Opinião|Moeda única (ou comum) do Mercosul. O que vem por aí?


A causa real para o surgimento desta proposta de moeda comum é a incapacidade da Argentina de gerar dólares, acumulando déficits contínuos em seu balanço de pagamentos

Por Eduardo Coutinho, Márcio Salvato e Reginaldo Nogueira

Já em seu primeiro mês de mandato, o governo Lula iniciou as tratativas para a criação de uma moeda única para o Mercosul, podendo incluir outros países da América Latina. A proposta surpreendeu, por parecer intempestiva e na contramão de todas as evidências e da teoria sobre o assunto (áreas monetárias ótimas).

O argumento contrário à ideia é simples: não há as condições necessárias para iniciar um plano de moeda única similar ao observado na região do euro. Contudo, após o encontro realizado entre os presidentes Lula e Fernández (da Argentina), a proposta tornou-se mais evidente e, inclusive, já foram abertas as tratativas para avaliar a viabilização da tal moeda comum. Entretanto, foi feito um grande esforço para mostrar que o termo havia mudado. Não seria mais uma discussão de moeda única que substituiria as moedas nacionais (peso e real), mas sim uma moeda contábil de referência para intermediações de comércio (de bens e serviços) e movimentação financeira entre os membros do acordo, em substituição ao dólar.

Os detalhes da proposta, prazos para implementação e outras informações ainda não foram divulgados, mas cabe aqui uma análise mais detalhada sobre os argumentos evocados para justificar a ideia: facilitação da integração regional, eliminar a dependência de reservas internacionais (dólar) para as transações internacionais e o crescimento do comércio entre os membros. Os argumentos convencem rapidamente o leitor, mas carecem de uma maior contextualização e análise de viabilidade. Para tal, vamos antes dar um passo atrás e entender a real motivação para esta ideia de moeda comum.

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Os países que têm sua moeda própria possuem uma instituição que cuida da regulação e da circulação da moeda em seu território. Necessariamente, se há uma transação comercial/financeira entre residentes e não residentes, os bancos centrais usam um ativo de aceitação internacional, o dólar, para fazer a conversão entre as moedas. Os países podem acumular reservas internacionais quando são superavitários em suas transações comerciais ou quando atraem capitais para seu mercado financeiro. Essas reservas são usadas em operações de saída de dólares (importações de bens/serviços ou saída de capitais). É fácil de imaginar o problema quando não há reservas em dólares suficientes para suprir seu mercado local com importações. Vejam que o Brasil possui um volume de reservas considerado alto. Mas essa não é a realidade da maioria dos países da América Latina, incluindo a Argentina, que passa por uma grande crise de escassez de dólares para suas transações internacionais.

Algo similar já foi utilizado pelo Brasil: o Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCR). Trata-se de um acordo multilateral entre os bancos centrais dos membros da Associação Latino-americana de Integração (Aladi) – Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, México, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai, Venezuela e República Dominicana – (exceto Cuba), que ainda contava com a participação do Brasil. O convênio viabilizava a redução da transferência de dólares entre os países signatários. O propósito do acordo era dinamizar o comércio entre países com dificuldades em manter níveis de reservas internacionais.

Mas como isso é possível sem uma moeda comum? Vejam que, ao efetuar uma exportação, o exportador recebia em moeda local de um banco em seu país, que transferia esse crédito ao seu banco central. Este, por seu turno, passava a ter um crédito no banco central do país importador em dólares. Esse crédito entre os bancos centrais era compensado em abril, agosto e dezembro, com a transferência dos dólares equivalentes do banco central devedor ao credor. Caso um deles não efetuasse o pagamento, era acionado o Programa Automático de Pagamento (PAP), que estabelecia um parcelamento do valor devido em quatro prestações mensais. Ou seja, o convênio ainda viabilizava o financiamento de débitos internacionais de um país. Basicamente, é um sistema de compensação internacional, que supria a falta de reservas internacionais momentaneamente.

