Opinião|Medicina de direita?


Qual seria a contribuição de uma ideologia política, qualquer que seja, para um órgão responsável pela normatização e fiscalização da prática médica?

Por Marcelo de Azevedo Granato

A medicina não se confunde com a política, nem é um acessório ou utensílio dela. Daí a necessária separação entre o conhecimento produzido e aplicado pelas ciências médicas e as convicções resultantes de opções ideológicas dos profissionais de medicina.

Ideologias são “mapas mentais”, pois oferecem às pessoas uma visão do mundo como ele é e como ele deveria ser, assim orientando-as em seus julgamentos e ações. Ideologias políticas têm produzido discussões inflamadas no País, contribuindo para a desconfiança institucional e a desagregação social, como provam os tantos “comunistas”, “fascistas”, “genocidas” e “globalistas” que inundam as redes sociais.

E não só as redes. Como noticiou este jornal (7/8/2024), na recente eleição para o Conselho Federal de Medicina (CFM), médicos do litoral de São Paulo, “em vez de discussão programática das chapas inscritas (...) têm apelado para a identificação partidária dos candidatos”. Um desses médicos comemorou, em grupo de WhatsApp, “a ideia de ir armado ao plantão de trabalho caso a chapa 02 seja eleita. Outro diz que a chapa vencedora tem de ser ‘de direita, armamentista e contra cubanos’”.

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A referida chapa 02, afinal vencedora na eleição do representante paulista no CFM, autointitulava-se “a única chapa de direita de verdade para o CFM 2024″. Num post de campanha da chapa, ao lado do médico-candidato, o infectologista Francisco Cardoso, aparecem o empresário Luciano Hang e o deputado Nikolas Ferreira, conhecidos apoiadores do ex-presidente Bolsonaro.

Cardoso também se notabilizou por suas declarações em defesa da cloroquina durante a pandemia de covid-19. Em 8/8/2024, este jornal noticiou que, em sessão da CPI da Covid, o infectologista defendeu o “tratamento precoce” (embora afirme que o termo não é apropriado) e declarou que sua equipe havia atendido mais de 4 mil casos, com “pouquíssimos desfechos fatais”. Até o momento, diz a reportagem, esses dados não foram publicados em revista científica revisada por pares.

Na mesma reportagem, Cardoso ratifica ao jornal sua posição de que “os imunizantes para covid-19, a despeito da imensa propaganda a seu favor, não possuem estudos definitivos favoráveis sobre sua eficácia”. Registre-se, porém, que a literatura científica sobre o assunto vai em sentido oposto e, como notou Reinaldo Lopes na Folha de S.Paulo (10/8/2024), “se ele e colegas de opinião semelhante foram capazes de reunir dados confiáveis que demonstrem o contrário, por que eles ainda não foram publicados em periódicos científicos com revisão por pares?”.

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Ao celebrar sua eleição ao CFM, Cardoso escreveu em seu Instagram que é hora de “unir a classe e combater o sectarismo que alguns ditos progressistas promovem”. Sua frase seguinte, porém, foi: “Chega de partidarismo na medicina!”. Os fatos enumerados acima sugerem que o representante paulista no CFM talvez conheça mais a medicina do que a si próprio.

Já o representante do Rio de Janeiro no CFM é o ginecologista-obstetra Raphael Câmara. Ele foi secretário da Saúde Primária do Ministério da Saúde durante o governo Bolsonaro e, em entrevista à Folha de S.Paulo após sua eleição (9/8/2024), disse que “os conselheiros de esquerda serão ‘engolidos’ pela direita”.

Câmara já era conselheiro do CFM, órgão que, no tema da autonomia médica, também deu o que falar. À época da covid, o já citado Francisco Cardoso disse no Senado que, “se o remédio funciona, se ele deve ser aplicado ou não de acordo com o caso clínico, dentro da autonomia médica, compete aos médicos”. Ocorre que essa defesa da autonomia médica, para prescrição off label de cloroquina para a covid, não se fez presente no caso do canabidiol.

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Obra da Resolução CFM 2324/22, que buscou limitar a autonomia dos médicos para receitá-lo off label. O canabidiol é um dos compostos presentes na maconha e vem sendo testado, debatido e utilizado no tratamento de muitas condições médicas (Parkinson, Alzheimer, etc.). A invocação da maconha pode desconfortar alguns médicos, mas isso não é suficiente para restringir usos efetiva ou potencialmente bem-sucedidos, e ainda punir o médico. A resolução foi suspensa pelo próprio CFM dias após editada.

