Opinião|Marçal é sintoma de uma sociedade sem esperança


Onde um personagem com essas características pode florescer, se não num ambiente de desesperança na vida comunitária e na ação conjunta dos cidadãos, ou seja, na política?

Por Marcelo de Azevedo Granato

O entusiasmo em torno da figura de Pablo Marçal, candidato à Prefeitura de São Paulo quando da redação deste texto, tem algo de paradoxal. Afinal, é um entusiasmo que parece florescer não na esperança, mas na desesperança dos seus adeptos quanto à ação política.

Assim como o ex-presidente Jair Bolsonaro, Marçal se declara antissistema. Também como Bolsonaro, que teve sua candidatura à Presidência em 2018 viabilizada pelo então inexpressivo Partido Social Liberal (PSL), Marçal se candidata à Prefeitura paulistana pelo Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), comandado até 2021 pelo falecido Levy Fidelix, proponente do “aerotrem”.

Ao contrário de Bolsonaro, porém, Marçal é realmente um outsider. O ex-presidente, como se sabe, vive da política há cerca de 30 anos. Ele próprio confirma sua procedência: “Eu sou do Centrão (...), eu nasci de lá” (22/7/2021).

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Bolsonaro está aninhado nas instituições desde sempre. Marçal não. Ele é um fenômeno do mundo digital despreocupado não só em articular-se politicamente, mas também em construir uma plataforma de governo crível. Devaneia teleféricos na periferia e edifícios de mil metros de altura; ele mesmo, em entrevista à Folha de S.Paulo e ao UOL, tratou suas propostas como “sonhos”. Tem condenação penal, desvios mil. Ora é agressor, ora é vítima; conciliador, nunca. Seu mantra é o empreendedorismo individual: na citada entrevista, prometeu a adoção da disciplina “empresarização” nas escolas (Marçal trata propostas como ‘sonhos’ em sabatina Folha/UOL e admite não cumpri-las em mandato, 4/9/2024).

Onde um personagem político com essas características pode florescer, se não num ambiente marcado pela desesperança na vida comunitária e na ação conjunta dos cidadãos, ou seja, na política?

Projetos políticos dignos do nome partem do pressuposto de que, numa comunidade política, “todos estão no mesmo barco”. Esses projetos têm diagnósticos e objetivos claros; objetivos a serem buscados coordenando-se, tanto quanto possível, a diversidade de preferências e visões presentes na população.

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Marçal, ao contrário, apoia-se num “voto punição”, como escreveu o colunista deste jornal Carlos Andreazza: “Vote – não para eleger – para punir. Não por realizações estruturais de governo. Por forra instantânea” (Campanha de Pablo Marçal oferece o voto punição, e dane-se o mandato, 9/9/2024).

Marçal não demonstra interesse por ideias bem construídas e propostas realizáveis. Seu repertório é infinito, no entanto, quando o objetivo é desqualificar seus adversários: o usuário de drogas, o assediador, o agressor e, claro, todos comunistas (a direita destes últimos anos, infelizmente, vive com a cabeça virada para trás). Marçal, como diz Andreazza em sua coluna, quer “desmascarar o bando. O município, a qualidade de vida do cidadão, será detalhe”. É o circo sem o pão. É a degeneração como único caminho para qualquer melhora futura (fator também presente na adesão a Bolsonaro).

E aqui Marçal é algo coerente: em seu desprezo pelo entendimento e pela ação conjunta, ele enaltece a determinação individual, a iniciativa empreendedora. É essa a perspectiva que ele oferece ao eleitor. Sua mensagem cifrada é de que os cidadãos não dependem uns dos outros. Ao contrário, sua ideia de comunidade pressupõe vencedores e perdedores – cidadãos atomizados, portanto. Daí a única missão política do candidato: “servir de agente (...) à penalização do establishment” (Andreazza).

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Essa disseminada aversão ao establishment, notadamente à política, muitas vezes passa por cima da distinção entre os políticos e a política. É elementar que a atuação dos políticos profissionais tem sido frustrante sob qualquer ótica republicana. Menos considerado, porém, é o fato de que isso, em certa medida, é responsabilidade do próprio eleitor: é ele que elege o político; é ele que não acompanha o exercício do seu mandato; às vezes, nem se lembra do candidato em que votou. A democracia representativa não é uma via de mão única. Seu sucesso depende também de cidadãos bem informados e ativos.

