Opinião|Na CPI, os fins não devem justificar os meios


O que está acontecendo contraria tudo o que se sedimentou ao longo de décadas

Por Celso Vilardi

As apurações da CPI no Senado sobre a resposta do governo à covid-19 devem apontar os responsáveis pelo morticínio em curso e indicar os caminhos para que essa tragédia não se repita. A CPI é vital, portanto, para o próprio futuro do País.

Os fins, no entanto, não justificam os meios. O que se vê hoje, pesa dizer, é um enorme desrespeito à Constituição. Seja porque o princípio da não autoincriminação foi vilipendiado, seja porque há um estupefaciente desrespeito aos advogados, sobretudo ao direito de defesa.

Políticos adoram criticar os excessos da Operação Lava Jato, mas na hora de respeitar as regras e os direitos dos investigados cometem excessos graves, dado que a versão do investigado, ou o seu silêncio, tem servido como mote para ordem de prisão ou pressões indevidas. Os advogados têm tido a palavra reiteradamente cassada, o que se traduz em ataque ao direito de defesa. Os senadores, tal como ocorre na sociedade, confundem o investigado com o seu advogado. Ignoram o direito de defesa, tornando os depoimentos tensos, carregados de adjetivos contra os investigados, com ameaças de prisão, uma vez concretizada.

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É chocante ouvir o presidente da CPI falar em perjúrio, um tipo penal inexistente na legislação brasileira. O desrespeito aos advogados também tem que ver com a desgastada imagem da advocacia, em função de nossas lideranças. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) precisa se reinventar. É necessário que nossos líderes trabalhem pelas prerrogativas profissionais, pelo respeito profissional e, sobretudo, pelo combate às faculdades que formam milhares de pessoas despreparadas, mesmo aprovadas no Exame da Ordem. Os advogados nunca votaram no presidente da OAB nacional. As eleições são indiretas. O presidente chega ao poder em razão de um rodízio estabelecido em seu conselho – coisa de confraria. Enquanto perdemos prestígio e respeito, nossos últimos presidentes têm demonstrado obsessão por temas políticos.

O ataque à Constituição conta, desta feita, com o surpreendente apoio do Supremo Tribunal Federal (STF). Em tempos de polarização, tenho sido um defensor do STF e de seus ministros, vítimas de ataques sórdidos. Mas agora a Corte atacou o que deveria ser defendido: o direito fundamental de não autoincriminação. De acordo com a Constituição, o investigado ou acusado tem o direito de permanecer em silêncio. Se resolver responder às perguntas, não pode ser preso, ainda que os investigadores entendam que está mentindo.

Não há crime de perjúrio, tampouco a obrigação de o acusado colaborar com a investigação. Nas palavras do ministro Celso de Mello, referendadas pelo plenário da Corte em julgamento unânime, “o exercício do direito de permanecer em silêncio não autoriza os órgãos estatais a dispensarem qualquer tratamento que implique restrição à esfera jurídica daquele que regularmente invocou essa prerrogativa fundamental”. E “impede, quando concretamente exercido, que aquele que o invocou, por tal específica razão, a ser preso, ou ameaçado de prisão, pelos agentes ou pelas autoridades do Estado”.

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São incontáveis os precedentes do STF que garantem ao investigado permanecer em silêncio e ser assistido por advogado. Antes desta CPI, a Corte se inclinava a fixar o entendimento de que o investigado poderia até mesmo se recusar a comparecer, o que fazia todo o sentido. Se o investigado não vai falar, seu comparecimento só vai atrapalhar os trabalhos. A menos que o objetivo seja o espetáculo, e não a investigação.

Nesta CPI, porém, deu-se um retrocesso. De início o STF voltou atrás e decidiu que o comparecimento deve ser obrigatório. Agora, para piorar, decidiu que, apesar de afirmar que jurisprudência está sendo respeitada, não existe direito fundamental absoluto e cabe aos investigadores a análise, “à luz de cada caso concreto”, da “ocorrência de alegado abuso do exercício do direito de não incriminação. Se assim entender configurada a hipótese, dispõe a CPI de autoridade para a adoção fundamentada das providências legais cabíveis”. Em outra decisão, restou assentado que o silêncio estava garantido ao acusado, mas não incluía perguntas relativas a terceiros.

Tais decisões indicam que o controle sobre os limites do silêncio é dos investigadores, não do investigado. Exigir que ele responda a questões relativas a terceiros é inadmissível, pois ao fazê-lo pode se incriminar. Ora, só à defesa cabe aquilatar os limites do direito de não autoincriminação. Em qualquer investigação em regimes democráticos, as provas contra o investigado devem ser obtidas apesar do seu silêncio.

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O que está acontecendo contraria tudo o que se sedimentou ao longo de décadas. Tive a oportunidade de acompanhar várias CPIs, mas jamais vi nada igual. O fato de a causa ser nobre não justifica tamanho retrocesso. A (boa) intenção de responsabilizar os culpados por mais de 500 mil mortes não pode afrontar a Constituição. Se objetivamos proteger a democracia, não podemos admitir o ataque a direitos fundamentais. O grave retrocesso institucional é o caminho mais curto para atentados à democracia.

