Opinião|Lula e as políticas de segurança


Há saídas técnicas e políticas para começar a reverter o nosso desastre securitário, e elas passam por este atual governo

Por Gabriel Feltran

Eu ouvi Lula falando que puxa-saco não melhora o País, que era para a gente cobrar. Eu concordo. Com uma aliança tão ampla, da esquerda à direita, o governo tende a não ter um projeto claro. Ainda mais na segurança, a área de política pública que Lula sempre evitou enfrentar em seus governos anteriores. Segurança seria um problema dos Estados. Bolsonaro foi, no entanto, o primeiro a demonstrar que isso não é verdade. Unificou as polícias e os militares numa mesma ideologia, a do “CPF cancelado”. Um segundo mandato do mito reforçaria ainda mais a indução federal dessa ideologia para as políticas de segurança.

Até pela ausência de posição de Lula, o debate na segurança é paupérrimo no Brasil. De um lado, um uníssono de vozes pede mais cadeia e mais polícia ostensiva, justamente a combinação que nos trouxe até o abismo. De outro, um discurso vago diz que o problema é “social”. Enquanto isso, 50 mil “problemas sociais” são assassinados a cada ano, enquanto quase 1 milhão de pessoas lota as cadeias para aprender a ser criminoso de verdade.

Se é para cobrar, Lula, vamos lá. Nenhuma área de políticas públicas vai pior do que a segurança. Há 40 anos nossas casas não tinham muro; hoje, têm esquemas sofisticados de vigilância, e temos mais medo do que antes. Penso que o desastre que é a segurança pública no Brasil tem quatro pilares. São eles os que precisariam ser trabalhados, de modo coordenado, num projeto que mudasse o rumo de nossa catástrofe anunciada.

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Em primeiro lugar, é fundamental uma política nacional para esclarecer homicídios. Quem decide quem vive ou morre é o soberano de um território. Hoje, o Estado brasileiro não é capaz de fazer isso. Operários dos mercados ilegais – recrutados entre os contingentes mais pobres e pretos da população – são mortos à vontade. Oficialmente, 63% dos homicídios ficam sem esclarecimento estatal (mas muitos Estados nem sequer têm esse dado). Mesmo quando há definição de autoria, o Estado não faz justiça em muitíssimos casos. As facções, no entanto, esclarecem esses crimes e os punem, ao modo delas. No Estado de São Paulo, venho há muitos anos demonstrando como o PCC cuidou do assunto, fazendo despencarem as taxas. Agora, o mesmo processo ocorre em outros Estados. É preciso uma política nacional que reverta a tendência, e não é tão difícil de fazê-la.

Em segundo lugar, não há nenhuma proposta de regulação de mercados ilegais, que estão na base de todo o drama. E, mesmo com Lula tendo Geraldo Alckmin como vice (ele e Alexandre de Moraes fizeram a Lei do Desmanche em São Paulo, que vem mostrando ótimos resultados para reduzir o roubo e furto de veículos). Seria fundamental regular progressivamente os mercados ilegais violentos. Acha-se certo matar traficantes de 15 anos de idade, mas não se acha certo matar garçons que servem cerveja. Por quê?

Terceiro: Lula não fala nada sobre a política carcerária. Tudo se passa como se prender melhorasse a segurança, quando sabemos que todas as facções nasceram, cresceram e crescem nas cadeias. Quando um traficante de 18 anos é preso na esquina, passamos a ter dois traficantes: um preso e outro em seu lugar, na mesma esquina. Temos feito isso há 40 anos, multiplicando o exército faccional. Alianças mafiosas internacionais se tecem nas cadeias. E dizem que devemos seguir... prendendo. Não funcionou nos últimos 40 anos.

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Mas há um quarto ponto ainda mais sensível: Lula não fala sobre as polícias. Nada sobre controles interno e externo. A questão não é só colocar câmeras ou não, ainda que tenhamos visto o impacto positivo delas. O problema é devolver ao Estado algum controle sobre a segurança, hoje na mão de grupos políticos incrustados nas polícias militares. Lula não sabe que o orçamento da segurança é apropriado por polícias políticas?

Sem mexer nesses quatro pontos, o atual ministro da Justiça e Segurança vai repetir, junto com seus sucessores, o que dois ministros anteriores – de direita e de esquerda – disseram juntos num evento em que eu estava, no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP): “Embora não quiséssemos, nos nossos mandatos só conseguimos construir mais prisões”. É preciso diretriz federal para a Segurança, senão repetiremos isso “por mais zil anos”.

