A realidade das plataformas digitais trouxe desafios inimagináveis para o campo jurídico, a começar por seu próprio modelo de negócio, que foge à regra e não se situa num único setor econômico. Constata-se também uma nova forma de informação, produzida ou, ao menos, divulgada pelos próprios usuários, em radical ruptura com a curadoria oferecida pelas chamadas mídias tradicionais. Outro elemento central deste novo paradigma é o alcance daquilo que é escrito, postado ou mesmo compartilhado. Em segundos, o conteúdo pode atingir milhares de pessoas nos mais diversos lugares do mundo, além de perdurar indefinidamente.
As plataformas digitais vieram para ficar. Trouxeram consigo inúmeros benefícios, mas também significantes dilemas. Há ainda um longo caminho para compreender de que maneira esta específica realidade virtual se configura como um particular locus de afetação de direitos, bens e valores constitucionalmente protegidos. Ao mesmo tempo, são muitas as questões que reclamam pronto enfrentamento, como o ataque às instituições democráticas.
Não há dúvida de que uma postagem pode representar um crime contra a honra de alguém – uma calúnia, por exemplo. Bem mais complexa é a discussão se e, em caso positivo, quais postagens poderiam representar, por si sós, crimes contra o Estado Democrático de Direito ou de terrorismo. Outra grande interrogação contemporânea refere-se ao que constitui exatamente desinformação – e quem fará essa verificação e com quais critérios.
Muitos destes impasses parecem residir na característica aqui metaforicamente denominada de linguagem ao quadrado. As regras jurídicas são construídas a partir da linguagem escrita. Sua aplicação demanda interpretação. Ao mesmo tempo, os conteúdos que flanam pelas plataformas digitais têm idêntica característica: também são linguagem e, por isso, exigem igualmente interpretação.
Como exemplo, vejam as seguintes postagens, largamente disseminadas antes do 8 de janeiro de 2023. “S.O.S. Forças Armadas.” “Compartilhem em suas redes, vamos pro quartel, bora fazer nossa história! Bora, povo, quem deve temer são eles.” “A reação do povo é proporcional à ação do Congresso e do STF contra esse mesmo povo. Se a casa é do povo, então o povo pode fazer o que quiser lá.”
Avaliar se quem postou (ou compartilhou) essas frases praticou crime contra o Estado Democrático de Direito demanda (1) identificar qual seria o crime em si e (2) justificar por que aquele conteúdo seria apto a consumar o crime em exame. Como hipótese, utiliza-se a modalidade especial de “incitação ao crime”, prevista no art. 268, parágrafo único, do Código Penal: “Incorre na mesma pena quem incita, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade”. Quem publicou em seu perfil numa rede social a frase “S.O.S. Forças Armadas” teria praticado o crime acima referido? Não há resposta isenta de controvérsia.
Para ilustrar: quem postou quaisquer dos outros conteúdos anteriormente transcritos teria cometido o crime do art. 359-L do Código Penal? A regra jurídica assim dispõe: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. Responder a essa questão exige definir, antes, se e em quais hipóteses um texto pode representar, isoladamente, uma “violência” ou, ao menos, uma “grave ameaça”. Também seria preciso avaliar se o conteúdo postado já pode significar uma tentativa de restringir o exercício de um dos poderes constituídos – e por quê. Certamente, o tema acende fartos debates.
O embaraço não parece ser menor a respeito da desinformação, cujo próprio conceito é envolto em disputa. Mais do que simples conteúdo inverídico ou altamente descontextualizado, a desinformação se apresenta como um ataque ao que é verídico e verificável. Além disso, a desinformação também se materializa a partir de linguagem, o que reconduz à dificuldade da linguagem ao quadrado já mencionada e, com ela, aos entraves de sua regulação e combate.
Mais denso e enraizado, outro obstáculo refere-se à elevada adesão suscitada pelas chamadas fake news. Sublinha-se a predisposição, baseada na correspondência do conteúdo falso aos desejos e interesses mais íntimos de quem o recebe e transmite, em acolhê-las. Sozinhas, as regras jurídicas nunca serão capazes de resolver o fenômeno, uma vez que a questão é nitidamente de outra ordem.
Eis uma pequena amostra do desafio que o Judiciário tem pela frente na hora de avaliar o que constitui crime no mundo das redes sociais. Além disso, há um ainda longo, mas urgente, debate sobre a regulação digital e a moderação de conteúdo pelas plataformas, envolvendo diretamente o Poder Legislativo – que por certo também produzirá reflexos na seara penal. São indagações complexas, com alto potencial de afetação sobre liberdades e garantias fundamentais, cujas respostas exigem consistente justificação.
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ADVOGADA CRIMINALISTA, É PROFESSORA DA FGV DIREITO SP