É importante deixar claro que o problema não é Cardoso e Câmara serem “de direita”, apoiadores de Bolsonaro ou religiosos (Câmara foi relator da resolução sobre assistolia fetal no caso de estupro, que baseou o “PL do Estuprador”). O problema é entender qual seria a contribuição de uma ideologia política, qualquer que seja, para um órgão responsável pela normatização e fiscalização da prática médica. É razoável, sim, temer que profissionais com influência e uma visão de mundo acentuada viabilizem não só debates, mas tentativas de condicionar ou suprimir comportamentos, atendimentos, pesquisas e experimentações médicas.

Quem ganha com isso? Não será o paciente, nem o conhecimento científico. Este tem um caráter histórico, resultante de processos que se estendem pelo tempo, e um caráter estratégico, pois é fruto de um trabalho coletivo permeado de escolhas, decisões, tentativas. Não pode ficar sob controle de ideólogos ou dogmáticos.

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DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO, INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FADI E FACAMP

A medicina não se confunde com a política, nem é um acessório ou utensílio dela. Daí a necessária separação entre o conhecimento produzido e aplicado pelas ciências médicas e as convicções resultantes de opções ideológicas dos profissionais de medicina.

Ideologias são “mapas mentais”, pois oferecem às pessoas uma visão do mundo como ele é e como ele deveria ser, assim orientando-as em seus julgamentos e ações. Ideologias políticas têm produzido discussões inflamadas no País, contribuindo para a desconfiança institucional e a desagregação social, como provam os tantos “comunistas”, “fascistas”, “genocidas” e “globalistas” que inundam as redes sociais.

E não só as redes. Como noticiou este jornal (7/8/2024), na recente eleição para o Conselho Federal de Medicina (CFM), médicos do litoral de São Paulo, “em vez de discussão programática das chapas inscritas (...) têm apelado para a identificação partidária dos candidatos”. Um desses médicos comemorou, em grupo de WhatsApp, “a ideia de ir armado ao plantão de trabalho caso a chapa 02 seja eleita. Outro diz que a chapa vencedora tem de ser ‘de direita, armamentista e contra cubanos’”.

A referida chapa 02, afinal vencedora na eleição do representante paulista no CFM, autointitulava-se “a única chapa de direita de verdade para o CFM 2024″. Num post de campanha da chapa, ao lado do médico-candidato, o infectologista Francisco Cardoso, aparecem o empresário Luciano Hang e o deputado Nikolas Ferreira, conhecidos apoiadores do ex-presidente Bolsonaro.

Cardoso também se notabilizou por suas declarações em defesa da cloroquina durante a pandemia de covid-19. Em 8/8/2024, este jornal noticiou que, em sessão da CPI da Covid, o infectologista defendeu o “tratamento precoce” (embora afirme que o termo não é apropriado) e declarou que sua equipe havia atendido mais de 4 mil casos, com “pouquíssimos desfechos fatais”. Até o momento, diz a reportagem, esses dados não foram publicados em revista científica revisada por pares.

Na mesma reportagem, Cardoso ratifica ao jornal sua posição de que “os imunizantes para covid-19, a despeito da imensa propaganda a seu favor, não possuem estudos definitivos favoráveis sobre sua eficácia”. Registre-se, porém, que a literatura científica sobre o assunto vai em sentido oposto e, como notou Reinaldo Lopes na Folha de S.Paulo (10/8/2024), “se ele e colegas de opinião semelhante foram capazes de reunir dados confiáveis que demonstrem o contrário, por que eles ainda não foram publicados em periódicos científicos com revisão por pares?”.

Ao celebrar sua eleição ao CFM, Cardoso escreveu em seu Instagram que é hora de “unir a classe e combater o sectarismo que alguns ditos progressistas promovem”. Sua frase seguinte, porém, foi: “Chega de partidarismo na medicina!”. Os fatos enumerados acima sugerem que o representante paulista no CFM talvez conheça mais a medicina do que a si próprio.

Já o representante do Rio de Janeiro no CFM é o ginecologista-obstetra Raphael Câmara. Ele foi secretário da Saúde Primária do Ministério da Saúde durante o governo Bolsonaro e, em entrevista à Folha de S.Paulo após sua eleição (9/8/2024), disse que “os conselheiros de esquerda serão ‘engolidos’ pela direita”.