Não há saída mágica, depois de 40 anos de um modelo profundamente equivocado na segurança. Há saídas técnicas e políticas para começar a reverter o nosso desastre securitário, e elas passam por este governo Lula. Os discursos que ouvimos na posse afirmam que este governo também será dos que sempre foram perseguidos pelo Estado brasileiro. Mas como, sem mexer na direção das políticas de segurança? É preciso alguma coragem, que Lula tem de sobra, e uma tomada de posição deste mesmo Lula, que insiste em silenciar sobre o tema. “Ah, mas segurança é com os Estados”, afirmam os mais ingênuos. Se Lula não agir, pode ser um tiro no pé.

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DIRETOR DE PESQUISA NO CENTRO NACIONAL DE PESQUISAS CIENTÍFICAS DA FRANÇA (CNRS) E PROFESSOR DA SCIENCES PO (PARIS, FRANÇA)

Eu ouvi Lula falando que puxa-saco não melhora o País, que era para a gente cobrar. Eu concordo. Com uma aliança tão ampla, da esquerda à direita, o governo tende a não ter um projeto claro. Ainda mais na segurança, a área de política pública que Lula sempre evitou enfrentar em seus governos anteriores. Segurança seria um problema dos Estados. Bolsonaro foi, no entanto, o primeiro a demonstrar que isso não é verdade. Unificou as polícias e os militares numa mesma ideologia, a do “CPF cancelado”. Um segundo mandato do mito reforçaria ainda mais a indução federal dessa ideologia para as políticas de segurança.

Até pela ausência de posição de Lula, o debate na segurança é paupérrimo no Brasil. De um lado, um uníssono de vozes pede mais cadeia e mais polícia ostensiva, justamente a combinação que nos trouxe até o abismo. De outro, um discurso vago diz que o problema é “social”. Enquanto isso, 50 mil “problemas sociais” são assassinados a cada ano, enquanto quase 1 milhão de pessoas lota as cadeias para aprender a ser criminoso de verdade.

Se é para cobrar, Lula, vamos lá. Nenhuma área de políticas públicas vai pior do que a segurança. Há 40 anos nossas casas não tinham muro; hoje, têm esquemas sofisticados de vigilância, e temos mais medo do que antes. Penso que o desastre que é a segurança pública no Brasil tem quatro pilares. São eles os que precisariam ser trabalhados, de modo coordenado, num projeto que mudasse o rumo de nossa catástrofe anunciada.

Em primeiro lugar, é fundamental uma política nacional para esclarecer homicídios. Quem decide quem vive ou morre é o soberano de um território. Hoje, o Estado brasileiro não é capaz de fazer isso. Operários dos mercados ilegais – recrutados entre os contingentes mais pobres e pretos da população – são mortos à vontade. Oficialmente, 63% dos homicídios ficam sem esclarecimento estatal (mas muitos Estados nem sequer têm esse dado). Mesmo quando há definição de autoria, o Estado não faz justiça em muitíssimos casos. As facções, no entanto, esclarecem esses crimes e os punem, ao modo delas. No Estado de São Paulo, venho há muitos anos demonstrando como o PCC cuidou do assunto, fazendo despencarem as taxas. Agora, o mesmo processo ocorre em outros Estados. É preciso uma política nacional que reverta a tendência, e não é tão difícil de fazê-la.

Em segundo lugar, não há nenhuma proposta de regulação de mercados ilegais, que estão na base de todo o drama. E, mesmo com Lula tendo Geraldo Alckmin como vice (ele e Alexandre de Moraes fizeram a Lei do Desmanche em São Paulo, que vem mostrando ótimos resultados para reduzir o roubo e furto de veículos). Seria fundamental regular progressivamente os mercados ilegais violentos. Acha-se certo matar traficantes de 15 anos de idade, mas não se acha certo matar garçons que servem cerveja. Por quê?

Terceiro: Lula não fala nada sobre a política carcerária. Tudo se passa como se prender melhorasse a segurança, quando sabemos que todas as facções nasceram, cresceram e crescem nas cadeias. Quando um traficante de 18 anos é preso na esquina, passamos a ter dois traficantes: um preso e outro em seu lugar, na mesma esquina. Temos feito isso há 40 anos, multiplicando o exército faccional. Alianças mafiosas internacionais se tecem nas cadeias. E dizem que devemos seguir... prendendo. Não funcionou nos últimos 40 anos.