ADVOGADO, É PROFESSOR DE DIREITO NA FGV-SP

As apurações da CPI no Senado sobre a resposta do governo à covid-19 devem apontar os responsáveis pelo morticínio em curso e indicar os caminhos para que essa tragédia não se repita. A CPI é vital, portanto, para o próprio futuro do País.

Os fins, no entanto, não justificam os meios. O que se vê hoje, pesa dizer, é um enorme desrespeito à Constituição. Seja porque o princípio da não autoincriminação foi vilipendiado, seja porque há um estupefaciente desrespeito aos advogados, sobretudo ao direito de defesa.

Políticos adoram criticar os excessos da Operação Lava Jato, mas na hora de respeitar as regras e os direitos dos investigados cometem excessos graves, dado que a versão do investigado, ou o seu silêncio, tem servido como mote para ordem de prisão ou pressões indevidas. Os advogados têm tido a palavra reiteradamente cassada, o que se traduz em ataque ao direito de defesa. Os senadores, tal como ocorre na sociedade, confundem o investigado com o seu advogado. Ignoram o direito de defesa, tornando os depoimentos tensos, carregados de adjetivos contra os investigados, com ameaças de prisão, uma vez concretizada.

É chocante ouvir o presidente da CPI falar em perjúrio, um tipo penal inexistente na legislação brasileira. O desrespeito aos advogados também tem que ver com a desgastada imagem da advocacia, em função de nossas lideranças. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) precisa se reinventar. É necessário que nossos líderes trabalhem pelas prerrogativas profissionais, pelo respeito profissional e, sobretudo, pelo combate às faculdades que formam milhares de pessoas despreparadas, mesmo aprovadas no Exame da Ordem. Os advogados nunca votaram no presidente da OAB nacional. As eleições são indiretas. O presidente chega ao poder em razão de um rodízio estabelecido em seu conselho – coisa de confraria. Enquanto perdemos prestígio e respeito, nossos últimos presidentes têm demonstrado obsessão por temas políticos.

O ataque à Constituição conta, desta feita, com o surpreendente apoio do Supremo Tribunal Federal (STF). Em tempos de polarização, tenho sido um defensor do STF e de seus ministros, vítimas de ataques sórdidos. Mas agora a Corte atacou o que deveria ser defendido: o direito fundamental de não autoincriminação. De acordo com a Constituição, o investigado ou acusado tem o direito de permanecer em silêncio. Se resolver responder às perguntas, não pode ser preso, ainda que os investigadores entendam que está mentindo.

Não há crime de perjúrio, tampouco a obrigação de o acusado colaborar com a investigação. Nas palavras do ministro Celso de Mello, referendadas pelo plenário da Corte em julgamento unânime, “o exercício do direito de permanecer em silêncio não autoriza os órgãos estatais a dispensarem qualquer tratamento que implique restrição à esfera jurídica daquele que regularmente invocou essa prerrogativa fundamental”. E “impede, quando concretamente exercido, que aquele que o invocou, por tal específica razão, a ser preso, ou ameaçado de prisão, pelos agentes ou pelas autoridades do Estado”.

São incontáveis os precedentes do STF que garantem ao investigado permanecer em silêncio e ser assistido por advogado. Antes desta CPI, a Corte se inclinava a fixar o entendimento de que o investigado poderia até mesmo se recusar a comparecer, o que fazia todo o sentido. Se o investigado não vai falar, seu comparecimento só vai atrapalhar os trabalhos. A menos que o objetivo seja o espetáculo, e não a investigação.

Nesta CPI, porém, deu-se um retrocesso. De início o STF voltou atrás e decidiu que o comparecimento deve ser obrigatório. Agora, para piorar, decidiu que, apesar de afirmar que jurisprudência está sendo respeitada, não existe direito fundamental absoluto e cabe aos investigadores a análise, “à luz de cada caso concreto”, da “ocorrência de alegado abuso do exercício do direito de não incriminação. Se assim entender configurada a hipótese, dispõe a CPI de autoridade para a adoção fundamentada das providências legais cabíveis”. Em outra decisão, restou assentado que o silêncio estava garantido ao acusado, mas não incluía perguntas relativas a terceiros.

Tais decisões indicam que o controle sobre os limites do silêncio é dos investigadores, não do investigado. Exigir que ele responda a questões relativas a terceiros é inadmissível, pois ao fazê-lo pode se incriminar. Ora, só à defesa cabe aquilatar os limites do direito de não autoincriminação. Em qualquer investigação em regimes democráticos, as provas contra o investigado devem ser obtidas apesar do seu silêncio.

O que está acontecendo contraria tudo o que se sedimentou ao longo de décadas. Tive a oportunidade de acompanhar várias CPIs, mas jamais vi nada igual. O fato de a causa ser nobre não justifica tamanho retrocesso. A (boa) intenção de responsabilizar os culpados por mais de 500 mil mortes não pode afrontar a Constituição. Se objetivamos proteger a democracia, não podemos admitir o ataque a direitos fundamentais. O grave retrocesso institucional é o caminho mais curto para atentados à democracia.