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Então, se o sistema já existe, para que uma proposta de moeda comum entre Brasil e Argentina? A resposta é simples: o Brasil deixou de ser signatário do acordo do CCR em 2019, eliminando as compensações para a Argentina. Embora o comércio do Brasil com o Mercosul represente apenas 8% do tamanho de nossas transações com o exterior, o inverso não é verdade: o comércio com o Brasil tem uma grande representação no comércio da Argentina.

Ora, a proposta de moeda comum é um resgate das compensações do CCR, pois elimina-se a necessidade de transferência de dólares para a liquidação de operações comerciais e financeiras entre os países do bloco. Contudo, ainda há várias perguntas em aberto. Veja, por que não apenas tornar o Brasil signatário novamente do acordo do CCR? Se o mecanismo já existe, bastava reativá-lo.

De acordo com o ministro Fernando Haddad, a nova moeda comum seria para incrementar o comércio entre os países, ressaltando que isso deve facilitar a venda de manufaturados brasileiros para a Argentina, que vem caindo ao longo do tempo. Ao analisarmos os dados de comércio exterior entre o Brasil e os demais países do Mercosul, é possível observar que em média 10% das exportações brasileiras foram destinadas a eles no período entre 1989 e 2022. O ápice foi alcançado em 1998, com 17,4%, chegando a 6,5% em 2022.

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A existência do CCR não parece ter produzido o dinamismo evocado pelo ministro na corrente de comércio Brasil-Argentina, mesmo porque a redução de comércio recente é muito mais explicada pelo baixo desempenho de crescimento da Argentina na última década. Não podemos esquecer que a decisão de exportar/importar mercadorias é do indivíduo/empresas, e o que importa são o preço e a capacidade de financiamento. Neste caso, não seria o sistema de moeda comum que dinamizaria a corrente de comércio, porque o próprio CCR poderia fazer isso. Talvez o mais importante seja a discussão de fontes de crédito para importadores, que pode ser em moeda local ou em dólares.

Finalizamos apontando que a causa real para o surgimento desta proposta de moeda comum é a incapacidade da Argentina de gerar dólares, acumulando déficits contínuos em seu balanço de pagamentos. Soma-se a isso a própria tratativa da Argentina com o Fundo Monetário Internacional (FMI) no pagamento de compromissos da sua dívida, o que compromete os dólares disponíveis. Uma moeda comum permitiria à Argentina usá-la para suas transações com o Brasil, com a menor necessidade de geração de dólares.

Deve ficar claro que a proposta em tela tem um grande beneficiário: a Argentina. Sem mais detalhes da proposta, ainda não é possível discutir o mecanismo de conversão, o papel dos bancos centrais no acordo e o custo do risco de crédito, mas é fácil de antecipar que não se percebem claramente ganhos para o Brasil.

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*

SÃO, RESPECTIVAMENTE, DOUTOR EM ADMINISTRAÇÃO E GERENTE ACADÊMICO DO IBMEC-BH, DOUTOR EM ECONOMIA E GERENTE-GERAL DO IBMEC-BH E DOUTOR EM ECONOMIA E DIRETOR-GERAL DO IBMEC

Já em seu primeiro mês de mandato, o governo Lula iniciou as tratativas para a criação de uma moeda única para o Mercosul, podendo incluir outros países da América Latina. A proposta surpreendeu, por parecer intempestiva e na contramão de todas as evidências e da teoria sobre o assunto (áreas monetárias ótimas).

O argumento contrário à ideia é simples: não há as condições necessárias para iniciar um plano de moeda única similar ao observado na região do euro. Contudo, após o encontro realizado entre os presidentes Lula e Fernández (da Argentina), a proposta tornou-se mais evidente e, inclusive, já foram abertas as tratativas para avaliar a viabilização da tal moeda comum. Entretanto, foi feito um grande esforço para mostrar que o termo havia mudado. Não seria mais uma discussão de moeda única que substituiria as moedas nacionais (peso e real), mas sim uma moeda contábil de referência para intermediações de comércio (de bens e serviços) e movimentação financeira entre os membros do acordo, em substituição ao dólar.