Mas há um quarto ponto ainda mais sensível: Lula não fala sobre as polícias. Nada sobre controles interno e externo. A questão não é só colocar câmeras ou não, ainda que tenhamos visto o impacto positivo delas. O problema é devolver ao Estado algum controle sobre a segurança, hoje na mão de grupos políticos incrustados nas polícias militares. Lula não sabe que o orçamento da segurança é apropriado por polícias políticas?

Sem mexer nesses quatro pontos, o atual ministro da Justiça e Segurança vai repetir, junto com seus sucessores, o que dois ministros anteriores – de direita e de esquerda – disseram juntos num evento em que eu estava, no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP): “Embora não quiséssemos, nos nossos mandatos só conseguimos construir mais prisões”. É preciso diretriz federal para a Segurança, senão repetiremos isso “por mais zil anos”.

Não há saída mágica, depois de 40 anos de um modelo profundamente equivocado na segurança. Há saídas técnicas e políticas para começar a reverter o nosso desastre securitário, e elas passam por este governo Lula. Os discursos que ouvimos na posse afirmam que este governo também será dos que sempre foram perseguidos pelo Estado brasileiro. Mas como, sem mexer na direção das políticas de segurança? É preciso alguma coragem, que Lula tem de sobra, e uma tomada de posição deste mesmo Lula, que insiste em silenciar sobre o tema. “Ah, mas segurança é com os Estados”, afirmam os mais ingênuos. Se Lula não agir, pode ser um tiro no pé.

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DIRETOR DE PESQUISA NO CENTRO NACIONAL DE PESQUISAS CIENTÍFICAS DA FRANÇA (CNRS) E PROFESSOR DA SCIENCES PO (PARIS, FRANÇA)

Eu ouvi Lula falando que puxa-saco não melhora o País, que era para a gente cobrar. Eu concordo. Com uma aliança tão ampla, da esquerda à direita, o governo tende a não ter um projeto claro. Ainda mais na segurança, a área de política pública que Lula sempre evitou enfrentar em seus governos anteriores. Segurança seria um problema dos Estados. Bolsonaro foi, no entanto, o primeiro a demonstrar que isso não é verdade. Unificou as polícias e os militares numa mesma ideologia, a do “CPF cancelado”. Um segundo mandato do mito reforçaria ainda mais a indução federal dessa ideologia para as políticas de segurança.

Até pela ausência de posição de Lula, o debate na segurança é paupérrimo no Brasil. De um lado, um uníssono de vozes pede mais cadeia e mais polícia ostensiva, justamente a combinação que nos trouxe até o abismo. De outro, um discurso vago diz que o problema é “social”. Enquanto isso, 50 mil “problemas sociais” são assassinados a cada ano, enquanto quase 1 milhão de pessoas lota as cadeias para aprender a ser criminoso de verdade.

Se é para cobrar, Lula, vamos lá. Nenhuma área de políticas públicas vai pior do que a segurança. Há 40 anos nossas casas não tinham muro; hoje, têm esquemas sofisticados de vigilância, e temos mais medo do que antes. Penso que o desastre que é a segurança pública no Brasil tem quatro pilares. São eles os que precisariam ser trabalhados, de modo coordenado, num projeto que mudasse o rumo de nossa catástrofe anunciada.

Em primeiro lugar, é fundamental uma política nacional para esclarecer homicídios. Quem decide quem vive ou morre é o soberano de um território. Hoje, o Estado brasileiro não é capaz de fazer isso. Operários dos mercados ilegais – recrutados entre os contingentes mais pobres e pretos da população – são mortos à vontade. Oficialmente, 63% dos homicídios ficam sem esclarecimento estatal (mas muitos Estados nem sequer têm esse dado). Mesmo quando há definição de autoria, o Estado não faz justiça em muitíssimos casos. As facções, no entanto, esclarecem esses crimes e os punem, ao modo delas. No Estado de São Paulo, venho há muitos anos demonstrando como o PCC cuidou do assunto, fazendo despencarem as taxas. Agora, o mesmo processo ocorre em outros Estados. É preciso uma política nacional que reverta a tendência, e não é tão difícil de fazê-la.