Câmara já era conselheiro do CFM, órgão que, no tema da autonomia médica, também deu o que falar. À época da covid, o já citado Francisco Cardoso disse no Senado que, “se o remédio funciona, se ele deve ser aplicado ou não de acordo com o caso clínico, dentro da autonomia médica, compete aos médicos”. Ocorre que essa defesa da autonomia médica, para prescrição off label de cloroquina para a covid, não se fez presente no caso do canabidiol.

Obra da Resolução CFM 2324/22, que buscou limitar a autonomia dos médicos para receitá-lo off label. O canabidiol é um dos compostos presentes na maconha e vem sendo testado, debatido e utilizado no tratamento de muitas condições médicas (Parkinson, Alzheimer, etc.). A invocação da maconha pode desconfortar alguns médicos, mas isso não é suficiente para restringir usos efetiva ou potencialmente bem-sucedidos, e ainda punir o médico. A resolução foi suspensa pelo próprio CFM dias após editada.

É importante deixar claro que o problema não é Cardoso e Câmara serem “de direita”, apoiadores de Bolsonaro ou religiosos (Câmara foi relator da resolução sobre assistolia fetal no caso de estupro, que baseou o “PL do Estuprador”). O problema é entender qual seria a contribuição de uma ideologia política, qualquer que seja, para um órgão responsável pela normatização e fiscalização da prática médica. É razoável, sim, temer que profissionais com influência e uma visão de mundo acentuada viabilizem não só debates, mas tentativas de condicionar ou suprimir comportamentos, atendimentos, pesquisas e experimentações médicas.

Quem ganha com isso? Não será o paciente, nem o conhecimento científico. Este tem um caráter histórico, resultante de processos que se estendem pelo tempo, e um caráter estratégico, pois é fruto de um trabalho coletivo permeado de escolhas, decisões, tentativas. Não pode ficar sob controle de ideólogos ou dogmáticos.

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DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO, INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FADI E FACAMP

A medicina não se confunde com a política, nem é um acessório ou utensílio dela. Daí a necessária separação entre o conhecimento produzido e aplicado pelas ciências médicas e as convicções resultantes de opções ideológicas dos profissionais de medicina.

Ideologias são “mapas mentais”, pois oferecem às pessoas uma visão do mundo como ele é e como ele deveria ser, assim orientando-as em seus julgamentos e ações. Ideologias políticas têm produzido discussões inflamadas no País, contribuindo para a desconfiança institucional e a desagregação social, como provam os tantos “comunistas”, “fascistas”, “genocidas” e “globalistas” que inundam as redes sociais.

E não só as redes. Como noticiou este jornal (7/8/2024), na recente eleição para o Conselho Federal de Medicina (CFM), médicos do litoral de São Paulo, “em vez de discussão programática das chapas inscritas (...) têm apelado para a identificação partidária dos candidatos”. Um desses médicos comemorou, em grupo de WhatsApp, “a ideia de ir armado ao plantão de trabalho caso a chapa 02 seja eleita. Outro diz que a chapa vencedora tem de ser ‘de direita, armamentista e contra cubanos’”.

A referida chapa 02, afinal vencedora na eleição do representante paulista no CFM, autointitulava-se “a única chapa de direita de verdade para o CFM 2024″. Num post de campanha da chapa, ao lado do médico-candidato, o infectologista Francisco Cardoso, aparecem o empresário Luciano Hang e o deputado Nikolas Ferreira, conhecidos apoiadores do ex-presidente Bolsonaro.

Cardoso também se notabilizou por suas declarações em defesa da cloroquina durante a pandemia de covid-19. Em 8/8/2024, este jornal noticiou que, em sessão da CPI da Covid, o infectologista defendeu o “tratamento precoce” (embora afirme que o termo não é apropriado) e declarou que sua equipe havia atendido mais de 4 mil casos, com “pouquíssimos desfechos fatais”. Até o momento, diz a reportagem, esses dados não foram publicados em revista científica revisada por pares.

Na mesma reportagem, Cardoso ratifica ao jornal sua posição de que “os imunizantes para covid-19, a despeito da imensa propaganda a seu favor, não possuem estudos definitivos favoráveis sobre sua eficácia”. Registre-se, porém, que a literatura científica sobre o assunto vai em sentido oposto e, como notou Reinaldo Lopes na Folha de S.Paulo (10/8/2024), “se ele e colegas de opinião semelhante foram capazes de reunir dados confiáveis que demonstrem o contrário, por que eles ainda não foram publicados em periódicos científicos com revisão por pares?”.

