estado de S. Paulo, foi publicada por um blog mantido por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro. Constança vinha investigando denúncias sobre as movimentações financeiras atípicas de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente. A postagem atribuía à repórter a intenção de “arruinar Flávio Bolsonaro e o governo”. Em suma, era um texto falso que se prestava à tese falsa de um complô da mídia contra o governo. O presidente retuitou o texto, ressaltando que Constança é filha do jornalista Chico Otávio, de O Globo. E concluiu afirmando: “Querem derrubar o governo com chantagens, desinformações e vazamentos”.
Em decorrência dessa acusação falsa, a jornalista passou a ser atacada e ameaçada nas redes sociais por apoiadores do presidente. É inadmissível que a violência contra uma jornalista, ou qualquer outro cidadão, seja estimulada por um presidente da República.
Infelizmente, o presidente demonstrou em outras ocasiões pouco apreço pela imprensa e tem mantido o hábito de atacar nominalmente veículos de comunicação que fazem matérias que o contrariam. O Grupo Globo já foi alvo. A Folha de S.Paulo, também. E, enfim, o Estadão e uma profissional do jornal foram igualmente atingidos. A propósito, reportagem do Estado revelou que a cada três dias o presidente posta no Twitter alguma crítica, ironia ou questionamento ao trabalho dos veículos de comunicação.
A insatisfação com a imprensa é lícita. E é um traço comum aos mandatários, aqui e alhures. Afinal, é papel da imprensa manter uma postura crítica e independente em relação a todos os Poderes instituídos. Esse monitoramento do que fazem políticos e autoridades é uma das mais relevantes contribuições para o debate público e para o fortalecimento da democracia. É um trabalho que não pode ser cerceado nem confundido pelo governo com o da oposição, atividade a ser exercida por partidos e por outros setores organizados da sociedade - igualmente importante e digna de respeito quando exercida dentro da legalidade.
É oportuno relembrar que os ocupantes anteriores do Palácio do Planalto passaram pela mesma situação. Para que sigamos sem maiores sobressaltos seria importante que o atual presidente da República compreendesse e respeitasse a função exercida pelos jornalistas.
A Constituição federal proíbe a censura, em seu artigo 220 e em diversos incisos de seu artigo 5.º assegura o acesso à informação, resguarda o sigilo da fonte (inciso XIV), assegura o acesso às informações de órgãos públicos (inciso XXX), protege a livre manifestação do pensamento (o inciso IV) e a liberdade de expressão (inciso IX), garante a inviolabilidade da vida privada (inciso X), o direito de resposta (inciso V) e o direito a indenização por dano material ou moral à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas (inciso X).
Ao julgar a ADPF 130, leading case na matéria, nossa Corte constitucional, pelo voto do então ministro Ayres Britto, teve a oportunidade de consignar que a liberdade de imprensa é verdadeira fonte da democracia e por essa razão não pode sofrer embaraços nem nenhum tipo de regulação, sendo causa indispensável para a eficácia dos direitos emanados da vida em sociedade. Não foi outra a razão por que Claudio Lamachia, ex-presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), afirmou recentemente que “a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa são pilares efetivos da democracia”.
O arcabouço jurídico constitucional serve para permitir que a liberdade de expressão, incluída a de imprensa, seja exercida de maneira ampla e sem restrições, limitando-a exclusivamente, e por exceção, nos raros casos previstos na própria Constituição federal.
Em recente decisão de 2018, o decano do STF, ministro Celso de Mello, pontuou com seu magistério que, “no contexto de uma sociedade fundada em bases democráticas, mostra-se intolerável a repressão estatal ao pensamento, ainda mais quando a crítica - por mais dura que seja - revele-se inspirada pelo interesse coletivo e decorra da prática legítima de uma liberdade pública”.
Acreditamos ser importante, já agora, desde o início de nosso mandato, reafirmar o compromisso da OAB com a liberdade de expressão e de imprensa, como pressupostos do regime democrático que juramos defender. Não por acaso, o Conselho Federal da OAB criou em fevereiro um Observatório de Liberdade de Imprensa. A imprensa livre, crítica e independente se faz hoje mais necessária do que nunca.
Defenderemos a livre manifestação de todos, até mesmo dos que discordam da OAB, no limite da preservação do Estado Democrático de Direito e dos direitos fundamentais.
Essas são as barreiras que o Estado brasileiro não pode tolerar que sejam ultrapassadas.
*RESPECTIVAMENTE, PRESIDENTE E VICE-PRESIDENTE DA OAB