Além disso, como apontado anteriormente, política é sinônimo de vida comunitária. Sem a política, a comunidade entrega-se ao “cada um por si”; impulsos e paixões são despejados, em sua forma bruta e não raro extrema, na esfera pública. Como diz o professor e colunista deste jornal Marco Aurélio Nogueira, a política “solicita uma concessão difícil de ser feita: ela pede que os indivíduos e os grupos saiam de si mesmos, moderem-se, ultrapassem-se”. A política necessita, portanto, de mentalidades alargadas, que tomem em consideração a diversidade de pessoas e ideias presentes no corpo social, visando a “criar as condições para que se passe da defesa dos interesses particulares para a construção e a defesa do interesse geral” (Em Defesa da Política). Daí o valor, numa política que mire a construção de um futuro comum, do respeito, da moderação, da empatia, da civilidade. Características que Pablo Marçal não tem.

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DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA ‘UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO’, INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FADI E FACAMP

O entusiasmo em torno da figura de Pablo Marçal, candidato à Prefeitura de São Paulo quando da redação deste texto, tem algo de paradoxal. Afinal, é um entusiasmo que parece florescer não na esperança, mas na desesperança dos seus adeptos quanto à ação política.

Assim como o ex-presidente Jair Bolsonaro, Marçal se declara antissistema. Também como Bolsonaro, que teve sua candidatura à Presidência em 2018 viabilizada pelo então inexpressivo Partido Social Liberal (PSL), Marçal se candidata à Prefeitura paulistana pelo Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), comandado até 2021 pelo falecido Levy Fidelix, proponente do “aerotrem”.

Ao contrário de Bolsonaro, porém, Marçal é realmente um outsider. O ex-presidente, como se sabe, vive da política há cerca de 30 anos. Ele próprio confirma sua procedência: “Eu sou do Centrão (...), eu nasci de lá” (22/7/2021).

Bolsonaro está aninhado nas instituições desde sempre. Marçal não. Ele é um fenômeno do mundo digital despreocupado não só em articular-se politicamente, mas também em construir uma plataforma de governo crível. Devaneia teleféricos na periferia e edifícios de mil metros de altura; ele mesmo, em entrevista à Folha de S.Paulo e ao UOL, tratou suas propostas como “sonhos”. Tem condenação penal, desvios mil. Ora é agressor, ora é vítima; conciliador, nunca. Seu mantra é o empreendedorismo individual: na citada entrevista, prometeu a adoção da disciplina “empresarização” nas escolas (Marçal trata propostas como ‘sonhos’ em sabatina Folha/UOL e admite não cumpri-las em mandato, 4/9/2024).

Onde um personagem político com essas características pode florescer, se não num ambiente marcado pela desesperança na vida comunitária e na ação conjunta dos cidadãos, ou seja, na política?

Projetos políticos dignos do nome partem do pressuposto de que, numa comunidade política, “todos estão no mesmo barco”. Esses projetos têm diagnósticos e objetivos claros; objetivos a serem buscados coordenando-se, tanto quanto possível, a diversidade de preferências e visões presentes na população.

Marçal, ao contrário, apoia-se num “voto punição”, como escreveu o colunista deste jornal Carlos Andreazza: “Vote – não para eleger – para punir. Não por realizações estruturais de governo. Por forra instantânea” (Campanha de Pablo Marçal oferece o voto punição, e dane-se o mandato, 9/9/2024).

Marçal não demonstra interesse por ideias bem construídas e propostas realizáveis. Seu repertório é infinito, no entanto, quando o objetivo é desqualificar seus adversários: o usuário de drogas, o assediador, o agressor e, claro, todos comunistas (a direita destes últimos anos, infelizmente, vive com a cabeça virada para trás). Marçal, como diz Andreazza em sua coluna, quer “desmascarar o bando. O município, a qualidade de vida do cidadão, será detalhe”. É o circo sem o pão. É a degeneração como único caminho para qualquer melhora futura (fator também presente na adesão a Bolsonaro).