Em segundo lugar, não há nenhuma proposta de regulação de mercados ilegais, que estão na base de todo o drama. E, mesmo com Lula tendo Geraldo Alckmin como vice (ele e Alexandre de Moraes fizeram a Lei do Desmanche em São Paulo, que vem mostrando ótimos resultados para reduzir o roubo e furto de veículos). Seria fundamental regular progressivamente os mercados ilegais violentos. Acha-se certo matar traficantes de 15 anos de idade, mas não se acha certo matar garçons que servem cerveja. Por quê?

Terceiro: Lula não fala nada sobre a política carcerária. Tudo se passa como se prender melhorasse a segurança, quando sabemos que todas as facções nasceram, cresceram e crescem nas cadeias. Quando um traficante de 18 anos é preso na esquina, passamos a ter dois traficantes: um preso e outro em seu lugar, na mesma esquina. Temos feito isso há 40 anos, multiplicando o exército faccional. Alianças mafiosas internacionais se tecem nas cadeias. E dizem que devemos seguir... prendendo. Não funcionou nos últimos 40 anos.

Mas há um quarto ponto ainda mais sensível: Lula não fala sobre as polícias. Nada sobre controles interno e externo. A questão não é só colocar câmeras ou não, ainda que tenhamos visto o impacto positivo delas. O problema é devolver ao Estado algum controle sobre a segurança, hoje na mão de grupos políticos incrustados nas polícias militares. Lula não sabe que o orçamento da segurança é apropriado por polícias políticas?

Sem mexer nesses quatro pontos, o atual ministro da Justiça e Segurança vai repetir, junto com seus sucessores, o que dois ministros anteriores – de direita e de esquerda – disseram juntos num evento em que eu estava, no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP): “Embora não quiséssemos, nos nossos mandatos só conseguimos construir mais prisões”. É preciso diretriz federal para a Segurança, senão repetiremos isso “por mais zil anos”.

Não há saída mágica, depois de 40 anos de um modelo profundamente equivocado na segurança. Há saídas técnicas e políticas para começar a reverter o nosso desastre securitário, e elas passam por este governo Lula. Os discursos que ouvimos na posse afirmam que este governo também será dos que sempre foram perseguidos pelo Estado brasileiro. Mas como, sem mexer na direção das políticas de segurança? É preciso alguma coragem, que Lula tem de sobra, e uma tomada de posição deste mesmo Lula, que insiste em silenciar sobre o tema. “Ah, mas segurança é com os Estados”, afirmam os mais ingênuos. Se Lula não agir, pode ser um tiro no pé.

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DIRETOR DE PESQUISA NO CENTRO NACIONAL DE PESQUISAS CIENTÍFICAS DA FRANÇA (CNRS) E PROFESSOR DA SCIENCES PO (PARIS, FRANÇA)

Eu ouvi Lula falando que puxa-saco não melhora o País, que era para a gente cobrar. Eu concordo. Com uma aliança tão ampla, da esquerda à direita, o governo tende a não ter um projeto claro. Ainda mais na segurança, a área de política pública que Lula sempre evitou enfrentar em seus governos anteriores. Segurança seria um problema dos Estados. Bolsonaro foi, no entanto, o primeiro a demonstrar que isso não é verdade. Unificou as polícias e os militares numa mesma ideologia, a do “CPF cancelado”. Um segundo mandato do mito reforçaria ainda mais a indução federal dessa ideologia para as políticas de segurança.

Até pela ausência de posição de Lula, o debate na segurança é paupérrimo no Brasil. De um lado, um uníssono de vozes pede mais cadeia e mais polícia ostensiva, justamente a combinação que nos trouxe até o abismo. De outro, um discurso vago diz que o problema é “social”. Enquanto isso, 50 mil “problemas sociais” são assassinados a cada ano, enquanto quase 1 milhão de pessoas lota as cadeias para aprender a ser criminoso de verdade.

Se é para cobrar, Lula, vamos lá. Nenhuma área de políticas públicas vai pior do que a segurança. Há 40 anos nossas casas não tinham muro; hoje, têm esquemas sofisticados de vigilância, e temos mais medo do que antes. Penso que o desastre que é a segurança pública no Brasil tem quatro pilares. São eles os que precisariam ser trabalhados, de modo coordenado, num projeto que mudasse o rumo de nossa catástrofe anunciada.