Os detalhes da proposta, prazos para implementação e outras informações ainda não foram divulgados, mas cabe aqui uma análise mais detalhada sobre os argumentos evocados para justificar a ideia: facilitação da integração regional, eliminar a dependência de reservas internacionais (dólar) para as transações internacionais e o crescimento do comércio entre os membros. Os argumentos convencem rapidamente o leitor, mas carecem de uma maior contextualização e análise de viabilidade. Para tal, vamos antes dar um passo atrás e entender a real motivação para esta ideia de moeda comum.

Os países que têm sua moeda própria possuem uma instituição que cuida da regulação e da circulação da moeda em seu território. Necessariamente, se há uma transação comercial/financeira entre residentes e não residentes, os bancos centrais usam um ativo de aceitação internacional, o dólar, para fazer a conversão entre as moedas. Os países podem acumular reservas internacionais quando são superavitários em suas transações comerciais ou quando atraem capitais para seu mercado financeiro. Essas reservas são usadas em operações de saída de dólares (importações de bens/serviços ou saída de capitais). É fácil de imaginar o problema quando não há reservas em dólares suficientes para suprir seu mercado local com importações. Vejam que o Brasil possui um volume de reservas considerado alto. Mas essa não é a realidade da maioria dos países da América Latina, incluindo a Argentina, que passa por uma grande crise de escassez de dólares para suas transações internacionais.

Algo similar já foi utilizado pelo Brasil: o Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCR). Trata-se de um acordo multilateral entre os bancos centrais dos membros da Associação Latino-americana de Integração (Aladi) – Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, México, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai, Venezuela e República Dominicana – (exceto Cuba), que ainda contava com a participação do Brasil. O convênio viabilizava a redução da transferência de dólares entre os países signatários. O propósito do acordo era dinamizar o comércio entre países com dificuldades em manter níveis de reservas internacionais.

Mas como isso é possível sem uma moeda comum? Vejam que, ao efetuar uma exportação, o exportador recebia em moeda local de um banco em seu país, que transferia esse crédito ao seu banco central. Este, por seu turno, passava a ter um crédito no banco central do país importador em dólares. Esse crédito entre os bancos centrais era compensado em abril, agosto e dezembro, com a transferência dos dólares equivalentes do banco central devedor ao credor. Caso um deles não efetuasse o pagamento, era acionado o Programa Automático de Pagamento (PAP), que estabelecia um parcelamento do valor devido em quatro prestações mensais. Ou seja, o convênio ainda viabilizava o financiamento de débitos internacionais de um país. Basicamente, é um sistema de compensação internacional, que supria a falta de reservas internacionais momentaneamente.

Então, se o sistema já existe, para que uma proposta de moeda comum entre Brasil e Argentina? A resposta é simples: o Brasil deixou de ser signatário do acordo do CCR em 2019, eliminando as compensações para a Argentina. Embora o comércio do Brasil com o Mercosul represente apenas 8% do tamanho de nossas transações com o exterior, o inverso não é verdade: o comércio com o Brasil tem uma grande representação no comércio da Argentina.

Ora, a proposta de moeda comum é um resgate das compensações do CCR, pois elimina-se a necessidade de transferência de dólares para a liquidação de operações comerciais e financeiras entre os países do bloco. Contudo, ainda há várias perguntas em aberto. Veja, por que não apenas tornar o Brasil signatário novamente do acordo do CCR? Se o mecanismo já existe, bastava reativá-lo.

De acordo com o ministro Fernando Haddad, a nova moeda comum seria para incrementar o comércio entre os países, ressaltando que isso deve facilitar a venda de manufaturados brasileiros para a Argentina, que vem caindo ao longo do tempo. Ao analisarmos os dados de comércio exterior entre o Brasil e os demais países do Mercosul, é possível observar que em média 10% das exportações brasileiras foram destinadas a eles no período entre 1989 e 2022. O ápice foi alcançado em 1998, com 17,4%, chegando a 6,5% em 2022.