E aqui Marçal é algo coerente: em seu desprezo pelo entendimento e pela ação conjunta, ele enaltece a determinação individual, a iniciativa empreendedora. É essa a perspectiva que ele oferece ao eleitor. Sua mensagem cifrada é de que os cidadãos não dependem uns dos outros. Ao contrário, sua ideia de comunidade pressupõe vencedores e perdedores – cidadãos atomizados, portanto. Daí a única missão política do candidato: “servir de agente (...) à penalização do establishment” (Andreazza).

Essa disseminada aversão ao establishment, notadamente à política, muitas vezes passa por cima da distinção entre os políticos e a política. É elementar que a atuação dos políticos profissionais tem sido frustrante sob qualquer ótica republicana. Menos considerado, porém, é o fato de que isso, em certa medida, é responsabilidade do próprio eleitor: é ele que elege o político; é ele que não acompanha o exercício do seu mandato; às vezes, nem se lembra do candidato em que votou. A democracia representativa não é uma via de mão única. Seu sucesso depende também de cidadãos bem informados e ativos.

Além disso, como apontado anteriormente, política é sinônimo de vida comunitária. Sem a política, a comunidade entrega-se ao “cada um por si”; impulsos e paixões são despejados, em sua forma bruta e não raro extrema, na esfera pública. Como diz o professor e colunista deste jornal Marco Aurélio Nogueira, a política “solicita uma concessão difícil de ser feita: ela pede que os indivíduos e os grupos saiam de si mesmos, moderem-se, ultrapassem-se”. A política necessita, portanto, de mentalidades alargadas, que tomem em consideração a diversidade de pessoas e ideias presentes no corpo social, visando a “criar as condições para que se passe da defesa dos interesses particulares para a construção e a defesa do interesse geral” (Em Defesa da Política). Daí o valor, numa política que mire a construção de um futuro comum, do respeito, da moderação, da empatia, da civilidade. Características que Pablo Marçal não tem.

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DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA ‘UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO’, INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FADI E FACAMP

O entusiasmo em torno da figura de Pablo Marçal, candidato à Prefeitura de São Paulo quando da redação deste texto, tem algo de paradoxal. Afinal, é um entusiasmo que parece florescer não na esperança, mas na desesperança dos seus adeptos quanto à ação política.

Assim como o ex-presidente Jair Bolsonaro, Marçal se declara antissistema. Também como Bolsonaro, que teve sua candidatura à Presidência em 2018 viabilizada pelo então inexpressivo Partido Social Liberal (PSL), Marçal se candidata à Prefeitura paulistana pelo Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), comandado até 2021 pelo falecido Levy Fidelix, proponente do “aerotrem”.

Ao contrário de Bolsonaro, porém, Marçal é realmente um outsider. O ex-presidente, como se sabe, vive da política há cerca de 30 anos. Ele próprio confirma sua procedência: “Eu sou do Centrão (...), eu nasci de lá” (22/7/2021).

Bolsonaro está aninhado nas instituições desde sempre. Marçal não. Ele é um fenômeno do mundo digital despreocupado não só em articular-se politicamente, mas também em construir uma plataforma de governo crível. Devaneia teleféricos na periferia e edifícios de mil metros de altura; ele mesmo, em entrevista à Folha de S.Paulo e ao UOL, tratou suas propostas como “sonhos”. Tem condenação penal, desvios mil. Ora é agressor, ora é vítima; conciliador, nunca. Seu mantra é o empreendedorismo individual: na citada entrevista, prometeu a adoção da disciplina “empresarização” nas escolas (Marçal trata propostas como ‘sonhos’ em sabatina Folha/UOL e admite não cumpri-las em mandato, 4/9/2024).

Onde um personagem político com essas características pode florescer, se não num ambiente marcado pela desesperança na vida comunitária e na ação conjunta dos cidadãos, ou seja, na política?

Projetos políticos dignos do nome partem do pressuposto de que, numa comunidade política, “todos estão no mesmo barco”. Esses projetos têm diagnósticos e objetivos claros; objetivos a serem buscados coordenando-se, tanto quanto possível, a diversidade de preferências e visões presentes na população.

Marçal, ao contrário, apoia-se num “voto punição”, como escreveu o colunista deste jornal Carlos Andreazza: “Vote – não para eleger – para punir. Não por realizações estruturais de governo. Por forra instantânea” (Campanha de Pablo Marçal oferece o voto punição, e dane-se o mandato, 9/9/2024).

