Opinião|‘Mors tua vita mea’


A ordem democrática não se inspira no citado princípio ‘a tua morte é a minha vida’, pelo qual a vitória supõe a destruição do inimigo.

Por Marcelo de Azevedo Granato

“A tua morte é a minha vida”, diz a expressão latina empregada em situações nas quais o dano sofrido por uma pessoa é uma vantagem para a outra. Ela pode ser lembrada nestes tempos em que a violência política, no Brasil, passa do perigoso campo da retórica para o irreversível campo da realização. Foi o que ocorreu na cidade de Foz do Iguaçu no mês de julho, quando Marcelo Arruda, filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), foi assassinado a tiros durante a sua festa de aniversário (que tinha o PT como tema) por Jorge Guaranho, que teria gritado “Lula ladrão, aqui é Bolsonaro, é mito!” antes de atirar.

A violência política no Brasil não é ocasional. Conforme a apuração feita pelo Estado de S. Paulo (16/7/2022), neste ano o Brasil já contabilizou 26 assassinatos por motivações políticas ou pelo exercício da atividade pública, um número que já é maior do que o registrado em quatro campanhas presidenciais desde a redemocratização. O monitoramento da violência política feito pelo jornal mostra também que, a partir do ano de 2018, homicídios por divergências partidárias e ideológicas tornaram-se mais frequentes.

Esse tipo de violência tem características e implicações particulares. Primeiro, ele é imprevisível: não há como saber quando um ataque desse tipo acontecerá (qual ação poderá motivá-lo, qual ação não poderá) nem sua intensidade. É uma fúria cega. A violência política espalha pela sociedade um medo vago, imponderável. Quem pretende resguardar-se dela encontra no silêncio a opção mais eficiente. E, então, a violência política atinge seu principal objetivo: paralisar-nos.

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A violência política, portanto, inibe a coexistência, o diálogo, e faz do agressor juiz da conduta e executor da pena da sua vítima.

A violência tem papel central na retórica bolsonarista, ora travestida em defesa da liberdade, ora em autodefesa. Mas violência e democracia não são compatíveis. “Para dar uma definição de democracia”, disse o filósofo e jurista Norberto Bobbio, “eu responderia muito simplesmente assim: ‘A democracia é aquele sistema de convivência em que as pessoas encontraram regras para resolver os conflitos sem recorrer à violência’”. A base da democracia é um pacto de não agressão firmado entre as forças políticas: “Enquanto ele dura, podemos dizer que vivemos em uma sociedade democrática” (“Le basi della democrazia”).

O próprio processo constituinte, se bem-sucedido, “é um grande ato de coordenação das forças sociais e políticas da nação”, diz o professor Oscar Vilhena Vieira. A aprovação de uma Constituição, “quando não conta com a adesão dessas forças, tem apenas miseráveis chances de sobreviver” (A batalha dos poderes).

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A história da Constituição federal de 1988 ilustra isso. De um lado, um pacto social que trouxe à Constituinte os mais diferentes atores e demandas (organizações da sociedade civil, sindicatos, corporações); de outro, um pacto político, pelo qual temas, interesses e procedimentos controversos foram costurados pelos constituintes em vista da aprovação da nova Constituição. São suas regras que, desde então, disciplinam uma variedade de conflitos dispensando o uso da força.

Assim é na democracia, um regime que supõe a alternância pacífica de governos. Nela, os conflitos são resolvidos “pela contagem de cabeças”, e não “batendo na cabeça dos que pensam diferente” (“Le basi della democrazia”). A não violência, para Bobbio, é um princípio fundamental da democracia, definida por ele como um “conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados” (O futuro da democracia). Essa definição, que Bobbio mesmo chama de “mínima”, nada mais é do que uma técnica de convivência destinada a resolver os conflitos sociais sem o recurso à violência.

Na democracia, a violência dá lugar à tolerância, à persuasão, ao compromisso. Nesse regime, deve-se parlamentar, ou seja, “conversar em busca de um acordo” (Houaiss). Sendo assim, o adversário deve ser respeitado; deve poder valer-se das mesmas regras de que se vale(u) o vencedor. Ele “não é mais um inimigo (que deve ser destruído), mas um opositor que amanhã poderá ocupar o nosso lugar” (O futuro da democracia).

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A ordem democrática não se inspira no citado princípio “a tua morte é a minha vida” (mors tua vita mea), pelo qual a vitória supõe a destruição do inimigo. A ordem democrática não é legitimada pela destruição, mas pelo consenso. Se ele é descartado, resta apenas a violência como forma de mudança, e “essa sempre foi a minha objeção aos grupos extremistas, que queriam abater o sistema democrático sem ter o consenso necessário para fazer isso” (Norberto Bobbio, Dal terrorismo al reformismo).

