A destruição recorde de florestas na Amazônia nos últimos dois anos e a demora de Jair Bolsonaro em reconhecer a eleição do presidente Joe Biden deixaram pouco espaço para uma recepção positiva da carta que o líder brasileiro enviou, dia 14 deste mês, ao presidente dos EUA comprometendo-se a fazer o oposto do que fez até agora e trabalhar para conter e reverter o desmatamento e as emissões de CO2. Por isso mesmo, a missiva não deve diminuir a pressão sobre o Brasil antes ou depois da cúpula virtual sobre Mudança Climática que reunirá 40 líderes convidados pelo presidente dos EUA nos dias 22 e 23. A disposição de firmeza de Washington foi reforçada depois que 22 governadores de Estado e centenas de líderes da sociedade civil, entre eles empresários e banqueiros de peso, comunicaram à Casa Branca que apoiam metas ambiciosas.
A iniciativa dos governadores veio na sequência da rejeição pública pelo governo americano, em 29 de março, da demanda brasileira de pagamento adiantado de US$ 1 bilhão ao ano por serviços ambientais, apresentada pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. “Queremos ver coisas tangíveis contra o desmatamento ilegal”, respondeu um porta-voz americano em entrevista a jornalistas brasileiros. “Queremos ver uma diminuição real ainda este ano, e não esperar cinco ou dez anos.”
No mesmo diapasão, 280 líderes de companhias de porte e associações empresariais do agronegócio, da indústria, das finanças e de entidades científicas e ambientais congregadas na Coalização Brasil Clima, Florestas e Agricultura endossaram dias depois a demanda de Washington, que conta com o apoio da União Europeia. Na ausência de progresso nas conversas sigilosas em curso desde o mês passado, o embaixador dos EUA em Brasília, Todd Chapman, apresentou, em conversa fechada com empresários, políticos, economistas e diplomatas, o que soou como um ultimato. Na sexta-feira, influentes senadores democratas pediram a Biden que não faça concessões a Bolsonaro.
Somadas, as mensagens dos governadores a Biden e o documento da Coalizão representam endosso tácito por líderes políticos e da sociedade civil de uma visão estratégica em formação sobre política climática e constituem um importante fato novo num país onde empresários e banqueiros tradicionalmente evitam divergir publicamente do governo. A nova postura é alimentada pela forte perda de credibilidade de Bolsonaro na administração da pandemia e da economia, bem como pelo temor crescente de que o Brasil se torne alvo de sanções internacionais, já visíveis na proibição da entrada de brasileiros em vários países.
As ações propostas pela Coalizão são concretas e específicas. Os signatários da detalhada carta enviada a Bolsonaro advogam a retomada e intensificação de atividades de fiscalização pelas agências federais competentes, de forma a coibir a continuação de atividades ilícitas na Amazônia. Pedem também a punição exemplar dos infratores. O abandono da fiscalização e a não aplicação de multas previstas em lei explicam em grande medida os novos recordes de destruição de florestas registrados em 2019 e 2020. Contrariando a política atual do Ministério do Meio Ambiente, os signatários defendem a finalização do Cadastro Ambiental Rural e a suspensão do registro e regularização de propriedades desmatadas ilegalmente depois de 2008, conforme estipula o Código Florestal. A Coalizão propõe ainda que 10 milhões de hectares de florestas sejam destinados à proteção e ao uso sustentável em regiões sob forte pressão de desmatamento e que seus proprietários tenham acesso a financiamentos concedidos sob critérios socioambientais claros. E pede “total transparência e eficiência nas autorizações de supressão de vegetação”.
Por motivos óbvios, não há transparência nas conversas sigilosas que vêm sendo realizadas entre funcionários brasileiros e americanos. Ambientalistas que monitoram os entendimentos acreditam que as demandas apresentadas pela Coalizão estão no cerne das negociações.
Sabe-se que Washington considera a participação do Itamaraty fator-chave para o bom encaminhamento das consultas, o que é em si mesmo uma informação relevante, pois a arte da negociação é da essência da atividade dos diplomatas, que ficou escanteada nos últimos tempos em Brasília. Ela é crucial também para a construção de confiança, hoje inexistente, como foi explicitado pelo porta-voz americano que conversou com os jornalistas brasileiros no final de março.
“Se o mundo vai fazer um investimento para ajudar a combater desmatamento, é preciso criar confiança”, explicou ele na conversa com os jornalistas. “Não estamos dizendo como o Brasil deve agir. Mas nos parece que há medidas que precisam ser tomadas. O que buscamos é clareza. O mundo vai olhar e entender que o Brasil está avançando? Ou não?” Cabe ao presidente Jair Bolsonaro responder a essa pergunta. Mas não é indispensável que ele o faça, e pode até ser desejável que fique à margem se sua participação na Cúpula for jogo de cena e ele acreditar que pode passar a boiada de Salles na Casa Branca.
JORNALISTA, É PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WILSON CENTER, EM WASHINGTON