A existência do CCR não parece ter produzido o dinamismo evocado pelo ministro na corrente de comércio Brasil-Argentina, mesmo porque a redução de comércio recente é muito mais explicada pelo baixo desempenho de crescimento da Argentina na última década. Não podemos esquecer que a decisão de exportar/importar mercadorias é do indivíduo/empresas, e o que importa são o preço e a capacidade de financiamento. Neste caso, não seria o sistema de moeda comum que dinamizaria a corrente de comércio, porque o próprio CCR poderia fazer isso. Talvez o mais importante seja a discussão de fontes de crédito para importadores, que pode ser em moeda local ou em dólares.

Finalizamos apontando que a causa real para o surgimento desta proposta de moeda comum é a incapacidade da Argentina de gerar dólares, acumulando déficits contínuos em seu balanço de pagamentos. Soma-se a isso a própria tratativa da Argentina com o Fundo Monetário Internacional (FMI) no pagamento de compromissos da sua dívida, o que compromete os dólares disponíveis. Uma moeda comum permitiria à Argentina usá-la para suas transações com o Brasil, com a menor necessidade de geração de dólares.

Deve ficar claro que a proposta em tela tem um grande beneficiário: a Argentina. Sem mais detalhes da proposta, ainda não é possível discutir o mecanismo de conversão, o papel dos bancos centrais no acordo e o custo do risco de crédito, mas é fácil de antecipar que não se percebem claramente ganhos para o Brasil.

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Já em seu primeiro mês de mandato, o governo Lula iniciou as tratativas para a criação de uma moeda única para o Mercosul, podendo incluir outros países da América Latina. A proposta surpreendeu, por parecer intempestiva e na contramão de todas as evidências e da teoria sobre o assunto (áreas monetárias ótimas).

O argumento contrário à ideia é simples: não há as condições necessárias para iniciar um plano de moeda única similar ao observado na região do euro. Contudo, após o encontro realizado entre os presidentes Lula e Fernández (da Argentina), a proposta tornou-se mais evidente e, inclusive, já foram abertas as tratativas para avaliar a viabilização da tal moeda comum. Entretanto, foi feito um grande esforço para mostrar que o termo havia mudado. Não seria mais uma discussão de moeda única que substituiria as moedas nacionais (peso e real), mas sim uma moeda contábil de referência para intermediações de comércio (de bens e serviços) e movimentação financeira entre os membros do acordo, em substituição ao dólar.

Os detalhes da proposta, prazos para implementação e outras informações ainda não foram divulgados, mas cabe aqui uma análise mais detalhada sobre os argumentos evocados para justificar a ideia: facilitação da integração regional, eliminar a dependência de reservas internacionais (dólar) para as transações internacionais e o crescimento do comércio entre os membros. Os argumentos convencem rapidamente o leitor, mas carecem de uma maior contextualização e análise de viabilidade. Para tal, vamos antes dar um passo atrás e entender a real motivação para esta ideia de moeda comum.

Os países que têm sua moeda própria possuem uma instituição que cuida da regulação e da circulação da moeda em seu território. Necessariamente, se há uma transação comercial/financeira entre residentes e não residentes, os bancos centrais usam um ativo de aceitação internacional, o dólar, para fazer a conversão entre as moedas. Os países podem acumular reservas internacionais quando são superavitários em suas transações comerciais ou quando atraem capitais para seu mercado financeiro. Essas reservas são usadas em operações de saída de dólares (importações de bens/serviços ou saída de capitais). É fácil de imaginar o problema quando não há reservas em dólares suficientes para suprir seu mercado local com importações. Vejam que o Brasil possui um volume de reservas considerado alto. Mas essa não é a realidade da maioria dos países da América Latina, incluindo a Argentina, que passa por uma grande crise de escassez de dólares para suas transações internacionais.

Algo similar já foi utilizado pelo Brasil: o Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCR). Trata-se de um acordo multilateral entre os bancos centrais dos membros da Associação Latino-americana de Integração (Aladi) – Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, México, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai, Venezuela e República Dominicana – (exceto Cuba), que ainda contava com a participação do Brasil. O convênio viabilizava a redução da transferência de dólares entre os países signatários. O propósito do acordo era dinamizar o comércio entre países com dificuldades em manter níveis de reservas internacionais.