*

DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO, INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FADI E FACAMP

“A tua morte é a minha vida”, diz a expressão latina empregada em situações nas quais o dano sofrido por uma pessoa é uma vantagem para a outra. Ela pode ser lembrada nestes tempos em que a violência política, no Brasil, passa do perigoso campo da retórica para o irreversível campo da realização. Foi o que ocorreu na cidade de Foz do Iguaçu no mês de julho, quando Marcelo Arruda, filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), foi assassinado a tiros durante a sua festa de aniversário (que tinha o PT como tema) por Jorge Guaranho, que teria gritado “Lula ladrão, aqui é Bolsonaro, é mito!” antes de atirar.

A violência política no Brasil não é ocasional. Conforme a apuração feita pelo Estado de S. Paulo (16/7/2022), neste ano o Brasil já contabilizou 26 assassinatos por motivações políticas ou pelo exercício da atividade pública, um número que já é maior do que o registrado em quatro campanhas presidenciais desde a redemocratização. O monitoramento da violência política feito pelo jornal mostra também que, a partir do ano de 2018, homicídios por divergências partidárias e ideológicas tornaram-se mais frequentes.

Esse tipo de violência tem características e implicações particulares. Primeiro, ele é imprevisível: não há como saber quando um ataque desse tipo acontecerá (qual ação poderá motivá-lo, qual ação não poderá) nem sua intensidade. É uma fúria cega. A violência política espalha pela sociedade um medo vago, imponderável. Quem pretende resguardar-se dela encontra no silêncio a opção mais eficiente. E, então, a violência política atinge seu principal objetivo: paralisar-nos.

A violência política, portanto, inibe a coexistência, o diálogo, e faz do agressor juiz da conduta e executor da pena da sua vítima.

A violência tem papel central na retórica bolsonarista, ora travestida em defesa da liberdade, ora em autodefesa. Mas violência e democracia não são compatíveis. “Para dar uma definição de democracia”, disse o filósofo e jurista Norberto Bobbio, “eu responderia muito simplesmente assim: ‘A democracia é aquele sistema de convivência em que as pessoas encontraram regras para resolver os conflitos sem recorrer à violência’”. A base da democracia é um pacto de não agressão firmado entre as forças políticas: “Enquanto ele dura, podemos dizer que vivemos em uma sociedade democrática” (“Le basi della democrazia”).

O próprio processo constituinte, se bem-sucedido, “é um grande ato de coordenação das forças sociais e políticas da nação”, diz o professor Oscar Vilhena Vieira. A aprovação de uma Constituição, “quando não conta com a adesão dessas forças, tem apenas miseráveis chances de sobreviver” (A batalha dos poderes).

A história da Constituição federal de 1988 ilustra isso. De um lado, um pacto social que trouxe à Constituinte os mais diferentes atores e demandas (organizações da sociedade civil, sindicatos, corporações); de outro, um pacto político, pelo qual temas, interesses e procedimentos controversos foram costurados pelos constituintes em vista da aprovação da nova Constituição. São suas regras que, desde então, disciplinam uma variedade de conflitos dispensando o uso da força.

Assim é na democracia, um regime que supõe a alternância pacífica de governos. Nela, os conflitos são resolvidos “pela contagem de cabeças”, e não “batendo na cabeça dos que pensam diferente” (“Le basi della democrazia”). A não violência, para Bobbio, é um princípio fundamental da democracia, definida por ele como um “conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados” (O futuro da democracia). Essa definição, que Bobbio mesmo chama de “mínima”, nada mais é do que uma técnica de convivência destinada a resolver os conflitos sociais sem o recurso à violência.

Na democracia, a violência dá lugar à tolerância, à persuasão, ao compromisso. Nesse regime, deve-se parlamentar, ou seja, “conversar em busca de um acordo” (Houaiss). Sendo assim, o adversário deve ser respeitado; deve poder valer-se das mesmas regras de que se vale(u) o vencedor. Ele “não é mais um inimigo (que deve ser destruído), mas um opositor que amanhã poderá ocupar o nosso lugar” (O futuro da democracia).

A ordem democrática não se inspira no citado princípio “a tua morte é a minha vida” (mors tua vita mea), pelo qual a vitória supõe a destruição do inimigo. A ordem democrática não é legitimada pela destruição, mas pelo consenso. Se ele é descartado, resta apenas a violência como forma de mudança, e “essa sempre foi a minha objeção aos grupos extremistas, que queriam abater o sistema democrático sem ter o consenso necessário para fazer isso” (Norberto Bobbio, Dal terrorismo al reformismo).