Marçal não demonstra interesse por ideias bem construídas e propostas realizáveis. Seu repertório é infinito, no entanto, quando o objetivo é desqualificar seus adversários: o usuário de drogas, o assediador, o agressor e, claro, todos comunistas (a direita destes últimos anos, infelizmente, vive com a cabeça virada para trás). Marçal, como diz Andreazza em sua coluna, quer “desmascarar o bando. O município, a qualidade de vida do cidadão, será detalhe”. É o circo sem o pão. É a degeneração como único caminho para qualquer melhora futura (fator também presente na adesão a Bolsonaro).

E aqui Marçal é algo coerente: em seu desprezo pelo entendimento e pela ação conjunta, ele enaltece a determinação individual, a iniciativa empreendedora. É essa a perspectiva que ele oferece ao eleitor. Sua mensagem cifrada é de que os cidadãos não dependem uns dos outros. Ao contrário, sua ideia de comunidade pressupõe vencedores e perdedores – cidadãos atomizados, portanto. Daí a única missão política do candidato: “servir de agente (...) à penalização do establishment” (Andreazza).

Essa disseminada aversão ao establishment, notadamente à política, muitas vezes passa por cima da distinção entre os políticos e a política. É elementar que a atuação dos políticos profissionais tem sido frustrante sob qualquer ótica republicana. Menos considerado, porém, é o fato de que isso, em certa medida, é responsabilidade do próprio eleitor: é ele que elege o político; é ele que não acompanha o exercício do seu mandato; às vezes, nem se lembra do candidato em que votou. A democracia representativa não é uma via de mão única. Seu sucesso depende também de cidadãos bem informados e ativos.

Além disso, como apontado anteriormente, política é sinônimo de vida comunitária. Sem a política, a comunidade entrega-se ao “cada um por si”; impulsos e paixões são despejados, em sua forma bruta e não raro extrema, na esfera pública. Como diz o professor e colunista deste jornal Marco Aurélio Nogueira, a política “solicita uma concessão difícil de ser feita: ela pede que os indivíduos e os grupos saiam de si mesmos, moderem-se, ultrapassem-se”. A política necessita, portanto, de mentalidades alargadas, que tomem em consideração a diversidade de pessoas e ideias presentes no corpo social, visando a “criar as condições para que se passe da defesa dos interesses particulares para a construção e a defesa do interesse geral” (Em Defesa da Política). Daí o valor, numa política que mire a construção de um futuro comum, do respeito, da moderação, da empatia, da civilidade. Características que Pablo Marçal não tem.

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DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA ‘UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO’, INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FADI E FACAMP

O entusiasmo em torno da figura de Pablo Marçal, candidato à Prefeitura de São Paulo quando da redação deste texto, tem algo de paradoxal. Afinal, é um entusiasmo que parece florescer não na esperança, mas na desesperança dos seus adeptos quanto à ação política.

Assim como o ex-presidente Jair Bolsonaro, Marçal se declara antissistema. Também como Bolsonaro, que teve sua candidatura à Presidência em 2018 viabilizada pelo então inexpressivo Partido Social Liberal (PSL), Marçal se candidata à Prefeitura paulistana pelo Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), comandado até 2021 pelo falecido Levy Fidelix, proponente do “aerotrem”.

Ao contrário de Bolsonaro, porém, Marçal é realmente um outsider. O ex-presidente, como se sabe, vive da política há cerca de 30 anos. Ele próprio confirma sua procedência: “Eu sou do Centrão (...), eu nasci de lá” (22/7/2021).

Bolsonaro está aninhado nas instituições desde sempre. Marçal não. Ele é um fenômeno do mundo digital despreocupado não só em articular-se politicamente, mas também em construir uma plataforma de governo crível. Devaneia teleféricos na periferia e edifícios de mil metros de altura; ele mesmo, em entrevista à Folha de S.Paulo e ao UOL, tratou suas propostas como “sonhos”. Tem condenação penal, desvios mil. Ora é agressor, ora é vítima; conciliador, nunca. Seu mantra é o empreendedorismo individual: na citada entrevista, prometeu a adoção da disciplina “empresarização” nas escolas (Marçal trata propostas como ‘sonhos’ em sabatina Folha/UOL e admite não cumpri-las em mandato, 4/9/2024).