Em primeiro lugar, é fundamental uma política nacional para esclarecer homicídios. Quem decide quem vive ou morre é o soberano de um território. Hoje, o Estado brasileiro não é capaz de fazer isso. Operários dos mercados ilegais – recrutados entre os contingentes mais pobres e pretos da população – são mortos à vontade. Oficialmente, 63% dos homicídios ficam sem esclarecimento estatal (mas muitos Estados nem sequer têm esse dado). Mesmo quando há definição de autoria, o Estado não faz justiça em muitíssimos casos. As facções, no entanto, esclarecem esses crimes e os punem, ao modo delas. No Estado de São Paulo, venho há muitos anos demonstrando como o PCC cuidou do assunto, fazendo despencarem as taxas. Agora, o mesmo processo ocorre em outros Estados. É preciso uma política nacional que reverta a tendência, e não é tão difícil de fazê-la.

Em segundo lugar, não há nenhuma proposta de regulação de mercados ilegais, que estão na base de todo o drama. E, mesmo com Lula tendo Geraldo Alckmin como vice (ele e Alexandre de Moraes fizeram a Lei do Desmanche em São Paulo, que vem mostrando ótimos resultados para reduzir o roubo e furto de veículos). Seria fundamental regular progressivamente os mercados ilegais violentos. Acha-se certo matar traficantes de 15 anos de idade, mas não se acha certo matar garçons que servem cerveja. Por quê?

Terceiro: Lula não fala nada sobre a política carcerária. Tudo se passa como se prender melhorasse a segurança, quando sabemos que todas as facções nasceram, cresceram e crescem nas cadeias. Quando um traficante de 18 anos é preso na esquina, passamos a ter dois traficantes: um preso e outro em seu lugar, na mesma esquina. Temos feito isso há 40 anos, multiplicando o exército faccional. Alianças mafiosas internacionais se tecem nas cadeias. E dizem que devemos seguir... prendendo. Não funcionou nos últimos 40 anos.

Mas há um quarto ponto ainda mais sensível: Lula não fala sobre as polícias. Nada sobre controles interno e externo. A questão não é só colocar câmeras ou não, ainda que tenhamos visto o impacto positivo delas. O problema é devolver ao Estado algum controle sobre a segurança, hoje na mão de grupos políticos incrustados nas polícias militares. Lula não sabe que o orçamento da segurança é apropriado por polícias políticas?

Sem mexer nesses quatro pontos, o atual ministro da Justiça e Segurança vai repetir, junto com seus sucessores, o que dois ministros anteriores – de direita e de esquerda – disseram juntos num evento em que eu estava, no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP): “Embora não quiséssemos, nos nossos mandatos só conseguimos construir mais prisões”. É preciso diretriz federal para a Segurança, senão repetiremos isso “por mais zil anos”.

Não há saída mágica, depois de 40 anos de um modelo profundamente equivocado na segurança. Há saídas técnicas e políticas para começar a reverter o nosso desastre securitário, e elas passam por este governo Lula. Os discursos que ouvimos na posse afirmam que este governo também será dos que sempre foram perseguidos pelo Estado brasileiro. Mas como, sem mexer na direção das políticas de segurança? É preciso alguma coragem, que Lula tem de sobra, e uma tomada de posição deste mesmo Lula, que insiste em silenciar sobre o tema. “Ah, mas segurança é com os Estados”, afirmam os mais ingênuos. Se Lula não agir, pode ser um tiro no pé.

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DIRETOR DE PESQUISA NO CENTRO NACIONAL DE PESQUISAS CIENTÍFICAS DA FRANÇA (CNRS) E PROFESSOR DA SCIENCES PO (PARIS, FRANÇA)

Eu ouvi Lula falando que puxa-saco não melhora o País, que era para a gente cobrar. Eu concordo. Com uma aliança tão ampla, da esquerda à direita, o governo tende a não ter um projeto claro. Ainda mais na segurança, a área de política pública que Lula sempre evitou enfrentar em seus governos anteriores. Segurança seria um problema dos Estados. Bolsonaro foi, no entanto, o primeiro a demonstrar que isso não é verdade. Unificou as polícias e os militares numa mesma ideologia, a do “CPF cancelado”. Um segundo mandato do mito reforçaria ainda mais a indução federal dessa ideologia para as políticas de segurança.