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DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO, INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FADI E FACAMP

“A tua morte é a minha vida”, diz a expressão latina empregada em situações nas quais o dano sofrido por uma pessoa é uma vantagem para a outra. Ela pode ser lembrada nestes tempos em que a violência política, no Brasil, passa do perigoso campo da retórica para o irreversível campo da realização. Foi o que ocorreu na cidade de Foz do Iguaçu no mês de julho, quando Marcelo Arruda, filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), foi assassinado a tiros durante a sua festa de aniversário (que tinha o PT como tema) por Jorge Guaranho, que teria gritado “Lula ladrão, aqui é Bolsonaro, é mito!” antes de atirar.

A violência política no Brasil não é ocasional. Conforme a apuração feita pelo Estado de S. Paulo (16/7/2022), neste ano o Brasil já contabilizou 26 assassinatos por motivações políticas ou pelo exercício da atividade pública, um número que já é maior do que o registrado em quatro campanhas presidenciais desde a redemocratização. O monitoramento da violência política feito pelo jornal mostra também que, a partir do ano de 2018, homicídios por divergências partidárias e ideológicas tornaram-se mais frequentes.

Esse tipo de violência tem características e implicações particulares. Primeiro, ele é imprevisível: não há como saber quando um ataque desse tipo acontecerá (qual ação poderá motivá-lo, qual ação não poderá) nem sua intensidade. É uma fúria cega. A violência política espalha pela sociedade um medo vago, imponderável. Quem pretende resguardar-se dela encontra no silêncio a opção mais eficiente. E, então, a violência política atinge seu principal objetivo: paralisar-nos.

A violência política, portanto, inibe a coexistência, o diálogo, e faz do agressor juiz da conduta e executor da pena da sua vítima.

A violência tem papel central na retórica bolsonarista, ora travestida em defesa da liberdade, ora em autodefesa. Mas violência e democracia não são compatíveis. “Para dar uma definição de democracia”, disse o filósofo e jurista Norberto Bobbio, “eu responderia muito simplesmente assim: ‘A democracia é aquele sistema de convivência em que as pessoas encontraram regras para resolver os conflitos sem recorrer à violência’”. A base da democracia é um pacto de não agressão firmado entre as forças políticas: “Enquanto ele dura, podemos dizer que vivemos em uma sociedade democrática” (“Le basi della democrazia”).

O próprio processo constituinte, se bem-sucedido, “é um grande ato de coordenação das forças sociais e políticas da nação”, diz o professor Oscar Vilhena Vieira. A aprovação de uma Constituição, “quando não conta com a adesão dessas forças, tem apenas miseráveis chances de sobreviver” (A batalha dos poderes).

A história da Constituição federal de 1988 ilustra isso. De um lado, um pacto social que trouxe à Constituinte os mais diferentes atores e demandas (organizações da sociedade civil, sindicatos, corporações); de outro, um pacto político, pelo qual temas, interesses e procedimentos controversos foram costurados pelos constituintes em vista da aprovação da nova Constituição. São suas regras que, desde então, disciplinam uma variedade de conflitos dispensando o uso da força.

Assim é na democracia, um regime que supõe a alternância pacífica de governos. Nela, os conflitos são resolvidos “pela contagem de cabeças”, e não “batendo na cabeça dos que pensam diferente” (“Le basi della democrazia”). A não violência, para Bobbio, é um princípio fundamental da democracia, definida por ele como um “conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados” (O futuro da democracia). Essa definição, que Bobbio mesmo chama de “mínima”, nada mais é do que uma técnica de convivência destinada a resolver os conflitos sociais sem o recurso à violência.

Na democracia, a violência dá lugar à tolerância, à persuasão, ao compromisso. Nesse regime, deve-se parlamentar, ou seja, “conversar em busca de um acordo” (Houaiss). Sendo assim, o adversário deve ser respeitado; deve poder valer-se das mesmas regras de que se vale(u) o vencedor. Ele “não é mais um inimigo (que deve ser destruído), mas um opositor que amanhã poderá ocupar o nosso lugar” (O futuro da democracia).

A ordem democrática não se inspira no citado princípio “a tua morte é a minha vida” (mors tua vita mea), pelo qual a vitória supõe a destruição do inimigo. A ordem democrática não é legitimada pela destruição, mas pelo consenso. Se ele é descartado, resta apenas a violência como forma de mudança, e “essa sempre foi a minha objeção aos grupos extremistas, que queriam abater o sistema democrático sem ter o consenso necessário para fazer isso” (Norberto Bobbio, Dal terrorismo al reformismo).