Mas como isso é possível sem uma moeda comum? Vejam que, ao efetuar uma exportação, o exportador recebia em moeda local de um banco em seu país, que transferia esse crédito ao seu banco central. Este, por seu turno, passava a ter um crédito no banco central do país importador em dólares. Esse crédito entre os bancos centrais era compensado em abril, agosto e dezembro, com a transferência dos dólares equivalentes do banco central devedor ao credor. Caso um deles não efetuasse o pagamento, era acionado o Programa Automático de Pagamento (PAP), que estabelecia um parcelamento do valor devido em quatro prestações mensais. Ou seja, o convênio ainda viabilizava o financiamento de débitos internacionais de um país. Basicamente, é um sistema de compensação internacional, que supria a falta de reservas internacionais momentaneamente.

Então, se o sistema já existe, para que uma proposta de moeda comum entre Brasil e Argentina? A resposta é simples: o Brasil deixou de ser signatário do acordo do CCR em 2019, eliminando as compensações para a Argentina. Embora o comércio do Brasil com o Mercosul represente apenas 8% do tamanho de nossas transações com o exterior, o inverso não é verdade: o comércio com o Brasil tem uma grande representação no comércio da Argentina.

Ora, a proposta de moeda comum é um resgate das compensações do CCR, pois elimina-se a necessidade de transferência de dólares para a liquidação de operações comerciais e financeiras entre os países do bloco. Contudo, ainda há várias perguntas em aberto. Veja, por que não apenas tornar o Brasil signatário novamente do acordo do CCR? Se o mecanismo já existe, bastava reativá-lo.

De acordo com o ministro Fernando Haddad, a nova moeda comum seria para incrementar o comércio entre os países, ressaltando que isso deve facilitar a venda de manufaturados brasileiros para a Argentina, que vem caindo ao longo do tempo. Ao analisarmos os dados de comércio exterior entre o Brasil e os demais países do Mercosul, é possível observar que em média 10% das exportações brasileiras foram destinadas a eles no período entre 1989 e 2022. O ápice foi alcançado em 1998, com 17,4%, chegando a 6,5% em 2022.

A existência do CCR não parece ter produzido o dinamismo evocado pelo ministro na corrente de comércio Brasil-Argentina, mesmo porque a redução de comércio recente é muito mais explicada pelo baixo desempenho de crescimento da Argentina na última década. Não podemos esquecer que a decisão de exportar/importar mercadorias é do indivíduo/empresas, e o que importa são o preço e a capacidade de financiamento. Neste caso, não seria o sistema de moeda comum que dinamizaria a corrente de comércio, porque o próprio CCR poderia fazer isso. Talvez o mais importante seja a discussão de fontes de crédito para importadores, que pode ser em moeda local ou em dólares.

Finalizamos apontando que a causa real para o surgimento desta proposta de moeda comum é a incapacidade da Argentina de gerar dólares, acumulando déficits contínuos em seu balanço de pagamentos. Soma-se a isso a própria tratativa da Argentina com o Fundo Monetário Internacional (FMI) no pagamento de compromissos da sua dívida, o que compromete os dólares disponíveis. Uma moeda comum permitiria à Argentina usá-la para suas transações com o Brasil, com a menor necessidade de geração de dólares.

Deve ficar claro que a proposta em tela tem um grande beneficiário: a Argentina. Sem mais detalhes da proposta, ainda não é possível discutir o mecanismo de conversão, o papel dos bancos centrais no acordo e o custo do risco de crédito, mas é fácil de antecipar que não se percebem claramente ganhos para o Brasil.

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Já em seu primeiro mês de mandato, o governo Lula iniciou as tratativas para a criação de uma moeda única para o Mercosul, podendo incluir outros países da América Latina. A proposta surpreendeu, por parecer intempestiva e na contramão de todas as evidências e da teoria sobre o assunto (áreas monetárias ótimas).