Ao celebrar sua eleição ao CFM, Cardoso escreveu em seu Instagram que é hora de “unir a classe e combater o sectarismo que alguns ditos progressistas promovem”. Sua frase seguinte, porém, foi: “Chega de partidarismo na medicina!”. Os fatos enumerados acima sugerem que o representante paulista no CFM talvez conheça mais a medicina do que a si próprio.

Já o representante do Rio de Janeiro no CFM é o ginecologista-obstetra Raphael Câmara. Ele foi secretário da Saúde Primária do Ministério da Saúde durante o governo Bolsonaro e, em entrevista à Folha de S.Paulo após sua eleição (9/8/2024), disse que “os conselheiros de esquerda serão ‘engolidos’ pela direita”.

Câmara já era conselheiro do CFM, órgão que, no tema da autonomia médica, também deu o que falar. À época da covid, o já citado Francisco Cardoso disse no Senado que, “se o remédio funciona, se ele deve ser aplicado ou não de acordo com o caso clínico, dentro da autonomia médica, compete aos médicos”. Ocorre que essa defesa da autonomia médica, para prescrição off label de cloroquina para a covid, não se fez presente no caso do canabidiol.

Obra da Resolução CFM 2324/22, que buscou limitar a autonomia dos médicos para receitá-lo off label. O canabidiol é um dos compostos presentes na maconha e vem sendo testado, debatido e utilizado no tratamento de muitas condições médicas (Parkinson, Alzheimer, etc.). A invocação da maconha pode desconfortar alguns médicos, mas isso não é suficiente para restringir usos efetiva ou potencialmente bem-sucedidos, e ainda punir o médico. A resolução foi suspensa pelo próprio CFM dias após editada.

É importante deixar claro que o problema não é Cardoso e Câmara serem “de direita”, apoiadores de Bolsonaro ou religiosos (Câmara foi relator da resolução sobre assistolia fetal no caso de estupro, que baseou o “PL do Estuprador”). O problema é entender qual seria a contribuição de uma ideologia política, qualquer que seja, para um órgão responsável pela normatização e fiscalização da prática médica. É razoável, sim, temer que profissionais com influência e uma visão de mundo acentuada viabilizem não só debates, mas tentativas de condicionar ou suprimir comportamentos, atendimentos, pesquisas e experimentações médicas.

Quem ganha com isso? Não será o paciente, nem o conhecimento científico. Este tem um caráter histórico, resultante de processos que se estendem pelo tempo, e um caráter estratégico, pois é fruto de um trabalho coletivo permeado de escolhas, decisões, tentativas. Não pode ficar sob controle de ideólogos ou dogmáticos.

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DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO, INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FADI E FACAMP

A medicina não se confunde com a política, nem é um acessório ou utensílio dela. Daí a necessária separação entre o conhecimento produzido e aplicado pelas ciências médicas e as convicções resultantes de opções ideológicas dos profissionais de medicina.

Ideologias são “mapas mentais”, pois oferecem às pessoas uma visão do mundo como ele é e como ele deveria ser, assim orientando-as em seus julgamentos e ações. Ideologias políticas têm produzido discussões inflamadas no País, contribuindo para a desconfiança institucional e a desagregação social, como provam os tantos “comunistas”, “fascistas”, “genocidas” e “globalistas” que inundam as redes sociais.

E não só as redes. Como noticiou este jornal (7/8/2024), na recente eleição para o Conselho Federal de Medicina (CFM), médicos do litoral de São Paulo, “em vez de discussão programática das chapas inscritas (...) têm apelado para a identificação partidária dos candidatos”. Um desses médicos comemorou, em grupo de WhatsApp, “a ideia de ir armado ao plantão de trabalho caso a chapa 02 seja eleita. Outro diz que a chapa vencedora tem de ser ‘de direita, armamentista e contra cubanos’”.

A referida chapa 02, afinal vencedora na eleição do representante paulista no CFM, autointitulava-se “a única chapa de direita de verdade para o CFM 2024″. Num post de campanha da chapa, ao lado do médico-candidato, o infectologista Francisco Cardoso, aparecem o empresário Luciano Hang e o deputado Nikolas Ferreira, conhecidos apoiadores do ex-presidente Bolsonaro.

Cardoso também se notabilizou por suas declarações em defesa da cloroquina durante a pandemia de covid-19. Em 8/8/2024, este jornal noticiou que, em sessão da CPI da Covid, o infectologista defendeu o “tratamento precoce” (embora afirme que o termo não é apropriado) e declarou que sua equipe havia atendido mais de 4 mil casos, com “pouquíssimos desfechos fatais”. Até o momento, diz a reportagem, esses dados não foram publicados em revista científica revisada por pares.