Onde um personagem político com essas características pode florescer, se não num ambiente marcado pela desesperança na vida comunitária e na ação conjunta dos cidadãos, ou seja, na política?

Projetos políticos dignos do nome partem do pressuposto de que, numa comunidade política, “todos estão no mesmo barco”. Esses projetos têm diagnósticos e objetivos claros; objetivos a serem buscados coordenando-se, tanto quanto possível, a diversidade de preferências e visões presentes na população.

Marçal, ao contrário, apoia-se num “voto punição”, como escreveu o colunista deste jornal Carlos Andreazza: “Vote – não para eleger – para punir. Não por realizações estruturais de governo. Por forra instantânea” (Campanha de Pablo Marçal oferece o voto punição, e dane-se o mandato, 9/9/2024).

Marçal não demonstra interesse por ideias bem construídas e propostas realizáveis. Seu repertório é infinito, no entanto, quando o objetivo é desqualificar seus adversários: o usuário de drogas, o assediador, o agressor e, claro, todos comunistas (a direita destes últimos anos, infelizmente, vive com a cabeça virada para trás). Marçal, como diz Andreazza em sua coluna, quer “desmascarar o bando. O município, a qualidade de vida do cidadão, será detalhe”. É o circo sem o pão. É a degeneração como único caminho para qualquer melhora futura (fator também presente na adesão a Bolsonaro).

E aqui Marçal é algo coerente: em seu desprezo pelo entendimento e pela ação conjunta, ele enaltece a determinação individual, a iniciativa empreendedora. É essa a perspectiva que ele oferece ao eleitor. Sua mensagem cifrada é de que os cidadãos não dependem uns dos outros. Ao contrário, sua ideia de comunidade pressupõe vencedores e perdedores – cidadãos atomizados, portanto. Daí a única missão política do candidato: “servir de agente (...) à penalização do establishment” (Andreazza).

Essa disseminada aversão ao establishment, notadamente à política, muitas vezes passa por cima da distinção entre os políticos e a política. É elementar que a atuação dos políticos profissionais tem sido frustrante sob qualquer ótica republicana. Menos considerado, porém, é o fato de que isso, em certa medida, é responsabilidade do próprio eleitor: é ele que elege o político; é ele que não acompanha o exercício do seu mandato; às vezes, nem se lembra do candidato em que votou. A democracia representativa não é uma via de mão única. Seu sucesso depende também de cidadãos bem informados e ativos.

Além disso, como apontado anteriormente, política é sinônimo de vida comunitária. Sem a política, a comunidade entrega-se ao “cada um por si”; impulsos e paixões são despejados, em sua forma bruta e não raro extrema, na esfera pública. Como diz o professor e colunista deste jornal Marco Aurélio Nogueira, a política “solicita uma concessão difícil de ser feita: ela pede que os indivíduos e os grupos saiam de si mesmos, moderem-se, ultrapassem-se”. A política necessita, portanto, de mentalidades alargadas, que tomem em consideração a diversidade de pessoas e ideias presentes no corpo social, visando a “criar as condições para que se passe da defesa dos interesses particulares para a construção e a defesa do interesse geral” (Em Defesa da Política). Daí o valor, numa política que mire a construção de um futuro comum, do respeito, da moderação, da empatia, da civilidade. Características que Pablo Marçal não tem.

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DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA ‘UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO’, INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FADI E FACAMP

O entusiasmo em torno da figura de Pablo Marçal, candidato à Prefeitura de São Paulo quando da redação deste texto, tem algo de paradoxal. Afinal, é um entusiasmo que parece florescer não na esperança, mas na desesperança dos seus adeptos quanto à ação política.

Assim como o ex-presidente Jair Bolsonaro, Marçal se declara antissistema. Também como Bolsonaro, que teve sua candidatura à Presidência em 2018 viabilizada pelo então inexpressivo Partido Social Liberal (PSL), Marçal se candidata à Prefeitura paulistana pelo Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), comandado até 2021 pelo falecido Levy Fidelix, proponente do “aerotrem”.

Ao contrário de Bolsonaro, porém, Marçal é realmente um outsider. O ex-presidente, como se sabe, vive da política há cerca de 30 anos. Ele próprio confirma sua procedência: “Eu sou do Centrão (...), eu nasci de lá” (22/7/2021).