Até pela ausência de posição de Lula, o debate na segurança é paupérrimo no Brasil. De um lado, um uníssono de vozes pede mais cadeia e mais polícia ostensiva, justamente a combinação que nos trouxe até o abismo. De outro, um discurso vago diz que o problema é “social”. Enquanto isso, 50 mil “problemas sociais” são assassinados a cada ano, enquanto quase 1 milhão de pessoas lota as cadeias para aprender a ser criminoso de verdade.

Se é para cobrar, Lula, vamos lá. Nenhuma área de políticas públicas vai pior do que a segurança. Há 40 anos nossas casas não tinham muro; hoje, têm esquemas sofisticados de vigilância, e temos mais medo do que antes. Penso que o desastre que é a segurança pública no Brasil tem quatro pilares. São eles os que precisariam ser trabalhados, de modo coordenado, num projeto que mudasse o rumo de nossa catástrofe anunciada.

Em primeiro lugar, é fundamental uma política nacional para esclarecer homicídios. Quem decide quem vive ou morre é o soberano de um território. Hoje, o Estado brasileiro não é capaz de fazer isso. Operários dos mercados ilegais – recrutados entre os contingentes mais pobres e pretos da população – são mortos à vontade. Oficialmente, 63% dos homicídios ficam sem esclarecimento estatal (mas muitos Estados nem sequer têm esse dado). Mesmo quando há definição de autoria, o Estado não faz justiça em muitíssimos casos. As facções, no entanto, esclarecem esses crimes e os punem, ao modo delas. No Estado de São Paulo, venho há muitos anos demonstrando como o PCC cuidou do assunto, fazendo despencarem as taxas. Agora, o mesmo processo ocorre em outros Estados. É preciso uma política nacional que reverta a tendência, e não é tão difícil de fazê-la.

Em segundo lugar, não há nenhuma proposta de regulação de mercados ilegais, que estão na base de todo o drama. E, mesmo com Lula tendo Geraldo Alckmin como vice (ele e Alexandre de Moraes fizeram a Lei do Desmanche em São Paulo, que vem mostrando ótimos resultados para reduzir o roubo e furto de veículos). Seria fundamental regular progressivamente os mercados ilegais violentos. Acha-se certo matar traficantes de 15 anos de idade, mas não se acha certo matar garçons que servem cerveja. Por quê?

Terceiro: Lula não fala nada sobre a política carcerária. Tudo se passa como se prender melhorasse a segurança, quando sabemos que todas as facções nasceram, cresceram e crescem nas cadeias. Quando um traficante de 18 anos é preso na esquina, passamos a ter dois traficantes: um preso e outro em seu lugar, na mesma esquina. Temos feito isso há 40 anos, multiplicando o exército faccional. Alianças mafiosas internacionais se tecem nas cadeias. E dizem que devemos seguir... prendendo. Não funcionou nos últimos 40 anos.

Mas há um quarto ponto ainda mais sensível: Lula não fala sobre as polícias. Nada sobre controles interno e externo. A questão não é só colocar câmeras ou não, ainda que tenhamos visto o impacto positivo delas. O problema é devolver ao Estado algum controle sobre a segurança, hoje na mão de grupos políticos incrustados nas polícias militares. Lula não sabe que o orçamento da segurança é apropriado por polícias políticas?

Sem mexer nesses quatro pontos, o atual ministro da Justiça e Segurança vai repetir, junto com seus sucessores, o que dois ministros anteriores – de direita e de esquerda – disseram juntos num evento em que eu estava, no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP): “Embora não quiséssemos, nos nossos mandatos só conseguimos construir mais prisões”. É preciso diretriz federal para a Segurança, senão repetiremos isso “por mais zil anos”.

Não há saída mágica, depois de 40 anos de um modelo profundamente equivocado na segurança. Há saídas técnicas e políticas para começar a reverter o nosso desastre securitário, e elas passam por este governo Lula. Os discursos que ouvimos na posse afirmam que este governo também será dos que sempre foram perseguidos pelo Estado brasileiro. Mas como, sem mexer na direção das políticas de segurança? É preciso alguma coragem, que Lula tem de sobra, e uma tomada de posição deste mesmo Lula, que insiste em silenciar sobre o tema. “Ah, mas segurança é com os Estados”, afirmam os mais ingênuos. Se Lula não agir, pode ser um tiro no pé.

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Opinião por Gabriel Feltran

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