O argumento contrário à ideia é simples: não há as condições necessárias para iniciar um plano de moeda única similar ao observado na região do euro. Contudo, após o encontro realizado entre os presidentes Lula e Fernández (da Argentina), a proposta tornou-se mais evidente e, inclusive, já foram abertas as tratativas para avaliar a viabilização da tal moeda comum. Entretanto, foi feito um grande esforço para mostrar que o termo havia mudado. Não seria mais uma discussão de moeda única que substituiria as moedas nacionais (peso e real), mas sim uma moeda contábil de referência para intermediações de comércio (de bens e serviços) e movimentação financeira entre os membros do acordo, em substituição ao dólar.

Os detalhes da proposta, prazos para implementação e outras informações ainda não foram divulgados, mas cabe aqui uma análise mais detalhada sobre os argumentos evocados para justificar a ideia: facilitação da integração regional, eliminar a dependência de reservas internacionais (dólar) para as transações internacionais e o crescimento do comércio entre os membros. Os argumentos convencem rapidamente o leitor, mas carecem de uma maior contextualização e análise de viabilidade. Para tal, vamos antes dar um passo atrás e entender a real motivação para esta ideia de moeda comum.

Os países que têm sua moeda própria possuem uma instituição que cuida da regulação e da circulação da moeda em seu território. Necessariamente, se há uma transação comercial/financeira entre residentes e não residentes, os bancos centrais usam um ativo de aceitação internacional, o dólar, para fazer a conversão entre as moedas. Os países podem acumular reservas internacionais quando são superavitários em suas transações comerciais ou quando atraem capitais para seu mercado financeiro. Essas reservas são usadas em operações de saída de dólares (importações de bens/serviços ou saída de capitais). É fácil de imaginar o problema quando não há reservas em dólares suficientes para suprir seu mercado local com importações. Vejam que o Brasil possui um volume de reservas considerado alto. Mas essa não é a realidade da maioria dos países da América Latina, incluindo a Argentina, que passa por uma grande crise de escassez de dólares para suas transações internacionais.

Algo similar já foi utilizado pelo Brasil: o Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCR). Trata-se de um acordo multilateral entre os bancos centrais dos membros da Associação Latino-americana de Integração (Aladi) – Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, México, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai, Venezuela e República Dominicana – (exceto Cuba), que ainda contava com a participação do Brasil. O convênio viabilizava a redução da transferência de dólares entre os países signatários. O propósito do acordo era dinamizar o comércio entre países com dificuldades em manter níveis de reservas internacionais.

Mas como isso é possível sem uma moeda comum? Vejam que, ao efetuar uma exportação, o exportador recebia em moeda local de um banco em seu país, que transferia esse crédito ao seu banco central. Este, por seu turno, passava a ter um crédito no banco central do país importador em dólares. Esse crédito entre os bancos centrais era compensado em abril, agosto e dezembro, com a transferência dos dólares equivalentes do banco central devedor ao credor. Caso um deles não efetuasse o pagamento, era acionado o Programa Automático de Pagamento (PAP), que estabelecia um parcelamento do valor devido em quatro prestações mensais. Ou seja, o convênio ainda viabilizava o financiamento de débitos internacionais de um país. Basicamente, é um sistema de compensação internacional, que supria a falta de reservas internacionais momentaneamente.

Então, se o sistema já existe, para que uma proposta de moeda comum entre Brasil e Argentina? A resposta é simples: o Brasil deixou de ser signatário do acordo do CCR em 2019, eliminando as compensações para a Argentina. Embora o comércio do Brasil com o Mercosul represente apenas 8% do tamanho de nossas transações com o exterior, o inverso não é verdade: o comércio com o Brasil tem uma grande representação no comércio da Argentina.

Ora, a proposta de moeda comum é um resgate das compensações do CCR, pois elimina-se a necessidade de transferência de dólares para a liquidação de operações comerciais e financeiras entre os países do bloco. Contudo, ainda há várias perguntas em aberto. Veja, por que não apenas tornar o Brasil signatário novamente do acordo do CCR? Se o mecanismo já existe, bastava reativá-lo.