Na mesma reportagem, Cardoso ratifica ao jornal sua posição de que “os imunizantes para covid-19, a despeito da imensa propaganda a seu favor, não possuem estudos definitivos favoráveis sobre sua eficácia”. Registre-se, porém, que a literatura científica sobre o assunto vai em sentido oposto e, como notou Reinaldo Lopes na Folha de S.Paulo (10/8/2024), “se ele e colegas de opinião semelhante foram capazes de reunir dados confiáveis que demonstrem o contrário, por que eles ainda não foram publicados em periódicos científicos com revisão por pares?”.

Ao celebrar sua eleição ao CFM, Cardoso escreveu em seu Instagram que é hora de “unir a classe e combater o sectarismo que alguns ditos progressistas promovem”. Sua frase seguinte, porém, foi: “Chega de partidarismo na medicina!”. Os fatos enumerados acima sugerem que o representante paulista no CFM talvez conheça mais a medicina do que a si próprio.

Já o representante do Rio de Janeiro no CFM é o ginecologista-obstetra Raphael Câmara. Ele foi secretário da Saúde Primária do Ministério da Saúde durante o governo Bolsonaro e, em entrevista à Folha de S.Paulo após sua eleição (9/8/2024), disse que “os conselheiros de esquerda serão ‘engolidos’ pela direita”.

Câmara já era conselheiro do CFM, órgão que, no tema da autonomia médica, também deu o que falar. À época da covid, o já citado Francisco Cardoso disse no Senado que, “se o remédio funciona, se ele deve ser aplicado ou não de acordo com o caso clínico, dentro da autonomia médica, compete aos médicos”. Ocorre que essa defesa da autonomia médica, para prescrição off label de cloroquina para a covid, não se fez presente no caso do canabidiol.

Obra da Resolução CFM 2324/22, que buscou limitar a autonomia dos médicos para receitá-lo off label. O canabidiol é um dos compostos presentes na maconha e vem sendo testado, debatido e utilizado no tratamento de muitas condições médicas (Parkinson, Alzheimer, etc.). A invocação da maconha pode desconfortar alguns médicos, mas isso não é suficiente para restringir usos efetiva ou potencialmente bem-sucedidos, e ainda punir o médico. A resolução foi suspensa pelo próprio CFM dias após editada.

É importante deixar claro que o problema não é Cardoso e Câmara serem “de direita”, apoiadores de Bolsonaro ou religiosos (Câmara foi relator da resolução sobre assistolia fetal no caso de estupro, que baseou o “PL do Estuprador”). O problema é entender qual seria a contribuição de uma ideologia política, qualquer que seja, para um órgão responsável pela normatização e fiscalização da prática médica. É razoável, sim, temer que profissionais com influência e uma visão de mundo acentuada viabilizem não só debates, mas tentativas de condicionar ou suprimir comportamentos, atendimentos, pesquisas e experimentações médicas.

Quem ganha com isso? Não será o paciente, nem o conhecimento científico. Este tem um caráter histórico, resultante de processos que se estendem pelo tempo, e um caráter estratégico, pois é fruto de um trabalho coletivo permeado de escolhas, decisões, tentativas. Não pode ficar sob controle de ideólogos ou dogmáticos.

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DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO, INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FADI E FACAMP

A medicina não se confunde com a política, nem é um acessório ou utensílio dela. Daí a necessária separação entre o conhecimento produzido e aplicado pelas ciências médicas e as convicções resultantes de opções ideológicas dos profissionais de medicina.

Ideologias são “mapas mentais”, pois oferecem às pessoas uma visão do mundo como ele é e como ele deveria ser, assim orientando-as em seus julgamentos e ações. Ideologias políticas têm produzido discussões inflamadas no País, contribuindo para a desconfiança institucional e a desagregação social, como provam os tantos “comunistas”, “fascistas”, “genocidas” e “globalistas” que inundam as redes sociais.

E não só as redes. Como noticiou este jornal (7/8/2024), na recente eleição para o Conselho Federal de Medicina (CFM), médicos do litoral de São Paulo, “em vez de discussão programática das chapas inscritas (...) têm apelado para a identificação partidária dos candidatos”. Um desses médicos comemorou, em grupo de WhatsApp, “a ideia de ir armado ao plantão de trabalho caso a chapa 02 seja eleita. Outro diz que a chapa vencedora tem de ser ‘de direita, armamentista e contra cubanos’”.