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DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO, INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FADI E FACAMP

“A tua morte é a minha vida”, diz a expressão latina empregada em situações nas quais o dano sofrido por uma pessoa é uma vantagem para a outra. Ela pode ser lembrada nestes tempos em que a violência política, no Brasil, passa do perigoso campo da retórica para o irreversível campo da realização. Foi o que ocorreu na cidade de Foz do Iguaçu no mês de julho, quando Marcelo Arruda, filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), foi assassinado a tiros durante a sua festa de aniversário (que tinha o PT como tema) por Jorge Guaranho, que teria gritado “Lula ladrão, aqui é Bolsonaro, é mito!” antes de atirar.

A violência política no Brasil não é ocasional. Conforme a apuração feita pelo Estado de S. Paulo (16/7/2022), neste ano o Brasil já contabilizou 26 assassinatos por motivações políticas ou pelo exercício da atividade pública, um número que já é maior do que o registrado em quatro campanhas presidenciais desde a redemocratização. O monitoramento da violência política feito pelo jornal mostra também que, a partir do ano de 2018, homicídios por divergências partidárias e ideológicas tornaram-se mais frequentes.

Esse tipo de violência tem características e implicações particulares. Primeiro, ele é imprevisível: não há como saber quando um ataque desse tipo acontecerá (qual ação poderá motivá-lo, qual ação não poderá) nem sua intensidade. É uma fúria cega. A violência política espalha pela sociedade um medo vago, imponderável. Quem pretende resguardar-se dela encontra no silêncio a opção mais eficiente. E, então, a violência política atinge seu principal objetivo: paralisar-nos.

A violência política, portanto, inibe a coexistência, o diálogo, e faz do agressor juiz da conduta e executor da pena da sua vítima.

A violência tem papel central na retórica bolsonarista, ora travestida em defesa da liberdade, ora em autodefesa. Mas violência e democracia não são compatíveis. “Para dar uma definição de democracia”, disse o filósofo e jurista Norberto Bobbio, “eu responderia muito simplesmente assim: ‘A democracia é aquele sistema de convivência em que as pessoas encontraram regras para resolver os conflitos sem recorrer à violência’”. A base da democracia é um pacto de não agressão firmado entre as forças políticas: “Enquanto ele dura, podemos dizer que vivemos em uma sociedade democrática” (“Le basi della democrazia”).

O próprio processo constituinte, se bem-sucedido, “é um grande ato de coordenação das forças sociais e políticas da nação”, diz o professor Oscar Vilhena Vieira. A aprovação de uma Constituição, “quando não conta com a adesão dessas forças, tem apenas miseráveis chances de sobreviver” (A batalha dos poderes).

A história da Constituição federal de 1988 ilustra isso. De um lado, um pacto social que trouxe à Constituinte os mais diferentes atores e demandas (organizações da sociedade civil, sindicatos, corporações); de outro, um pacto político, pelo qual temas, interesses e procedimentos controversos foram costurados pelos constituintes em vista da aprovação da nova Constituição. São suas regras que, desde então, disciplinam uma variedade de conflitos dispensando o uso da força.

Assim é na democracia, um regime que supõe a alternância pacífica de governos. Nela, os conflitos são resolvidos “pela contagem de cabeças”, e não “batendo na cabeça dos que pensam diferente” (“Le basi della democrazia”). A não violência, para Bobbio, é um princípio fundamental da democracia, definida por ele como um “conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados” (O futuro da democracia). Essa definição, que Bobbio mesmo chama de “mínima”, nada mais é do que uma técnica de convivência destinada a resolver os conflitos sociais sem o recurso à violência.

Na democracia, a violência dá lugar à tolerância, à persuasão, ao compromisso. Nesse regime, deve-se parlamentar, ou seja, “conversar em busca de um acordo” (Houaiss). Sendo assim, o adversário deve ser respeitado; deve poder valer-se das mesmas regras de que se vale(u) o vencedor. Ele “não é mais um inimigo (que deve ser destruído), mas um opositor que amanhã poderá ocupar o nosso lugar” (O futuro da democracia).

A ordem democrática não se inspira no citado princípio “a tua morte é a minha vida” (mors tua vita mea), pelo qual a vitória supõe a destruição do inimigo. A ordem democrática não é legitimada pela destruição, mas pelo consenso. Se ele é descartado, resta apenas a violência como forma de mudança, e “essa sempre foi a minha objeção aos grupos extremistas, que queriam abater o sistema democrático sem ter o consenso necessário para fazer isso” (Norberto Bobbio, Dal terrorismo al reformismo).