De acordo com o ministro Fernando Haddad, a nova moeda comum seria para incrementar o comércio entre os países, ressaltando que isso deve facilitar a venda de manufaturados brasileiros para a Argentina, que vem caindo ao longo do tempo. Ao analisarmos os dados de comércio exterior entre o Brasil e os demais países do Mercosul, é possível observar que em média 10% das exportações brasileiras foram destinadas a eles no período entre 1989 e 2022. O ápice foi alcançado em 1998, com 17,4%, chegando a 6,5% em 2022.

A existência do CCR não parece ter produzido o dinamismo evocado pelo ministro na corrente de comércio Brasil-Argentina, mesmo porque a redução de comércio recente é muito mais explicada pelo baixo desempenho de crescimento da Argentina na última década. Não podemos esquecer que a decisão de exportar/importar mercadorias é do indivíduo/empresas, e o que importa são o preço e a capacidade de financiamento. Neste caso, não seria o sistema de moeda comum que dinamizaria a corrente de comércio, porque o próprio CCR poderia fazer isso. Talvez o mais importante seja a discussão de fontes de crédito para importadores, que pode ser em moeda local ou em dólares.

Finalizamos apontando que a causa real para o surgimento desta proposta de moeda comum é a incapacidade da Argentina de gerar dólares, acumulando déficits contínuos em seu balanço de pagamentos. Soma-se a isso a própria tratativa da Argentina com o Fundo Monetário Internacional (FMI) no pagamento de compromissos da sua dívida, o que compromete os dólares disponíveis. Uma moeda comum permitiria à Argentina usá-la para suas transações com o Brasil, com a menor necessidade de geração de dólares.

Deve ficar claro que a proposta em tela tem um grande beneficiário: a Argentina. Sem mais detalhes da proposta, ainda não é possível discutir o mecanismo de conversão, o papel dos bancos centrais no acordo e o custo do risco de crédito, mas é fácil de antecipar que não se percebem claramente ganhos para o Brasil.

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O argumento contrário à ideia é simples: não há as condições necessárias para iniciar um plano de moeda única similar ao observado na região do euro. Contudo, após o encontro realizado entre os presidentes Lula e Fernández (da Argentina), a proposta tornou-se mais evidente e, inclusive, já foram abertas as tratativas para avaliar a viabilização da tal moeda comum. Entretanto, foi feito um grande esforço para mostrar que o termo havia mudado. Não seria mais uma discussão de moeda única que substituiria as moedas nacionais (peso e real), mas sim uma moeda contábil de referência para intermediações de comércio (de bens e serviços) e movimentação financeira entre os membros do acordo, em substituição ao dólar.

Os detalhes da proposta, prazos para implementação e outras informações ainda não foram divulgados, mas cabe aqui uma análise mais detalhada sobre os argumentos evocados para justificar a ideia: facilitação da integração regional, eliminar a dependência de reservas internacionais (dólar) para as transações internacionais e o crescimento do comércio entre os membros. Os argumentos convencem rapidamente o leitor, mas carecem de uma maior contextualização e análise de viabilidade. Para tal, vamos antes dar um passo atrás e entender a real motivação para esta ideia de moeda comum.

Os países que têm sua moeda própria possuem uma instituição que cuida da regulação e da circulação da moeda em seu território. Necessariamente, se há uma transação comercial/financeira entre residentes e não residentes, os bancos centrais usam um ativo de aceitação internacional, o dólar, para fazer a conversão entre as moedas. Os países podem acumular reservas internacionais quando são superavitários em suas transações comerciais ou quando atraem capitais para seu mercado financeiro. Essas reservas são usadas em operações de saída de dólares (importações de bens/serviços ou saída de capitais). É fácil de imaginar o problema quando não há reservas em dólares suficientes para suprir seu mercado local com importações. Vejam que o Brasil possui um volume de reservas considerado alto. Mas essa não é a realidade da maioria dos países da América Latina, incluindo a Argentina, que passa por uma grande crise de escassez de dólares para suas transações internacionais.