ADVOGADO, É PROFESSOR DE DIREITO NA FGV-SP

As apurações da CPI no Senado sobre a resposta do governo à covid-19 devem apontar os responsáveis pelo morticínio em curso e indicar os caminhos para que essa tragédia não se repita. A CPI é vital, portanto, para o próprio futuro do País.

Os fins, no entanto, não justificam os meios. O que se vê hoje, pesa dizer, é um enorme desrespeito à Constituição. Seja porque o princípio da não autoincriminação foi vilipendiado, seja porque há um estupefaciente desrespeito aos advogados, sobretudo ao direito de defesa.

Políticos adoram criticar os excessos da Operação Lava Jato, mas na hora de respeitar as regras e os direitos dos investigados cometem excessos graves, dado que a versão do investigado, ou o seu silêncio, tem servido como mote para ordem de prisão ou pressões indevidas. Os advogados têm tido a palavra reiteradamente cassada, o que se traduz em ataque ao direito de defesa. Os senadores, tal como ocorre na sociedade, confundem o investigado com o seu advogado. Ignoram o direito de defesa, tornando os depoimentos tensos, carregados de adjetivos contra os investigados, com ameaças de prisão, uma vez concretizada.

É chocante ouvir o presidente da CPI falar em perjúrio, um tipo penal inexistente na legislação brasileira. O desrespeito aos advogados também tem que ver com a desgastada imagem da advocacia, em função de nossas lideranças. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) precisa se reinventar. É necessário que nossos líderes trabalhem pelas prerrogativas profissionais, pelo respeito profissional e, sobretudo, pelo combate às faculdades que formam milhares de pessoas despreparadas, mesmo aprovadas no Exame da Ordem. Os advogados nunca votaram no presidente da OAB nacional. As eleições são indiretas. O presidente chega ao poder em razão de um rodízio estabelecido em seu conselho – coisa de confraria. Enquanto perdemos prestígio e respeito, nossos últimos presidentes têm demonstrado obsessão por temas políticos.

O ataque à Constituição conta, desta feita, com o surpreendente apoio do Supremo Tribunal Federal (STF). Em tempos de polarização, tenho sido um defensor do STF e de seus ministros, vítimas de ataques sórdidos. Mas agora a Corte atacou o que deveria ser defendido: o direito fundamental de não autoincriminação. De acordo com a Constituição, o investigado ou acusado tem o direito de permanecer em silêncio. Se resolver responder às perguntas, não pode ser preso, ainda que os investigadores entendam que está mentindo.

Não há crime de perjúrio, tampouco a obrigação de o acusado colaborar com a investigação. Nas palavras do ministro Celso de Mello, referendadas pelo plenário da Corte em julgamento unânime, “o exercício do direito de permanecer em silêncio não autoriza os órgãos estatais a dispensarem qualquer tratamento que implique restrição à esfera jurídica daquele que regularmente invocou essa prerrogativa fundamental”. E “impede, quando concretamente exercido, que aquele que o invocou, por tal específica razão, a ser preso, ou ameaçado de prisão, pelos agentes ou pelas autoridades do Estado”.

São incontáveis os precedentes do STF que garantem ao investigado permanecer em silêncio e ser assistido por advogado. Antes desta CPI, a Corte se inclinava a fixar o entendimento de que o investigado poderia até mesmo se recusar a comparecer, o que fazia todo o sentido. Se o investigado não vai falar, seu comparecimento só vai atrapalhar os trabalhos. A menos que o objetivo seja o espetáculo, e não a investigação.

Nesta CPI, porém, deu-se um retrocesso. De início o STF voltou atrás e decidiu que o comparecimento deve ser obrigatório. Agora, para piorar, decidiu que, apesar de afirmar que jurisprudência está sendo respeitada, não existe direito fundamental absoluto e cabe aos investigadores a análise, “à luz de cada caso concreto”, da “ocorrência de alegado abuso do exercício do direito de não incriminação. Se assim entender configurada a hipótese, dispõe a CPI de autoridade para a adoção fundamentada das providências legais cabíveis”. Em outra decisão, restou assentado que o silêncio estava garantido ao acusado, mas não incluía perguntas relativas a terceiros.

Tais decisões indicam que o controle sobre os limites do silêncio é dos investigadores, não do investigado. Exigir que ele responda a questões relativas a terceiros é inadmissível, pois ao fazê-lo pode se incriminar. Ora, só à defesa cabe aquilatar os limites do direito de não autoincriminação. Em qualquer investigação em regimes democráticos, as provas contra o investigado devem ser obtidas apesar do seu silêncio.

O que está acontecendo contraria tudo o que se sedimentou ao longo de décadas. Tive a oportunidade de acompanhar várias CPIs, mas jamais vi nada igual. O fato de a causa ser nobre não justifica tamanho retrocesso. A (boa) intenção de responsabilizar os culpados por mais de 500 mil mortes não pode afrontar a Constituição. Se objetivamos proteger a democracia, não podemos admitir o ataque a direitos fundamentais. O grave retrocesso institucional é o caminho mais curto para atentados à democracia.

ADVOGADO, É PROFESSOR DE DIREITO NA FGV-SP

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