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DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO, INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FADI E FACAMP

“A tua morte é a minha vida”, diz a expressão latina empregada em situações nas quais o dano sofrido por uma pessoa é uma vantagem para a outra. Ela pode ser lembrada nestes tempos em que a violência política, no Brasil, passa do perigoso campo da retórica para o irreversível campo da realização. Foi o que ocorreu na cidade de Foz do Iguaçu no mês de julho, quando Marcelo Arruda, filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), foi assassinado a tiros durante a sua festa de aniversário (que tinha o PT como tema) por Jorge Guaranho, que teria gritado “Lula ladrão, aqui é Bolsonaro, é mito!” antes de atirar.

A violência política no Brasil não é ocasional. Conforme a apuração feita pelo Estado de S. Paulo (16/7/2022), neste ano o Brasil já contabilizou 26 assassinatos por motivações políticas ou pelo exercício da atividade pública, um número que já é maior do que o registrado em quatro campanhas presidenciais desde a redemocratização. O monitoramento da violência política feito pelo jornal mostra também que, a partir do ano de 2018, homicídios por divergências partidárias e ideológicas tornaram-se mais frequentes.

Esse tipo de violência tem características e implicações particulares. Primeiro, ele é imprevisível: não há como saber quando um ataque desse tipo acontecerá (qual ação poderá motivá-lo, qual ação não poderá) nem sua intensidade. É uma fúria cega. A violência política espalha pela sociedade um medo vago, imponderável. Quem pretende resguardar-se dela encontra no silêncio a opção mais eficiente. E, então, a violência política atinge seu principal objetivo: paralisar-nos.

A violência política, portanto, inibe a coexistência, o diálogo, e faz do agressor juiz da conduta e executor da pena da sua vítima.

A violência tem papel central na retórica bolsonarista, ora travestida em defesa da liberdade, ora em autodefesa. Mas violência e democracia não são compatíveis. “Para dar uma definição de democracia”, disse o filósofo e jurista Norberto Bobbio, “eu responderia muito simplesmente assim: ‘A democracia é aquele sistema de convivência em que as pessoas encontraram regras para resolver os conflitos sem recorrer à violência’”. A base da democracia é um pacto de não agressão firmado entre as forças políticas: “Enquanto ele dura, podemos dizer que vivemos em uma sociedade democrática” (“Le basi della democrazia”).

O próprio processo constituinte, se bem-sucedido, “é um grande ato de coordenação das forças sociais e políticas da nação”, diz o professor Oscar Vilhena Vieira. A aprovação de uma Constituição, “quando não conta com a adesão dessas forças, tem apenas miseráveis chances de sobreviver” (A batalha dos poderes).

A história da Constituição federal de 1988 ilustra isso. De um lado, um pacto social que trouxe à Constituinte os mais diferentes atores e demandas (organizações da sociedade civil, sindicatos, corporações); de outro, um pacto político, pelo qual temas, interesses e procedimentos controversos foram costurados pelos constituintes em vista da aprovação da nova Constituição. São suas regras que, desde então, disciplinam uma variedade de conflitos dispensando o uso da força.

Assim é na democracia, um regime que supõe a alternância pacífica de governos. Nela, os conflitos são resolvidos “pela contagem de cabeças”, e não “batendo na cabeça dos que pensam diferente” (“Le basi della democrazia”). A não violência, para Bobbio, é um princípio fundamental da democracia, definida por ele como um “conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados” (O futuro da democracia). Essa definição, que Bobbio mesmo chama de “mínima”, nada mais é do que uma técnica de convivência destinada a resolver os conflitos sociais sem o recurso à violência.

Na democracia, a violência dá lugar à tolerância, à persuasão, ao compromisso. Nesse regime, deve-se parlamentar, ou seja, “conversar em busca de um acordo” (Houaiss). Sendo assim, o adversário deve ser respeitado; deve poder valer-se das mesmas regras de que se vale(u) o vencedor. Ele “não é mais um inimigo (que deve ser destruído), mas um opositor que amanhã poderá ocupar o nosso lugar” (O futuro da democracia).

A ordem democrática não se inspira no citado princípio “a tua morte é a minha vida” (mors tua vita mea), pelo qual a vitória supõe a destruição do inimigo. A ordem democrática não é legitimada pela destruição, mas pelo consenso. Se ele é descartado, resta apenas a violência como forma de mudança, e “essa sempre foi a minha objeção aos grupos extremistas, que queriam abater o sistema democrático sem ter o consenso necessário para fazer isso” (Norberto Bobbio, Dal terrorismo al reformismo).

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