Algo similar já foi utilizado pelo Brasil: o Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCR). Trata-se de um acordo multilateral entre os bancos centrais dos membros da Associação Latino-americana de Integração (Aladi) – Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, México, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai, Venezuela e República Dominicana – (exceto Cuba), que ainda contava com a participação do Brasil. O convênio viabilizava a redução da transferência de dólares entre os países signatários. O propósito do acordo era dinamizar o comércio entre países com dificuldades em manter níveis de reservas internacionais.

Mas como isso é possível sem uma moeda comum? Vejam que, ao efetuar uma exportação, o exportador recebia em moeda local de um banco em seu país, que transferia esse crédito ao seu banco central. Este, por seu turno, passava a ter um crédito no banco central do país importador em dólares. Esse crédito entre os bancos centrais era compensado em abril, agosto e dezembro, com a transferência dos dólares equivalentes do banco central devedor ao credor. Caso um deles não efetuasse o pagamento, era acionado o Programa Automático de Pagamento (PAP), que estabelecia um parcelamento do valor devido em quatro prestações mensais. Ou seja, o convênio ainda viabilizava o financiamento de débitos internacionais de um país. Basicamente, é um sistema de compensação internacional, que supria a falta de reservas internacionais momentaneamente.

Então, se o sistema já existe, para que uma proposta de moeda comum entre Brasil e Argentina? A resposta é simples: o Brasil deixou de ser signatário do acordo do CCR em 2019, eliminando as compensações para a Argentina. Embora o comércio do Brasil com o Mercosul represente apenas 8% do tamanho de nossas transações com o exterior, o inverso não é verdade: o comércio com o Brasil tem uma grande representação no comércio da Argentina.

Ora, a proposta de moeda comum é um resgate das compensações do CCR, pois elimina-se a necessidade de transferência de dólares para a liquidação de operações comerciais e financeiras entre os países do bloco. Contudo, ainda há várias perguntas em aberto. Veja, por que não apenas tornar o Brasil signatário novamente do acordo do CCR? Se o mecanismo já existe, bastava reativá-lo.

De acordo com o ministro Fernando Haddad, a nova moeda comum seria para incrementar o comércio entre os países, ressaltando que isso deve facilitar a venda de manufaturados brasileiros para a Argentina, que vem caindo ao longo do tempo. Ao analisarmos os dados de comércio exterior entre o Brasil e os demais países do Mercosul, é possível observar que em média 10% das exportações brasileiras foram destinadas a eles no período entre 1989 e 2022. O ápice foi alcançado em 1998, com 17,4%, chegando a 6,5% em 2022.

A existência do CCR não parece ter produzido o dinamismo evocado pelo ministro na corrente de comércio Brasil-Argentina, mesmo porque a redução de comércio recente é muito mais explicada pelo baixo desempenho de crescimento da Argentina na última década. Não podemos esquecer que a decisão de exportar/importar mercadorias é do indivíduo/empresas, e o que importa são o preço e a capacidade de financiamento. Neste caso, não seria o sistema de moeda comum que dinamizaria a corrente de comércio, porque o próprio CCR poderia fazer isso. Talvez o mais importante seja a discussão de fontes de crédito para importadores, que pode ser em moeda local ou em dólares.

Finalizamos apontando que a causa real para o surgimento desta proposta de moeda comum é a incapacidade da Argentina de gerar dólares, acumulando déficits contínuos em seu balanço de pagamentos. Soma-se a isso a própria tratativa da Argentina com o Fundo Monetário Internacional (FMI) no pagamento de compromissos da sua dívida, o que compromete os dólares disponíveis. Uma moeda comum permitiria à Argentina usá-la para suas transações com o Brasil, com a menor necessidade de geração de dólares.

Deve ficar claro que a proposta em tela tem um grande beneficiário: a Argentina. Sem mais detalhes da proposta, ainda não é possível discutir o mecanismo de conversão, o papel dos bancos centrais no acordo e o custo do risco de crédito, mas é fácil de antecipar que não se percebem claramente ganhos para o Brasil.

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