Bolsonaro está aninhado nas instituições desde sempre. Marçal não. Ele é um fenômeno do mundo digital despreocupado não só em articular-se politicamente, mas também em construir uma plataforma de governo crível. Devaneia teleféricos na periferia e edifícios de mil metros de altura; ele mesmo, em entrevista à Folha de S.Paulo e ao UOL, tratou suas propostas como “sonhos”. Tem condenação penal, desvios mil. Ora é agressor, ora é vítima; conciliador, nunca. Seu mantra é o empreendedorismo individual: na citada entrevista, prometeu a adoção da disciplina “empresarização” nas escolas (Marçal trata propostas como ‘sonhos’ em sabatina Folha/UOL e admite não cumpri-las em mandato, 4/9/2024).

Onde um personagem político com essas características pode florescer, se não num ambiente marcado pela desesperança na vida comunitária e na ação conjunta dos cidadãos, ou seja, na política?

Projetos políticos dignos do nome partem do pressuposto de que, numa comunidade política, “todos estão no mesmo barco”. Esses projetos têm diagnósticos e objetivos claros; objetivos a serem buscados coordenando-se, tanto quanto possível, a diversidade de preferências e visões presentes na população.

Marçal, ao contrário, apoia-se num “voto punição”, como escreveu o colunista deste jornal Carlos Andreazza: “Vote – não para eleger – para punir. Não por realizações estruturais de governo. Por forra instantânea” (Campanha de Pablo Marçal oferece o voto punição, e dane-se o mandato, 9/9/2024).

Marçal não demonstra interesse por ideias bem construídas e propostas realizáveis. Seu repertório é infinito, no entanto, quando o objetivo é desqualificar seus adversários: o usuário de drogas, o assediador, o agressor e, claro, todos comunistas (a direita destes últimos anos, infelizmente, vive com a cabeça virada para trás). Marçal, como diz Andreazza em sua coluna, quer “desmascarar o bando. O município, a qualidade de vida do cidadão, será detalhe”. É o circo sem o pão. É a degeneração como único caminho para qualquer melhora futura (fator também presente na adesão a Bolsonaro).

E aqui Marçal é algo coerente: em seu desprezo pelo entendimento e pela ação conjunta, ele enaltece a determinação individual, a iniciativa empreendedora. É essa a perspectiva que ele oferece ao eleitor. Sua mensagem cifrada é de que os cidadãos não dependem uns dos outros. Ao contrário, sua ideia de comunidade pressupõe vencedores e perdedores – cidadãos atomizados, portanto. Daí a única missão política do candidato: “servir de agente (...) à penalização do establishment” (Andreazza).

Essa disseminada aversão ao establishment, notadamente à política, muitas vezes passa por cima da distinção entre os políticos e a política. É elementar que a atuação dos políticos profissionais tem sido frustrante sob qualquer ótica republicana. Menos considerado, porém, é o fato de que isso, em certa medida, é responsabilidade do próprio eleitor: é ele que elege o político; é ele que não acompanha o exercício do seu mandato; às vezes, nem se lembra do candidato em que votou. A democracia representativa não é uma via de mão única. Seu sucesso depende também de cidadãos bem informados e ativos.

Além disso, como apontado anteriormente, política é sinônimo de vida comunitária. Sem a política, a comunidade entrega-se ao “cada um por si”; impulsos e paixões são despejados, em sua forma bruta e não raro extrema, na esfera pública. Como diz o professor e colunista deste jornal Marco Aurélio Nogueira, a política “solicita uma concessão difícil de ser feita: ela pede que os indivíduos e os grupos saiam de si mesmos, moderem-se, ultrapassem-se”. A política necessita, portanto, de mentalidades alargadas, que tomem em consideração a diversidade de pessoas e ideias presentes no corpo social, visando a “criar as condições para que se passe da defesa dos interesses particulares para a construção e a defesa do interesse geral” (Em Defesa da Política). Daí o valor, numa política que mire a construção de um futuro comum, do respeito, da moderação, da empatia, da civilidade. Características que Pablo Marçal não tem.

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DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA ‘UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO’, INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FADI E FACAMP

Opinião por Marcelo de Azevedo Granato

Doutor em Direito pela USP e pela 'Università Degli Studi di Torino’, integrante do Instituto Norberto Bobbio, é professor da Fadi e Facamp

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