A referida chapa 02, afinal vencedora na eleição do representante paulista no CFM, autointitulava-se “a única chapa de direita de verdade para o CFM 2024″. Num post de campanha da chapa, ao lado do médico-candidato, o infectologista Francisco Cardoso, aparecem o empresário Luciano Hang e o deputado Nikolas Ferreira, conhecidos apoiadores do ex-presidente Bolsonaro.

Cardoso também se notabilizou por suas declarações em defesa da cloroquina durante a pandemia de covid-19. Em 8/8/2024, este jornal noticiou que, em sessão da CPI da Covid, o infectologista defendeu o “tratamento precoce” (embora afirme que o termo não é apropriado) e declarou que sua equipe havia atendido mais de 4 mil casos, com “pouquíssimos desfechos fatais”. Até o momento, diz a reportagem, esses dados não foram publicados em revista científica revisada por pares.

Na mesma reportagem, Cardoso ratifica ao jornal sua posição de que “os imunizantes para covid-19, a despeito da imensa propaganda a seu favor, não possuem estudos definitivos favoráveis sobre sua eficácia”. Registre-se, porém, que a literatura científica sobre o assunto vai em sentido oposto e, como notou Reinaldo Lopes na Folha de S.Paulo (10/8/2024), “se ele e colegas de opinião semelhante foram capazes de reunir dados confiáveis que demonstrem o contrário, por que eles ainda não foram publicados em periódicos científicos com revisão por pares?”.

Ao celebrar sua eleição ao CFM, Cardoso escreveu em seu Instagram que é hora de “unir a classe e combater o sectarismo que alguns ditos progressistas promovem”. Sua frase seguinte, porém, foi: “Chega de partidarismo na medicina!”. Os fatos enumerados acima sugerem que o representante paulista no CFM talvez conheça mais a medicina do que a si próprio.

Já o representante do Rio de Janeiro no CFM é o ginecologista-obstetra Raphael Câmara. Ele foi secretário da Saúde Primária do Ministério da Saúde durante o governo Bolsonaro e, em entrevista à Folha de S.Paulo após sua eleição (9/8/2024), disse que “os conselheiros de esquerda serão ‘engolidos’ pela direita”.

Câmara já era conselheiro do CFM, órgão que, no tema da autonomia médica, também deu o que falar. À época da covid, o já citado Francisco Cardoso disse no Senado que, “se o remédio funciona, se ele deve ser aplicado ou não de acordo com o caso clínico, dentro da autonomia médica, compete aos médicos”. Ocorre que essa defesa da autonomia médica, para prescrição off label de cloroquina para a covid, não se fez presente no caso do canabidiol.

Obra da Resolução CFM 2324/22, que buscou limitar a autonomia dos médicos para receitá-lo off label. O canabidiol é um dos compostos presentes na maconha e vem sendo testado, debatido e utilizado no tratamento de muitas condições médicas (Parkinson, Alzheimer, etc.). A invocação da maconha pode desconfortar alguns médicos, mas isso não é suficiente para restringir usos efetiva ou potencialmente bem-sucedidos, e ainda punir o médico. A resolução foi suspensa pelo próprio CFM dias após editada.

É importante deixar claro que o problema não é Cardoso e Câmara serem “de direita”, apoiadores de Bolsonaro ou religiosos (Câmara foi relator da resolução sobre assistolia fetal no caso de estupro, que baseou o “PL do Estuprador”). O problema é entender qual seria a contribuição de uma ideologia política, qualquer que seja, para um órgão responsável pela normatização e fiscalização da prática médica. É razoável, sim, temer que profissionais com influência e uma visão de mundo acentuada viabilizem não só debates, mas tentativas de condicionar ou suprimir comportamentos, atendimentos, pesquisas e experimentações médicas.

Quem ganha com isso? Não será o paciente, nem o conhecimento científico. Este tem um caráter histórico, resultante de processos que se estendem pelo tempo, e um caráter estratégico, pois é fruto de um trabalho coletivo permeado de escolhas, decisões, tentativas. Não pode ficar sob controle de ideólogos ou dogmáticos.

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DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO, INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FADI E FACAMP

Opinião por Marcelo de Azevedo Granato

Doutor em Direito pela USP e pela 'Università Degli Studi di Torino’, integrante do Instituto Norberto Bobbio, é professor da Fadi e Facamp.

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